Pois é: sabemos que é paradoxal a regra “não há regra sem exceção” (se toda a regra tem exceção, então essa regra tem de ter uma exceção, que é a regra sem exceção, pelo que nem toda a regra tem exceção), mas continuamos, nem que excecionalmente, a aceitar como regras regras com exceções, não é verdade?
Nisto de regra e exceção, há, por regra, alguma confusão. Muitas vezes, a confusão advém de a palavra regra ter dois significados (ou mais, mas que não importam nesta discussão), conforme se aplique ao que as coisas são (as leis da Física, por exemplo) ou ao que as coisas devem ser (por exemplo, o Código Civil).
Na discussão sobre língua, para puxar a brasa à minha sardinha, uma coisa são as regras que constatamos ao estudar a capacidade humana da linguagem e cada uma das línguas particulares em que esta capacidade se organiza e manifesta, e outra coisa diferente é a norma ou normas linguísticas vigentes numa determinada sociedade. Quando digo que, no português europeu, a marca de plural toma a forma /ʃ/, /ʒ/ ou /z/ consoante o som que se lhe segue, estou a enunciar uma regra do primeiro tipo (leiam respetivamente ch, j e z, se vos atrapalham estes símbolos fonéticos e, se vos parecer estranho, atentem em como pronunciam o s a negrito em “as casas castanhas”, “as casas brancas” e “as casas azuis”). Mas, se alguém disser, por exemplo “não se deve dizer «pode-se dizer», deve dizer-se «pode dizer-se»” está a propor uma (discutível) regra do segundo tipo.
Quando se diz que uma regra referente ao mundo natural tem exceções, isso significa, em princípio, que essa regra não é uma verdadeira regra, mas sim uma pseudorregra simplificada – porque não se conhece a verdadeira regra ou por razões didáticas, por exemplo. Quando se diz que uma regra moral (em sentido lato, incluindo as leis) tem exceções, estamos a constatar que há quem não a respeite ou a acrescentar uma adenda à regra, uma regra suplementar: “esta regra pode não se respeitar nas seguintes condições:..”
A célebre máxima “as leis existem para ser violadas” não passa, ainda assim, a ter valor de verdade quando se constatam que existem, na maior parte dos casos, adendas às regras, que se percebem como exceções ou simplesmente desrespeito pontual das mesmas regras, pelos mais variados motivos. Ser violada não é finalidade de regra nenhuma nem seu constituinte necessário, é apenas um acidente extremamente frequente – se me perdoam a disparatada cacofonia…
Parece-me claro que, para a maior parte das regras – mesmo para as leis escritas –, se pressupõe, ou deveria pressupor-se, que deve ser o bom senso a imperar na sua aplicação. Eu, por exemplo, tenho para mim que a regra de não atravessar a rua quanto o sinal está vermelho só se deve de facto respeitar quando se verifica pelo menos uma de três condições: i) haver crianças por perto ou outras pessoas que ainda estão a aprender a interiorizar a regra, porque senão aprendem o que não devem; ii) haver veículos a circular na faixa de rodagem, porque senão pode ser-se atropelado ou causar acidente; e iii) haver por perto algum agente da autoridade, porque senão pode ser-se multado ou punido de outra forma. De resto, não há razão para não atravessar.
Como dizia uma amiga minha, se é importante, ao educar uma criança, ser firme na imposição de regras (para a criança interiorizar o conceito de regra e, em certos casos, para aprender as regras em questão; e ainda, numa perspetiva mais imediata, para facilitar a vida aos educadores e à própria criança), também é importante abrir uma por outra vez exceções às regras impostas, para a criança aprender que uma regra não deixa de o ser quando é esporadicamente desrespeitada.
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