A Paródia, Ano 1, N.º 1, 17 Jan. 1900, p. 5, na Hemeroteca Digital |
Para não sair da página da Paródia aqui ao lado [clicar para ver em maior], socego e aceio voltaram a ter os ss que lhes vêm de *sessicare e *assedare, que se pensa que deram, respetivamente, sossegar e assear. É claro, pode sempre duvidar-se, porque são formas não atestadas (quando virem um * antes de um étimo, significa que se pensa ser esse o étimo, mas nunca se encontrou a palavra escrita em texto nenhum). É certo, porém, que, recuando mais no tempo, é com ss e não com c que sossego se escreve. Para continuar na página da Paródia, e aproveitando a citação dos Lusíadas que lá vem, podemos comparar com a grafia da primeira edição da obra de Camões. Se, em edições oitocentistas dos Lusíadas, estava a “linda Ignez” “posta em socego”, na primeira edição da obra, a linda Ines – sem g, sem z, sem acento – estava “posta em sosego”. Assim mesmo, com um s apenas, não é gralha. Ou antes, é provável que seja, mas não gralha minha. E é uma gralha que se repete três vezes*, mas, se calhar, não havia revisores naquele tempo. Seja como for, predominam no texto as formas com ss, por exemplo em «Iulga qualquer juyzo sossegado» e em mais 8 ocorrências do radical sosseg-. Assinalo, de passagem, que este y de juyzo não é etimológico e uso essa anomalia como ponte para o regresso a 1911 e ao tema do meu texto:
Houve ii etimológicos que foram também repostos na reforma ortográfica republicana, como é o caso de lyrio ou lagryma, que voltaram a escrever-se com o i de liliu- e lacrima- (que é também, já agora, como se escreviam no tempo de Camões**). Ainda a propósito de yy, também cysne abandonou uma pretensa etimologia latina para passar a escrever-se como no francês antigo de que parece provir em português e castelhano. (É também cisne, note-se que se escreve na edição original dos Lusíadas: «A longo da agoa o niueo Cisne canta».) Mas, claro, quem goste de considerar as etimologias últimas e não as imediatas, achará que é de cycnus ou cygnus que a palavra vem…
Para essas pessoas, porém, podemos dizer (e agora, que me caiam em cima o Carmo e a Trindade, embora, juro, a intenção não seja provocar mas apenas tirar peso à conversa) que, no caso das palavras de origem grega, também o desaparecimento de th e ph é um restaurar da etimologia, pois não havia no étimo último duas letras que correspondessem a tais dígrafos. Transcrever ɸ por ph é um bocado sem razão, venha de que tradição vier, e perfeitamente desnecessário na latina; quanto a transcrever θ por th, se mais compreensível, por falta de símbolo latino adequado, não tinha, claro está, nenhuma vantagem em relação a uma transcrição por apenas t. (A julgar pela maneira como os portugueses pronunciam o som /θ/ em inglês ou castelhano, a transcrição mais natural de θ é, para nós, um s, eh eh eh…)
[Risos, uns francos e ruidosos, e outros bastante amarelos, sem som absolutamente nenhum; aplausos e apupos; desce o pano. E ouve-se outra voz:]
Para continuarmos nesta página de paródia… perdão, da Paródia, se a grafia tem mesmo influência na pronúncia, como insistem em afirmar alguns, temendo, pelos vistos, que se abatam cataclismos incontáveis sobre a maneira de dizermos certas palavras por causa da nova maneira de as escrevermos…, foi só por muita sorte que época, depois de ter-se escrito epocha tanto tempo, não passou a pronunciar-se [e’poʃɒ]. Ufa, e ainda bem!
[Mais ruídos diversos, semelhantes aos anteriores, de trás do pano.]
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* «Mas o velho a quem tinhão ja obrigado / Os trabalhosos annos, ao sosego», «Torna a dormir quieto & sosegado» e «Affonso que não sabe sosegar»
** Entre muitas outras ocorrências, em «Mas moura em fim nas mãos das brutas gentes, / Que pois eu fuy: & nisto de mimosa / O rosto banha, em lagrimas ardentes». Ups, outro y não etimológico em fuy, muito imaginativas eram estas grafias.
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