21/03/13

Amordaçam-nos e atam-nos as mãos

Poul Henningsen (1894‑1967), mais conhecido por PH, era um homem de muitos talentos: foi crítico literário, jornalista, poeta, cineasta, letrista, designer e arquiteto. É, sem dúvida um dos nomes importantes da cultura dinamarquesa no século XX. As suas criações mais conhecidas são provavelmente os candeeiros, que começou a desenhar em 1925 e de que vos apresento aqui dois dos mais famosos, ambos de 1958. A Alcachofra é um candeeiro sofisticado, considerado por muitos uma obra-prima de design. Muito mais simples, o PH5 é, provavelmente, o mais popular candeeiro dinamarquês. Ainda hoje se comercializa e encontra-se em muitas casas (nós temos um).
A Alcachofra, à esquerda, e o PH5, dois famosos candeeiros de Poul Henningsen (imagens de Wikimedia Commons)
Posta esta luminosa introdução, passo agora a apresentar-vos o tema central deste texto: não é da vida e obra de PH em geral que quero falar-vos, nem dos seus candeeiros, mas sim de uma canção de que escreveu a letra e que se tornou um símbolo da contestação e resistência à ocupação da Dinamarca pelos nazis: “Man binder os på mund og hånd”. É não só uma canção histórica, como também uma obra-prima da canção dinamarquesa. E fascina-me que uma canção que, além de ser um ataque relativamente claro à ocupação alemã, critica directamente a própria censura, tenha conseguido contornar essa mesma censura. Talvez isso se deva a que a crítica aos compromissos amorosos, que é o seu tema imediato, fosse, no fundo, muito mais do que apenas um artifício retórico de PH. A canção também é mesmo, afinal, uma crítica sincera do amor como contrato ‒ e a censura não conseguiu deixar de a entender assim. Deixo PH contar-vos a história.
Logo após a ocupação, no verão de 1940, escrevi “Man binder os på mund og hånd” para a Liva Weel, na revista Dyveke, mas para a música de um tango de Kai Normann Andersen, e não se costuma usar tangos para canções patrióticas. As preocupações eram bastante grandes.
Foi também um bocado pérfido da minha parte. Só a última estrofe é que era a canção patriótica, ao passo que a primeira era sobre um amor altamente imoral e a do meio, que não está no disco, era um ataque violento ao sagrado matrimónio.
As pessoas de bem tinham também de ouvir essas coisas desagradáveis ​​para ouvir a estrofe patriótica, que Liva cantava emocionada perante um profundo silêncio do público. Mas foi, em parte, uma boa maneira de enganar os alemães, para eles não proibirem a música, e foi também, de minha parte, um pouco para provocar os burgueses. Não me apetecia dizer apenas o que as pessoas queriam ouvir.
Traduzo a seguir a canção. É uma tradução em prosa e feia, aviso, que vos permite ficar a saber o significado das frases (ou mais ou menos, porque às vezes sou obrigado a fugir à literalidade em demasia), mas não vos dá nenhuma ideia do seu conteúdo estético ‒ não sei traduzir isto como deve ser. Uma nota só sobre o título, que é também a frase que inicia o refrão: traduzo por “amordaçam-nos e atam-nos as mãos”, porque acho que em português não se pode atar a boca às pessoas, mas, literalmente, é isso que o texto diz: atam-nos ou amarram-nos pela boca e pela mão. É esta ambiguidade que funda o texto: atam-nos pela boca (o sim do casamento, as juras de amor) e pela mão (o anel, o gesto de juramento?) podem entender-se também como amordaçam-nos (a censura) e atam-nos as mãos (a prisão literal, a impossibilidade de agir?). 
I. As crianças, gananciosas, querem deitar a mão a tudo o que brilha. As pessoas maduras prendem as outras com um anel. Quantas vezes não parámos com alguém, em frente a uma montra, a dividir as coisas expostas. Eu fico com isto, eu fico com isto! E a vida também é assim.
