25/01/16

Votos de Dharmakāra

[Não é um texto meu. É um texto feito com bocados de textos de outras pessoas — feitos, dois deles, com base em textos de outras pessoas... A Internet potencia a criação de hipertextos, não é? Ou então é a facilidade de selecionar, clicar à direita e pesquisar em Google que torna mais óbvia a relação entre os textos.]

[Diz a Wikpédia que Amitābha foi, noutro tempo e talvez noutro mundo, um monge chamado Dharmakāra que decidiu obter para si uma Terra Pura, um mundo criado pelo mérito de um buda. Dharmakāra definiu em 48 votos a Terra Pura que queria criar, ou seja, as condições em que os seres vivos renasceriam nessa terra e que tipo de seres seriam quando lá renascessem. Dos votos de Dharmakara*:]
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Se, depois de eu atingir o Estado de Buda, os humanos e os deuses da minha terra suscitarem pensamentos de apego a si próprio, que eu não atinja a perfeita iluminação.
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[Em Myths & Texts (1960), Gary Snyder exprime de forma admirável a sua conceção da Terra Pura**:]
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Se, depois de eu atingir o Estado de Buda, alguém na minha terra alguém ficar sem um dedo a atrelar vagões de carga, que eu não atinja a mais alta e perfeita iluminação

[A 28 de outubro de 2010, no seu blogue Sweep the dust, Push the dirt, John Pappas acrescentou os seus votos aos votos anteriores:]
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Se, depois de eu atingir o Estado de Buda, alguém na minha terra for conspurcado ou desprezado por ser cético ou livre-pensador, que eu não atinja a mais alta e perfeita iluminação
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* Traduzo eu do inglês. A minha tradução é inspirada na tradução de “Amitabha’s Vow” de Gary Snyder que Manuel de Seabra fez para a Editorial Futura (1973). Os três textos aqui referidos e esquartejado, podem e devem ler-se na sua versão integral na página de blogue de John Pappas que me inspirou. Pode até dizer-se que me limitei a condensá-la.
 ** O meu avô paterno perdeu mais que um dedo a atrelar vagões — perdeu a vida.

10/01/16

Coisas de somenos importância em tradução

Circula por aí (quer dizer, não sei se circula muito, mas eu vi) um fotograma da transmissão do discurso de Ano Novo de Angela Merkel num canal de televisão inglês, em que as legendas dizem: «This New Year’s Eve, I’d like to say one word: Thank you![1]»

Não sei se o erro se deve ao uso de um tradutor automático, como alguns propõem, ou a um automatismo de algum tradutor, mas é um problema antigo este da «tradução» do discurso metalinguístico, ou seja, de quando o que se diz ou escreve se refere, pelo menos em parte, à própria língua em que está a ser dito ou escrito. Imaginem que é preciso traduzir para inglês um texto em que se diz:

«Sim, lembrem-se de que a língua em que leem isto é a língua de Camões, mas também é a língua da minha avó Belmira.»

Posso «traduzir» Camões por Shakespeare, se der ênfase à relação entre as línguas e os seus utentes mais famosos, mas é provável que isso me leve a grandes confusões na continuação do texto... Além disso, se a minha avó Belmira entra na frase como representante do linguajar popular, dificilmente um falante típico do inglês popular se chamará Belmira. Ou posso traduzir tudo «literalmente» e deixar Camões e Belmira na tradução, se quiser dar ênfase ao facto de ser do português que se está a falar, mas crio um semiabsurdo, porque a língua em que a frase está escrita não é a língua de Camões nem da minha avó Belmira. Digo semiabsurdo, porque posso contar com um fator exterior à tradução para me decidir por esta última opção: a consciência do leitor de que está a ler uma tradução, que desfaz relativamente o absurdo[2].

