Nos anos 60, surgiu, em inglês, a expressão graphic novel para designar um certo tipo de banda desenhada a que se aplicavam mal as designações tradicionais, como comics ou funnies. Só em finais da década de 80, porém é que a expressão começou a ter grande divulgação. Não sei com que prontidão as expressões romance gráfico e novela gráfica foram adotadas em português (a primeira mais no Brasil, a segunda mais em Portugal), mas são hoje expressões habituais. Quero fazer aqui duas pequenas observações, antes de passar ao romance gráfico que aqui me traz:
A primeira é sobre a designação portuguesa das narrativas com sequências de figuras complementadas ou não por balões e caixas de texto. Banda desenhada, a expressão que uso por (mau!) hábito, parece-me bastante infeliz. Má tradução de bande dessinée, usando os cognatos das palavras da expressão francesa, banda desenhada refere de facto as historietas que eram publicadas em tiras diárias ou semanais – e erradamente, porque sempre lhes ouvi chamar tiras, precisamente, e nunca bandas. É preferível, apesar de tudo, a outra designação mais popular de histórias aos quadradinhos, embora seja melhor ainda a expressão brasileira, histórias em quadrinhos, pela preposição em (em episódios, em fascículos, etc.) e pelo nome, já que é de quadros e não de quadrados que se trata.
A segunda nota é sobre as expressões romance gráfico e novela gráfica. Também novela gráfica é uma má tradução usando o cognato português da palavra inglesa novel, e romance gráfico é que é, pois, a tradução correta. Agora, é certo que, pela relativa linearidade do enredo e pela sua brevidade, os romances gráficos são antes, na maior parte dos casos, contos gráficos ou novelas gráficas.
E este segundo apontamento traz-me, precisamente, à história de que vos quero falar, Une vie chinoise, de P. Ôtié [Phillipe Autier] (guião) e Li Kunwu (desenhos)*: acabo de ler um verdadeiro romance gráfico – 723 páginas, uma BD de fôlego.

Uma vida chinesa é uma a quase-autobiografia do ilustrador Li Kunwu e pretende ser a história da vida de “um chinês comum” como exemplo da vida dos chineses entre 1955 e 2010. Mas não tem ambições de ser descrição histórica ou análise sociológica: é apenas uma sucessão relativamente fragmentada de episódios de vida, de várias vidas. O autor do guião, o francês Phillipe Autier, recusa-se a fazer de Li Kunwu e das outras personagens principais apenas tipos sociais planos; e as personagens têm, dentro dos limites deste tipo de narrativa, uma relativa densidade.

Ainda assim, dos aspetos mais caricaturais aos mais tenebrosos, dos desmedidos anseios aos desenganos, num olhar que é, ao mesmo tempo, de simpatia e de crítica, externo e interior, não há nada muito linear em Uma vida chinesa e a única coisa que é mesmo a preto e branco é o excelente desenho de Li Kunwu – um traço em que se fundem a tradição de ilustração clássica chinesa, a estética épica e kitsch da propaganda comunista e uma vontade de modernidade que perverte esses dois conjuntos de convenções.
Agora, pode discutir-se se vale a pena uma banda desenhada tão longa para contar o que esta conta. Talvez a narrativa se arraste demasiado, aqui e ali. Mas, no geral, não se sente que perde ímpeto ou que se despacha no fim, como acontece às vezes às narrativas longas. A mim, o desenho de Li Kunwu não me cansa e achei o 3º volume o mais bonito do ponto de vista gráfico.
Tenho pena de não poder apresentar-vos aqui uma seleção minha de partes da obra. Como o formato dos livros não me permite digitalizar as imagens com qualidade, tive de me limitar ao que encontrei na Internet com uma resolução razoável. Mas espero que chegue para dar, a quem não conhece Uma vida chinesa, uma ideia da estética de Li Kunwu e vontade de ler a obra.
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* Edição original: Paris: Kana (Dargaud-Lombard, 2009 (tomo 1 e tomo 2); 2011 (tomo 3)
** Pode ler-se/ver-se esta parte da obra na terceira secção do artigo de Nick Stember “Putting 25 Years of Silence in Context with Comics and Animation”
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