Amordaçam-nos e atam-nos as mãos com as mil cadeias do hábito e é difícil libertar-se. Jogamos às escondidas com alguém que sabe proteger-nos da solidão. Com doces contratos, deixamo-nos levar. Se fosse proibido dizer “juro”, teríamos uma forma mais honesta de amar. As juras que fizemos, com palavras e gestos, só duram um breve momento, até a alegria desaparecer e tudo acabar.
II. Amor e casamento: que tem uma coisa a ver com a outra? O bocejo vazio do tédio, até a boca não abrir mais. O amor é flor selvagem, murcha às mãos do jardineiro. Protegê-lo faz-lhe mal, mas floresce, ardente, na tempestade e na neve.
Amordaçam-nos e atam-nos as mãos com as mil cadeias do hábito, mas ninguém pode ser dono de ninguém. Libertamo-nos. Em cada carícia há uma fuga, os sentidos ao rubro que fogem dos trilhos atarefados e batidos dos deveres. Eu não sou teu, tu não és minha. Os meus beijos não são sim nem não. As juras que fizemos, com palavras e gestos, só duram esse estonteado momento, que é precisamente o beijo que me dás tu de quem eu gosto. 
III. Ir ao encontro do que nos espera e ninguém sabe como as coisas correm; carregar o destino sem rejeição, venha o que vier; feliz com os gestos amigos, mas sem acreditar que são para continuar; procurar a paz, porque sabemos que não exigimos a paz.
Amordaçam-nos, atam-nos as mãos, mas não se pode atar o espírito, e ninguém é prisioneiro, quando o pensamento é livre. Temos uma fortaleza interior que se fortalece com o seu próprio valor, quando lutamos por aquilo de que gostamos. Quem mantém a alma aprumada nunca pode ser escravo. Ninguém pode mandar no que nós próprios decidirmos. Isso juramos nós, com palavras e gestos, na escuridão que precede o amanhecer, que o sonho da liberdade nunca acabará.
Depois de tão longa introdução, a canção propriamente dita, que começa ao fim do primeiro minuto, depois da explicação de PH transcrita acima. As partes cantadas são a só a 1ª e a 3ª do texto traduzido. Espero que gostem. Eu gosto muito. E embora até aqui tenha falado só da letra, não é só da letra que gosto: também acho bonita a melodia e acho que Liva Weel a canta muito bem.
No blogue Imagens com texto, J.J.Amarante tem uma série de posts sobre candeeiros dinamarqueses, incluindo os de PH.
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P.S.: O conteúdo político da canção é mais óbvio numa parte que aparece, em certas transcrições da canção, antes da que aqui apresento como terceira. Li algures que só foi descoberta recentemente. Acho curioso que essa parte não seja referida no discurso de PH que se ouve no vídeo e que traduzi acima. Será que é mesmo dele? Na página de blogue onde fui buscar as transcrições que aqui usei, sugere-se que talvez PH tenha feito essa terceira parte de propósito para ser censurada e desviar assim a atenção da censura das outras três partes. O texto do blogue é de 2011, mas tinha ouvido exatamente o mesmo, 10 anos antes, de uma das minhas professoras de dinamarquês. Aqui fica também a tradução da parte em questão:
Mesmo quando os navios se afundam, um após outro, e os países um após outro são arrasados, age-se com honestidade e cada qual reza ao seu deus. Tratados de paz e pactos de amizade são papéis que custam sangue. O fraco arma-se contra o forte, com a desesperada coragem que o medo lhe dá. Vale tanto para o amor como para a guerra: todas as juras são engano e ninguém pode confiar na palavra de ninguém.
O que ajudaram os apertos de mão que deram àquela que ali está junto da sepultura do marido? Uma pessoa não vale nada perante a terra sagrada.
Medo dos nossos inimigos? Sim, mas mais medo da grande potência que nos quer ajudar e nos chama amigos. É assim nas guerras de todos os tempos, as garantias são enganos apenas e ninguém pode confiar na palavra dos Estados.

