Também começaram a circular, há uns tempos, excertos do “Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX”, de Almada Negreiros (Portugal Futurista, 1917[2]). É um texto estranhíssimo, a espaços assustador[3]. Não é minha intenção analisá-lo aqui, mas quero referi-lo como exemplo daquilo que eu chamo uma apelativa suspensão da racionalidade.
Eu não tenho culpa nenhuma de ser português, mas sinto a força para não ter, como vós outros, a cobardia de deixar apodrecer a pátria.A primeira parte da frase está certa, embora se perceba mal o uso da palavra culpa. Espera-se a negação de culpa relativamente a características ou ações consideradas negativas, não é verdade? Se dissermos Ele não tem culpa de ver mal ou Ele não teve culpa de ter deixado entrar a bola, assumimos que ver mal ou deixar entrar a bola são coisas negativas. Como pode Almada Negreiros, em pleno fervor nacionalista, assumir a portugalidade como algo negativo de que não tem a responsabilidade? Não se espera antes, neste tipo de discurso, uma asserção como «Eu sei que não sou português por decisão própria, mas…»? Talvez o uso de culpa tenha implícita uma crítica aos outros portugueses que têm a “cobardia de deixar apodrecer a pátria” – talvez Almada Negreiros pretenda implicar que é assim que esses tais cobardes sentem a sua portugalidade, como uma culpa… Também a ligação lógica entre as duas proposições da frase me surpreendeu: deve esperar-se uma correlação positiva entre a culpa de ser português e a força de não deixar apodrecer a pátria? Pode ser apenas que Almada Negreiros seja bastante descuidado na sua lógica, e que, por isso, não valha a pena tentar encontrar o meio dia às quatro da tarde, como dizem os franceses; ou, neste caso, encontrar lógica e coerência num texto que prima pela emotividade pré-racional e pela incoerência... O certo é que textos como este são altamente apelativos: quando é de apelo ao patriotismo que se trata, suspende-se muitas vezes a racionalidade, pondo-se a dedicação incondicional à pátria como valor a priori (Almada Negreiros, mais adiante no mesmo texto: «[O] patriotismo condicional degenera e suja; o patriotismo desinteressado glorifica e lava.»). Qualquer pessoa, porém, que recuse a infantilidade do adquirido acriticamente como forma de orientar a sua conduta tem, mais que direito, o dever de ser interrogar: que boas razões há para ser nacionalista ou patriota [4][5]?
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Acompanhando de longe a reação do meu círculo de relações à situação de crise em Portugal, vejo surgir em vários amigos meus que nem considerava especialmente nacionalistas um nacionalismo assertivo, por vezes eivado, ainda por cima, de um confrangedor discurso antialemão e antieuropeu. Agora, por muito que nem sempre seja agradável e chegue, às vezes, a ser aterradora, essa efusão nacionalista não me surpreende por aí além. Tempos de crise exacerbam sempre o nacionalismo. Uma das respostas mais imediatas ao que se sente ser o degradar da nação é a exortação ao patriotismo heroico de salvação nacional – algo em que uma parte da esquerda nunca se distinguiu da direita, aliás… Quero deixar claro que sou também fortemente crítico das políticas do atual governo, das medidas austeritárias em geral e da obsessão da economia neoliberal que domina muitos dirigentes europeus. Mas entristece-me ver as pessoas suspenderem a racionalidade, como o Almada Negreiros do texto acima, ao ponto de se recusarem a analisar a situação atual, reduzindo-a a um mal permanente, intemporal, ou a amalgamarem a CDU alemã com a Alemanha ou o povo alemão, o predomínio da ideologia neoliberal na União Europeia atual com a própria União Europeia. Esta amálgama encerra, aliás, uma contradição fundamental: seguindo a mesma lógica e identificando a nação e o povo portugueses com o seu governo atual, que recusam, deveriam também recusar Portugal… Mais uma vez, para aceitar este tipo de generalizações nacionalistas, é preciso mesmo suspender a racionalidade.Tudo isto é óbvio e foi já muitas vezes repetido. Também já expliquei aqui que não acredito em conceitos trans-históricos ou a-históricos de identidade nacional, que haja alguma coisa essencial que me faça semelhante aos portugueses de há três, cinco ou sete séculos; e que também não acredito em identidades nacionais em bloco: sou muito mais parecido, mas muito mais!, com muitos alemães que conheço que com outros portugueses da minha geração. Juntando isto tudo, sou, enfim, um português sem vergonha nem orgulho nenhum de o ser. E vejo mal como poderia ter uma atitude diferente se fosse croata, balúchi ou filipino… Mas, por banais que sejam, aqui ficam estas observações, nem que apenas como notas a que possa rapidamente lançar mão para alicerçar futuras discussões sobre o tema.