Mas enfim, problemas destes não se põem muitas vezes ao tradutor. Há outros, porém, ainda mais extralinguísticos, que surgem com bastante frequência. Aliás, é por isso que, ao trabalho que eu faço, que antigamente se chamava apenas tradução, se chama agora muitas vezes tradução e localização. Pode parecer picuinhice, mas não sei se será… Um exemplo:

Tenho de traduzir «The Ramas now control the natural resources in an area the size of Funen in Denmark.» Os Ramas são um grupo étnico da Nicarágua, mas isso é explicado antes, e a ilha dinamarquesa de Fyn (Funen em inglês) chama-se Fiónia em português. Por razões que não interessa aqui explicar, o texto original destinava-se a dinamarqueses, mas a tradução é para ser lida por moçambicanos. «Do tamanho da Fiónia?» Se o trabalho do tradutor fosse só traduzir, era obviamente isso que devia escrever, «do tamanho da Fiónia», porque é essa a tradução. Mas, para um moçambicano «normal», isso não faz o sentido que faz o texto original para um dinamarquês. Na realidade, para um moçambicano «normal», «do tamanho da Fiónia» não faz sentido nenhum.

É aqui que começa o trabalho de localização. Tenho de traduzir não o significado da frase, mas o sentido que ela faz para o público-alvo. Mais por brincadeira, ponho a questão a uns amigos.

Um sugere-me usar «a unidade-padrão mais em voga nos jornais»: uma área de cerca de 420.000 estádios de futebol. Bom, é certo que os moçambicanos que vão ler o artigo conhecem estádios de futebol, mas fico com muitas dúvidas sobre esta maneira de dizer as coisa…

Outro propõe-me comparar com um distrito de Moçambique. Também não é má ideia. «O distrito de Sussundenga», diz ele, «tem cerca de 7.000 km²». Podia escrever «um pouco menos de metade do distrito de Sussundenga», mas a maior parte dos moçambicanos não faz ideia nenhuma do tamanho do distrito de Sussundenga. Teria de arranjar uma parte de Moçambique de cujas dimensões os moçambicanos tenham uma ideia tão clara como os dinamarqueses têm do tamanho da Fiónia. Que parte de Moçambique será essa?

Acabo por traduzir «Os Ramas controlam agora os recursos naturais de uma área de cerca de 3.000 km²», mas sem certeza nenhuma de que é a melhor… localização.

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[1] Penso que muitos concordarão que a tradução correta é «I’d like to say two words: Thank you!» Pode traduzir-se Danke por uma palavra apenas, thanks, mas isso muda o registo do enunciado, que se torna mais informal. Thank you fica muito melhor neste contexto e «duas palavras» continua a querer dizer «de forma muito concisa».
[2] Já aqui falei disto uma vez, num texto sobre coisas difíceis de traduzir ou, em última análise, realmente intraduzíveis — que não são de modo nenhum as míticas «palavras intraduzíveis» que fazem correr tanta tinta (mal empregada…).




Às escuras

A minha filha Joana dizia um dia destes ao jantar que gosta de estar no quarto de luz apagada, mas que eu, quando lá entro e a vejo assim, lhe digo sempre a mesma coisa: «Então, estás aqui no escuro?»

A Joana é dinamarquesa, para quem não saiba. A frase «Então, estás aqui no escuro?» está correta e ela pronuncia-a bem, sem sotaque estrangeiro. Aquele «no escuro», porém, chama-me a atenção. Ele sempre me ouviu dizer a mesma frase (ela tem agora 13 anos), mas nunca foi essa a frase que ela ouviu: eu digo sempre «às escuras» quando quero dizer «de luz apagada». Quer dizer, não é impossível que ela tenha ouvido dizer «no escuro» a outras pessoas, com esse mesmo sentido, mas é bastante improvável que o tenha ouvido muitas vezes.

Há duas possíveis explicações: uma é que seja a influência do seu dinamarquês materno que a leve a dizer assim: «no escuro» é a transposição direta do «i mørket» dinamarquês; outra é que crie ela próprio a forma regular portuguesa, a partir do léxico e regras que tem interiorizadas. E digo «regular», porque «às escuras» é obviamente uma expressão cristalizada, desviante em relação à lógica mais comum do português (no quarto, na escuridão…). Uma expressão idiomática, se preferirem, que se aprende inteira.

O que é preciso para produzir expressões que vão contra as regras que se aprenderam, não sei. É uma discussão muito complicada. Mas parece certo que têm de ouvir-se muitas vezes. Numa situação como a da Joana, para quem o português não é exatamente língua estrangeira, mas também não é uma língua com que tenha ou tenha tido muito contacto, parece que, quando a expressão idiomática compete com uma construção semelhante vinda da gramática interiorizada, é esta última que ganha.