13/03/13

A neve da Ütopya


Nos últimos meses, tenho visto em vários sítios a imagem acima. Curioso, fui pesquisar no Google images a sua origem. E descobri outras imagens do mesmo lugar. Uma delas tinha neve:
Surpreendeu-me a neve. Por um lado, tinha entretanto descoberto que o painel era da Universidade de Başkent em Ancara[1] e eu não sabia que nevava em Ancara. (Mas fui informar-me e agora já sei que sim, que neva.) Por outro lado, é simplesmente estranho para mim associar neve à Utopia. Preconceito apenas, falta de hábito de ver lado a lado as duas coisas. O painel diz claramente que a Utopia está a uma distância infinita e é claro que há sítios com neve a uma distância infinita de Utopia. A Utopia é que não tem neve, não são os sítios onde ela é indicada.
A Utopia não tem neve? A Utopia não tem neve porquê?, há de haver quem pergunte. Não é até comum elevar-se a ideal os países do Norte, com a sua riqueza e os seus índices de bem-estar e felicidade? Bom, se utopia for sinónimo de “ideal”, com certeza que há utopias com neve. E sem ela, e com todo o tipo de climas e gentes e culturas. Eu é que me acostumei a dar à palavra utopia um sentido mais restrito e é sempre esse sentido que me vem à mente quando a ouço:
Quando Thomas More publicou, em 1518, o seu livro A utopia ou tratado da melhor forma de governo, inaugurou um modelo, em parte narrativo mas sobretudo filosófico, político e moral, que teve, durante mais de dois séculos, uma fortuna imensa ‒ foram escritas dezenas de obras, em muitos aspetos parecidas entre elas e com a obra de More, que constituíram um dos polos das ideologias e dos imaginários europeus do período clássico. A história é praticamente sempre igual: um viajante europeu chega a uma ilha, fora dos espaços conhecidos na Europa, onde encontra uma sociedade “perfeita”. E apresenta depois essa sociedade perfeita aos seus conterrâneos, mostrando-lhes, com a perfeição dessa sociedade distante, as contradições e os defeitos da sua própria sociedade. É sempre neste modelo, com ideias e imagens bem definidas, que penso, quando penso em utopia, porque me dediquei, durante alguns anos, a estudá-lo. E é também por isso que a palavra não tem sempre, para mim, a conotação positiva que tem para a maior parte das pessoas: se há aspetos que me agradam nestas utopias, há também outros que me desagradam muito…
Mas de que ideal dão conta essas narrativas, afinal? O que têm em comum entre elas essas sociedades ideais que os viajantes europeus encontram ao cabo de longas viagens imaginárias? É obviamente impossível listar aqui todas as suas características, mas podem resumir-se algumas linhas de força do ideal utópico:
Antes de mais, a utopia é sempre uma ilha (se não literalmente, pelo menos simbolicamente), às vezes murada, sempre de difícil acesso. Obsessivamente geométrica, é sempre uma cidade ou um conjunto delas, construída em planícies artificiais depois de arrasadas as primitivas florestas. É neste cenário que seres uniformizados (ao ponto de usarem, de facto, uniformes) vivem vidas “perfeitas” porque aboliram de vez o mal supremo da irracionalidade e as suas vidas são reguladas até ao mínimo detalhe por leis “perfeitas” ‒ que muitas vezes lhes foram oferecidas por um sábio legislador e que eles aceitaram de bom grado, de tão justas que eram.
Tudo é lógico e prático, tudo está regulamentado racionalmente. Este é, talvez, o traço mais universal da Utopia. Até o amor e o sexo são regulados logicamente, sempre de acordo com os interesses da comunidade. A religião também é sempre inabalável de razão, tingida de cientismo e filosofia. E as línguas que se falam nas utopias são, também elas, além de perfeitas na sua capacidade de fazer coincidir a palavra com o que ela nomeia, de uma regularidade impressionante, matemática.
Outra ideia fundamental da utopia é a de educação. Os utopistas atribuem à Natureza tudo o que há de mau no mundo (os sentimentos, a mentira, a inveja, o gosto do excesso e do supérfluo, o cultivar da aparência, etc.) e é, pois, preciso educar para a cidadania. A educação utópica é um dos seus aspetos revolucionários: é muitas vezes universal e desde o início da infância, e é ao mesmo tempo cívica e profissional. Mas não é só para ensinar razão e cidadania que a educação serve ‒ serve também para ensinar a obedecer, a ser ajuizado e dócil e... bem condicionado.
Ideal igualitário ‒ embora as hierarquias existam sempre e sejam bem visíveis e bem respeitadas, por “necessidade” do sistema de governo ‒, a propriedade privada não existe na utopia, até porque não contam o privado nem o indivíduo, apenas a sociedade.
A felicidade próspera da utopia é reservada aos habitantes dessa ilha e os contactos com os povos vizinhos, ameaçadores, quando os há, limitam-se a relações comerciais e à guerra (a educação militar é, aliás, uma componente importante da educação cívica utópica). É uma ilha, não o esqueçamos. Algures na zona quente do globo.
