Poul Henningsen
(1894‑1967), mais conhecido por PH, era um homem
de muitos talentos: foi crítico literário, jornalista, poeta, cineasta, letrista,
designer e arquiteto. É, sem dúvida um dos nomes importantes da cultura dinamarquesa no século XX. As suas criações mais conhecidas são provavelmente
os candeeiros, que começou a desenhar em 1925 e de que vos apresento aqui dois
dos mais famosos, ambos de 1958. A Alcachofra é um candeeiro
sofisticado, considerado por muitos uma obra-prima de design. Muito mais simples, o PH5 é,
provavelmente, o mais popular candeeiro dinamarquês. Ainda hoje se comercializa
e encontra-se em muitas casas (nós temos um).
A Alcachofra, à esquerda, e o PH5, dois famosos candeeiros de Poul Henningsen (imagens de Wikimedia Commons) |
Logo após a ocupação, no verão de 1940, escrevi “Man binder os på mund og hånd” para a Liva Weel, na revista Dyveke, mas para a música de um tango de Kai Normann Andersen, e não se costuma usar tangos para canções patrióticas. As preocupações eram bastante grandes.Foi também um bocado pérfido da minha parte. Só a última estrofe é que era a canção patriótica, ao passo que a primeira era sobre um amor altamente imoral e a do meio, que não está no disco, era um ataque violento ao sagrado matrimónio.As pessoas de bem tinham também de ouvir essas coisas desagradáveis para ouvir a estrofe patriótica, que Liva cantava emocionada perante um profundo silêncio do público. Mas foi, em parte, uma boa maneira de enganar os alemães, para eles não proibirem a música, e foi também, de minha parte, um pouco para provocar os burgueses. Não me apetecia dizer apenas o que as pessoas queriam ouvir.
Traduzo a
seguir a canção. É uma tradução em prosa e feia, aviso, que vos permite ficar a
saber o significado das frases (ou mais ou menos, porque às vezes sou obrigado
a fugir à literalidade em demasia), mas não vos dá nenhuma ideia do seu conteúdo
estético ‒ não sei traduzir isto como deve ser. Uma nota só
sobre o título, que é também a frase que inicia o refrão: traduzo por
“amordaçam-nos e atam-nos as mãos”, porque acho que em português não se pode
atar a boca às pessoas, mas, literalmente, é isso que o texto diz: atam-nos ou amarram-nos pela boca e pela mão. É esta ambiguidade que funda o texto: atam-nos pela
boca (o sim do casamento, as juras de amor) e pela mão (o anel, o gesto de
juramento?) podem entender-se também como amordaçam-nos (a censura) e atam-nos
as mãos (a prisão literal, a impossibilidade de agir?).
I. As crianças, gananciosas, querem deitar a mão a tudo o que brilha. As pessoas maduras prendem as outras com um anel. Quantas vezes não parámos com alguém, em frente a uma montra, a dividir as coisas expostas. Eu fico com isto, eu fico com isto! E a vida também é assim.Amordaçam-nos e atam-nos as mãos com as mil cadeias do hábito e é difícil libertar-se. Jogamos às escondidas com alguém que sabe proteger-nos da solidão. Com doces contratos, deixamo-nos levar. Se fosse proibido dizer “juro”, teríamos uma forma mais honesta de amar. As juras que fizemos, com palavras e gestos, só duram um breve momento, até a alegria desaparecer e tudo acabar.II. Amor e casamento: que tem uma coisa a ver com a outra? O bocejo vazio do tédio, até a boca não abrir mais. O amor é flor selvagem, murcha às mãos do jardineiro. Protegê-lo faz-lhe mal, mas floresce, ardente, na tempestade e na neve.Amordaçam-nos e atam-nos as mãos com as mil cadeias do hábito, mas ninguém pode ser dono de ninguém. Libertamo-nos. Em cada carícia há uma fuga, os sentidos ao rubro que fogem dos trilhos atarefados e batidos dos deveres. Eu não sou teu, tu não és minha. Os meus beijos não são sim nem não. As juras que fizemos, com palavras e gestos, só duram esse estonteado momento, que é precisamente o beijo que me dás tu de quem eu gosto.III. Ir ao encontro do que nos espera e ninguém sabe como as coisas correm; carregar o destino sem rejeição, venha o que vier; feliz com os gestos amigos, mas sem acreditar que são para continuar; procurar a paz, porque sabemos que não exigimos a paz.Amordaçam-nos, atam-nos as mãos, mas não se pode atar o espírito, e ninguém é prisioneiro, quando o pensamento é livre. Temos uma fortaleza interior que se fortalece com o seu próprio valor, quando lutamos por aquilo de que gostamos. Quem mantém a alma aprumada nunca pode ser escravo. Ninguém pode mandar no que nós próprios decidirmos. Isso juramos nós, com palavras e gestos, na escuridão que precede o amanhecer, que o sonho da liberdade nunca acabará.
Depois de tão
longa introdução, a canção propriamente dita, que começa ao fim do primeiro
minuto, depois da explicação de PH transcrita acima. As partes cantadas são a
só a 1ª e a 3ª do texto traduzido. Espero que gostem. Eu gosto muito. E embora até
aqui tenha falado só da letra, não é só da letra que gosto: também acho bonita
a melodia e acho que Liva Weel a canta muito bem.
No blogue Imagens com texto, J.J.Amarante tem uma série de posts sobre candeeiros dinamarqueses, incluindo os de PH.
______________________________Mesmo quando os navios se afundam, um após outro, e os países um após outro são arrasados, age-se com honestidade e cada qual reza ao seu deus. Tratados de paz e pactos de amizade são papéis que custam sangue. O fraco arma-se contra o forte, com a desesperada coragem que o medo lhe dá. Vale tanto para o amor como para a guerra: todas as juras são engano e ninguém pode confiar na palavra de ninguém.O que ajudaram os apertos de mão que deram àquela que ali está junto da sepultura do marido? Uma pessoa não vale nada perante a terra sagrada.Medo dos nossos inimigos? Sim, mas mais medo da grande potência que nos quer ajudar e nos chama amigos. É assim nas guerras de todos os tempos, as garantias são enganos apenas e ninguém pode confiar na palavra dos Estados.