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Não sei até que ponto o que se segue é menos banal. É, em certa medida, um aparte, mas diz também respeito à discussão do nacionalismo. Quero defender aqui que, seja em que circunstâncias for, não acho correto defender ou criticar um programa de governação por ele favorecer ou desfavorecer uma nação. Um amigo meu defendia uma vez, respondendo a uma crítica minha à atuação do ministério dos negócios estrangeiros de um determinado país, que essa atuação se justificava, porque estavam a defender os interesses do seu país. Ora, para uma pessoa que, como eu, entende a política com uma parte da ética, um programa político só pode ser louvado ou condenado por estar ou não de acordo com os princípios – éticos em sentido lato – que essa pessoa defende. Aceitar que a defesa dos interesses nacionais é fundamento suficiente para a atuação política implica considerar que mal ou bem ou não contam ou não são atributos do que se faz, e que a mesma ação possa ser julgada de duas formas diferentes consoante quem a executa e a favor de quem.
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Não me entendam mal: não tenho nada contra uma pessoa gostar do sítio onde nasceu, como não tenho nada contra uma pessoa gostar de pais e irmãos e amigos de infância. Acho natural que gostemos daquilo com que convivemos há muito tempo, daquilo que conhecemos bem: “familiaridade gera gosto”, dizem, vertendo assim, não sei se da melhor maneira, familiarity pelo seu cognato português… E é assim mesmo, gostamos do que o acaso nos pôs na vida, como havia de ser doutra maneira? Aliás, distinguir entre esses afetos resultantes apenas de uma fortuita proximidade e outros afetos escolhidos (“não se escolhe a família, mas escolhem-se os amigos”, etc.) é provavelmente uma distinção artificial, porque ninguém escolhe de facto gostos nenhuns – em última análise, é sem grande sentido a ideia de haver uma entidade exterior ao eu que gosta a decidir de que gosta esse eu. Mas adiante. Não tenho absolutamente nada contra gostar-se da sua terra em geral, ou de aspetos particulares da sua terra, nem tenho nada contra não gostar dela, ou de alguns dos seus aspetos, ou ser-lhe indiferente; como não tenho nada contra não gostar de pais e irmãos ou ser-lhes indiferente, se isso acaso acontecer… Gosta-se do que se gosta e pronto, não vejo nisso nenhum mal nem nenhum bem. Não é que não haja nada a fazer relativamente aos gostos que temos, porque há sempre algo a fazer quando nos inquieta gostar do que gostamos ou vice-versa (no gosto não há moral; e a moral não deve subjugar-se ao gosto, acho eu), mas, enfim, que se goste do que nos é familiar, repito, isso eu compreendo. Aquilo com que não concordo é que se infiram do gosto deveres e valores.
Também compreendo que toda o empenhamento cívico ou político tem de ter um âmbito e que uma das escolhas mais razoáveis é empenhar-nos na comunidade em que mais imediatamente nos inserimos, incluindo, claro está, a nação. Mas essa escolha não implica nenhuma das atitudes nacionalistas que critico neste texto._____________________________
[1] Têm tido grande fortuna os excertos de “Uma campanha alegre”, de Eça de Queirós, e do “Balanço patriótico” das “Anotações” a Pátria, de Guerra Junqueiro, que aqui aparecem os dois numa única página da Internet.
[2] Pode ler-se aqui o texto integral.
[3] Assustam-me, por exemplo, os seguintes incitamentos:
Fazei predominar os sentimentos fortes sobre os agradáveis.[4] Fui buscar o termo infantilidade e uma parte da formulação deste parágrafo à discussão proposta aqui por Aires Almeida.
Tende a arrogância dos sãos e dos completos.
Fazei a apologia da Força e da Inteligência.
Fazei a apoteose dos Vencedores, seja qual for o sentido, basta que sejam Vencedores. Ajudai a morrer os vencidos.
[5] Em rigor, podem distinguir-se estes dois conceitos e até afinar-se ainda mais a distinção entre vários tipos de sentimentos positivos pelo seu país, mas não o farei aqui.
2 comentários:
Defender os interesses duma nação não deve ser à custa dos interesses das outras. Quando muito, e uma vez que não existe um governo mundial, a defesa de um interesse corresponde à escolha de um caminho que parece mais adequado a uma dada comunidade, sem a necessária concordância de outra comunidade.
O que eu acho particularmente deplorável na situação que temos vivido na Europa é considerar virtuoso e sustentável a existência de superavits sistemáticos em alguns dos membros da UE, como se pudesse existir um mundo em que todas as nações tivessem superavits nas suas relações económicas com as outras nações. E existirem programas rigorosos de ajustamento para os que têm deficit e não existirem programas equivalentes para os que têm superavit.
No outro dia estive com um alemão que, como já vivia há 20 anos no Alentejo, se considerava justamente um alemãotejano.
Alemãotejano é uma grande palavra! Quanto ao resto, o seu comentário parece-me perfeitamente justo. É provável que a ideia de nação e a respetiva estrutura deliberativa prevaleçam ainda durante muito tempo, mas há muitas áreas em que se vê cada vez menos como podem ser tomadas decisões ao nível nacional, quando se constata uma tão grande interligação entre todos os países.
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