Estão a ver onde é que eu queria chegar? A Utopia de Thomas More, a Nova Atlântida de Francis Bacon, a Terra Austral de Gabriel de Foigny e outras Terras Austrais, a maioria das utopias, enfim, não fica em zonas frias. Provavelmente, pode pensar-se, porque os climas quentes são o ideal de todos os humanos, animais tropicais que nós somos. É certo[2]. Mas é também porque as Utopias são, pelo menos em parte, o Novo Mundo, os novos mundos a colonizar. Há um pormenor que me parece fundamental no edifício utópico (ou, devo insistir, num número significativo de utopias, já que não é um traço constante) e que tem sido muitas vezes ignorado: é que as utopias foram erigidas a partir da dominação ou da destruição de um povo “selvagem” que habitava anteriormente as ilhas utópicas. Não é que a utopia apresente diretamente uma justificação, ou que faça diretamente a apologia, da dominação, do extermínio ou da civilização dos povos “selvagens”. Mas isso está inscrito na sua ideologia e no seu imaginário, segundo os quais o “natural” deve ser civilizado, racionalizado.
A utopia foi, como disse, um dos polos das ideologias e dos imaginários europeus do período clássico. Ora o polo oposto é, precisamente, a idealização das sociedades “selvagens”, que é a exata negação de tudo o que a utopia preconiza: o ideal primitivista funda-se no louvor da ausência[3] de leis, de educação, de necessidade de racionalização; no louvor, enfim, de uma “generosa ordem natural”. Há, porém, um ponto comum aos dois ideais, uma ideia fundamental da radicalidade igualitarista do período clássico ‒ a ausência de propriedade. Mais simpático aos olhos de muitos de nós que a estrutura rígida, tentacular e totalitária que a utopia em grande parte é, este ideal contrário, primitivista, é um produto, afinal, da incapacidade de compreender o Outro (nesta época, sobretudo o nativo americano).
A partir do momento em que a ideia de História vem ocupar o lugar central do pensamento europeu, a utopia vai, progressivamente, deixando de se situar numa ilha distante para se situar num futuro mais ou menos longínquo. O “selvagem”, cada vez menos louvado como ideal, é deslocado pelo pensamento europeu para o extremo oposto da História: tornado “primitivo”, passa a habitar um tempo “anterior” ao nosso e, por isso mesmo, “inferior”.
No século XX, alguns intelectuais europeus começam a desmontar estas ideias e a utopia revela então outra face: em textos como o famoso 1984 de Orwell, torna-se distopia. Mas, no fundo, a distopia não é muito diferente da utopia ‒ foi o olhar sobre a utopia que mudou...
[Toda a exposição atrás é demasiado breve e demasiado esquemática e faltam-lhe, por isso, muitas nuances interessantes. Paciência. Num texto de blogue, porém, não cabe muito mais, acho eu. Muita da informação que aqui apresento é em segunda mão, porque eu, embora tenha lido algumas utopias, não as li em número suficiente para tirar tão abrangentes conclusões. O modelo de oposição entre utopia e primitivismo vem de Christian Marouby (Utopie et primitivisme. Essai sur l’imaginaire anthropologique à l’âge classique, Paris: Seuil, 1990, uma obra que me influenciou muito e que recomendo vivamente). Na Travessa, há um texto sobre as línguas das Utopias aqui, e estou a pensar fazer um texto mais desenvolvido sobre esse tema.]
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[1] Não tenho a certeza absoluta, mas tenho boas razões para acreditar que se trata de um trabalho de Furkan Şener que se encontra (ou encontrou) na Universidade de Başkent em Ancara (ver aqui ou aqui)
[2] Um utopista, Robert Burton, di-lo até muito diretamente no capítulo "An Utopia of Mine Owne" da sua Anatomia da Melancolia de 1621: Para ele, uma má situação geográfica era um dos fatores que causava a “melancolia” dos reinos que conhecia, pelo que a sua Utopia seria fundada num lugar remoto ‒ na Terra Australis Incognita, numa ilha do Pacífico Sul, no interior da América ou no Norte de África ‒  a cerca de 45 graus de latitude, para ter um clima temperado. 45 graus de latitude significa a utópica mesura: exatamente a meio caminho entre o polo e o equador! Não é dos paralelos 45 reais que se trata. Robert Burton talvez nem soubesse que regiões efetivamente atravessavam…
[3] É muito curioso verificar que este ideal primitivista é, ao contrário, da Utopia, construído negativamente: os povos naturais são bons porque não têm certas coisas (propriedade, hierarquias, leis, governo, roupas, pudor, etc.), que o primitivista identifica como culpadas do mal-estar europeu. A definição negativa do ideal não é nenhuma inovação da literatura primitivista, mas antes retomada do motivo clássico da Idade de Ouro, que também é sempre descrita negativamente.

09/03/13

Famílias


[Este blogue tem estado muito parado, por várias razões. Uma delas é que os textos parece que andam enguiçados - não me sai o que quero, não gosto do que escrevo. E este é o mais enguiçado de todos. Há meses que muda de forma e nunca mais o acho apresentável. Mas enfim, vai como está, a ver se quebro o enguiço. Talvez vocês possam ajudar-me a melhorá-lo...]
Familles, je vous hais ! foyers clos ; portes refermées ; possessions jalouses du bonheur.
 André Gide, Les Nourritures Terrestres, 1897
 
Famílias, odeio-vos! Lares fechados; portas fechadas; possessões ciumentas da felicidade. A frase é famosa. Nunca li André Gide e não sei onde ele quer chegar com ela, mas já a vi dezenas de vezes na minha vida. E creio saber donde lhe vem a fortuna: é que toda a gente, mesmo quem mais preza e louva a família, não pode deixar por vezes de sentir isso mesmo, que detesta a família, as famílias todas. Que nos traga muitas coisas boas, a família, não tenho dúvidas de que traz; que é fonte de conflitos e mal-estares, também tenho a certeza absoluta. Mas não é sobre a família em geral que aqui vos falo, que nestes textos de blogue não acabem assuntos tão vastos.
  

Vou contar-vos uma história verdadeira:
C. trabalhava na empresa da família. Era um dos diretores, abaixo do pai, e o principal estratega da firma. De facto, era ele o motor da firma. Para além de C. e do seu pai, trabalhava também na firma o irmão de C. Não era exatamente, aos olhos de C., o trabalhador mais competente, mas C. nunca pôs em causa que houvesse lugar para ele na firma. Fora do trabalho, C. e o irmão davam-se bem e, com as respetivas famílias, passavam juntos muitos fins de semana.
O pai de C. tinha da firma uma conceção radicalmente familiar, se me faço entender: achava que o irmão de C. devia entrar para a direção, porque era na direção o lugar natural dos membros da família. C. opôs-se, que era um grande disparate, que um cargo daqueles não se podia dar assim a alguém só por ele ser da família, que o irmão estava longe de ter as competências necessárias e que pô-lo na direção era desgraçar a empresa. Perante uma tão grande falta de respeito pelos valores sagrados da família (a “ciosa possessão da felicidade”), o pai de C. despediu-o. Ao fim de 20 anos de dedicação à firma, C. vê-se de repente despedido pelo seu próprio pai da firma de que é sócio.

A família nuclear sempre foi, em parte, um espaço de transmissão de saberes e sempre foi um círculo tão natural de favorecimento que só fora dela os favorecimentos são ilícitos. Pode criticar-se compadrio e nepotismo e não deixa de ser interessante que as palavras nepotismo e compadrio, para designar o favorecimento especial de pessoas próximas, tenham origem em termos que não designam as relações familiares ditas nucleares[1]. Nunca se ouviu criticar filhismo, padrismo ou hermanismo ‒ parece que o favorecimento de pais, filhos e esposos é tão natural que não pode ser criticado. Mas o facto é que, se a família sempre foi funcionando, melhor ou pior, como unidade empresarial, é claro que, como a história do meu amigo o prova, ser mãe, pai, filha, filho, irmã ou irmão não é hoje currículo que satisfaça gestores de empresas. Nunca devia ter satisfeito, não é?, mas antigamente a gestão de empresas não era saber técnico, era condição herdada, traço familiar.

Agora, parece-me a mim que não é só como unidade empresarial que a família se mostra amiúde pouco adaptada à realidade de hoje – também como unidade de segurança social para apoio aos mais velhos.
Há muito quem veja com maus olhos que as formas de solidariedade direta, ou mesmo a “generosidade”, tenham sido superadas pela reivindicação dos direitos abstratos. Falta-me informação: não sei se as formas de solidariedade direta existem hoje menos do que existiam e, se for esse o caso, não sei se se pode atribuir essa diminuição à instituição da formas de solidariedade mais abstrata (chamemos-lhe ação social). A ideia que tenho, porém, é que, no que respeita ao apoio aos idosos, a família nuclear se presta hoje mal a esse papel ‒ e provavelmente sempre assim foi…Vejo amiúde infiltrar-se muito romantismo na discussão, mas o facto é que, ao contrário do que muitos afirmam, foi em sociedades em que a assistência aos idosos depende exclusivamente ou quase exclusivamente da família que ouvi as mais terríveis histórias de maus tratos aos velhos ‒ e de velhices difíceis e tristes, enfim[2]. A mim (que não sou muito de acreditar no que se diz, mas que, como disse, tampouco tenho, por outro lado, dados concretos em que me possa fiar…) não me surpreendem essas histórias ‒ perturbam-me, isso sim, e acho que não deve ser assim.
 A família é um espaço de muitos afetos e de avaliações muito subjetivas de direitos e deveres. O dever de apoiar os familiares idosos resulta, em muitos casos, em conflitos insolúveis e em permanente mal-estar – e na ausência de cuidados efetivos. Dito de outra maneira, o direito a assistência na terceira idade não deve depender de afetos nem ser, mesmo parcialmente, condicionado por eles. Um passo fundamental é, parece-me a mim, deixar de contar oficialmente a família como provedor de apoio aos mais velhos. Há alguns meses, contava-me uma amiga minha, que é assistente social em Portugal, as muitas situações dramáticas que causa não dar apoio social a certas pessoas, por se contar como rendimentos delas os rendimentos dos filhos. É claro. Agora, obviamente, a solução não é controlar os filhos e obrigá-los a darem apoio aos pais, se o não quiserem dar. A solução é que os deveres de apoio sejam transferidos na totalidade para uma instância neutra ‒ o Estado.
Já agora, quero recordar a quem se insurge contra eles por “artificiais” ou “pouco humanos” que os sistemas “abstratos” de ação social fazem parte de uma categorial moral naturalíssima de todas as sociedades humanas: a reciprocidade indireta. Em qualquer sociedade, o altruísmo não funciona só relativamente a pessoas específicas ou dentro de círculos específicos de que se espera retribuição, mas existe também para com as pessoas em geral, esperando que as pessoas em geral nos façam bem. Contribuímos para os nossos familiares, obviamente, ao contribuir para todos. Numa formulação célebre, se vamos ao enterro dos outros, haverá quem venha ao nosso, mas não forçosamente aquelas pessoas a cujo enterro nós fomos. (Mais aqui.)

Tirando isso, e já que perguntam, a minha família vai bem muito obrigado, damo-nos muito bem, como todas as famílias, não é verdade?, e os meus filhos, em chegando a crescidos, lá farão a vida deles sem receberem cargos na empresa paterna, para grande sorte deles, e acho que não contam com muitas outras ajudas da nossa parte, também para sorte deles. E eu, por mim, em chegando a velhote (já não falta muito…), não só não espero como não quero ajuda direta deles, e é também é muito melhor assim, para todos nós.
(Também não conto deixar-lhes nada, até porque sou contra heranças, mas isso das heranças fica para outro texto, que este já vai muito comprido…)
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[1] Tenho perfeita consciência de que nepotismo pode, etimologicamente, relacionar-se com a família nuclear, já que o nepos latino cobre várias relações familiares entre as quais a de neto, de que é étimo; e que a palavra pode ser usada no sentido de favorecimento de membros da família próxima. Mas continuo a achar significativo que seja a palavra para neto ou sobrinho a única que se pode usar para designar o favorecimento de pais, filhos e irmãos. (Como podem ver, a Wikipédia também tem boas páginas. Onde se arranjaria, noutra enciclopédia, uma página tão simples e completa como esta?)
[2] “Na tribo aché do Paraguai, as mulheres idosas escutavam aterrorizadas os passos dos jovens cuja tarefa era surpreendê-la e destroçar-lhes os miolos com um machado”, diz Judith Shulevitz no seu artigo “Why Do Grandmothers Exist?”, publicado no The New Republic, de 29 de Janeiro de 2013. Pierre Clastres explica que, quando eram muitos velhos e não podiam acompanhar o grupo, se procedia a um tipo de “eutanásia” aprovado pelo grupo. Curiosamente, só as mulheres idosas eram mortas diretamente “com uma machadada na cabeça quando não estavam a olhar” ‒ os homens eram apenas abandonados (Pierre Clastres citado por Kim Ronald Hill e Magdalena Hurtado em Aché Life History: The Ecology and Demography of a Foraging People, Transaction Publishers, 1996). É óbvio que os velhos foram frequentemente considerados um peso, sobretudo em sociedades nómadas e de menos abundância, mas o caso dos aché é excecional e certos estudiosos realçam que os idosos sempre tiveram um papel ativo importante. As idosas, sobretudo. Há quem afirme que, se quisermos ver as coisas numa perspetiva puramente evolutiva, é antes exatamente ao contrário que as devemos ver (e perdoem-me o eficaz e risonho abuso retórico que se segue): os mais velhos existem para ajudar as famílias, não para serem ajudados por elas. O artigo de Shulevitz que referi atrás é interessante, como interessantes devem ser os estudos que refere. A “hipótese da avó”, de Kirsten Hawkes “defende que as mulheres depois da idade reprodutiva ajudavam não só os filhos como também os filhos dos filhos [tomando conta deles] e prolongaram desta forma a duração da vida humana”. Se esta hipótese evolutiva é feminista, como Shulevitz afirma (porque vem reforçar o papel das mulheres na nossa história evolutiva, nomeadamente, porque “faz desaparecer do cenário o homem-o-caçador”, uma vez que deixam de ser as calorias “da carne trazida da caça” as principais responsáveis pelo desenvolvimento do nosso cérebro de grandes dimensões) ou se vem antes reforçar a ideia de que o papel da mulher é cuidar das crianças, eis algo que se pode discutir.