Também é preciso ver que se aprende a dizer «no escuro» com muitas frases em que entra a preposição em e/ou o nome escuro, mas só se aprende a dizer «às escuras» ouvindo precisamente essa expressão ― ou ouvindo a expressão «às claras», desconfio.

Velhice [Crónicas de Svendborg #24]

A morte não custa, o que custa é envelhecer, cantava Brel: «Mourir, cela n'est rien / Mourir, la belle affaire / Mais vieillir... Ô, vieillir…» A canção é do último disco, gravado em 1977 já com a morte à vista. E é de morte que fala o texto da canção, não de velhice. Para que servirá este refrão?

 

Uma expressão de que gosto para referir a velhice é «ir para a idade»: «Ah, agora já estou a ir para idade, já há muita coisa que eu não posso fazer.» Se pensarmos nisso, a expressão dá conta de uma verdade fundamental: só a velhice é que é idade-idade, aquilo que se pode chamar idade. Antes de lá se chegar, há uma pré-idade, digamos assim: vai-se fazendo anos, mas a quantidade de vida que se concebe diante de si próprio pouco ou nada se altera — é sempre «a vida toda»...

Não há consenso nenhum sobre quando começa a velhice, até porque não é nada que aconteça assim de repente. Há uma altura em que se é velho, mas não se é ainda mesmo velho. Depois, vem uma altura em que a velhice é apenas óbvia, um facto simples da vida. Uma boa definição de velhice (continuo o meu papel natural de divulgador da cultura dinamarquesa nestas Crónicas de Svendborg) é a do poeta Halfdan Rasmussen, que ele escreveu já com mais de oitenta anos*:
«Velhice é quando uma pessoa se dobra para atar os sapatos e pensa: “Não haverá mais nada que eu possa aproveitar para fazer aqui em baixo, já que aqui estou?”»


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Fica aqui o link, mas é mais para mim, se eu um dia quiser saber onde fui buscar isto, que para vocês, a não ser que saibam ler dinamarquês...

E o bonito, onde está?

Pamela Joseph. Censored Nude Descending a Staircase, 2013.
(do site da pintora)
Uma ideia que, ao que vejo, tem tido grande fortuna é que podem observar-se as formas decorrentes da sequência de Fibonacci num número muito grande de objetos naturais e obras artísticas. Há muito exagero na afirmação, mas não é minha intenção desmontar aqui esse exagero, até porque já houve muita gente a fazê-lo e bem feito[1]. Agora, pelo que tenho visto, parece-me que, paralelamente à ideia da «ubiquidade» da chamada «proporção de ouro» na natureza e na arte, está também bastante divulgada a ideia de que as formas de criações da natureza ou dos humanos que nela se baseiam são naturalmente reconhecidas pelas pessoas como elegantes ou belas — que haveria algum tipo de «magia» nessa proporção. E acho que merece escrutínio e discussão a ideia de que há padrões anteriores a qualquer obra que determinam, pelo menos parcialmente, a sua beleza — sejam esses padrões a espiral resultante da «regra de ouro» ou outros quaisquer, em qualquer tipo de criação estética: tons, escalas ou timbres musicais, figuras de discurso, temáticas ou motivos literários, formas e cores, e as suas combinações, etc., etc.[2].

De ideias deste tipo pode derivar-se, por exemplo, que ser artista é aprender a seguir esses universais, essa beleza natural preexistente a qualquer obra. A ideia de que a proporção de Fibonacci cria naturalmente beleza é algo bizarra, mas não é o mais, se virmos bem, do que a ideia geral de que há padrões de equilíbrio ou bom gosto — se não universais, pelo menos muito abrangentes — que um artista deve dominar. A minha posição é que não se pode descartar a possibilidade de haver mecanismos inatos comuns a todos os humanos que moldam ou organizam a nossa conceção do belo; e que o seu conhecimento e análise devem, naturalmente, fazer parte da aprendizagem artística, e da crítica e da história da arte; mas que este mecanismos apenas contribuem, quando contribuem, para nos fazer achar bela uma obra de arte, não determinam a nossa noção de belo; e creio que muitas vezes a consciência não tem acesso fácil a estes mecanismos. Acho, por exemplo, que merecem atenção as propostas da chamada estética evolutiva, de Denis Dutton e outros, que defendem que as preferências estéticas evoluíram, como o resto de nós, para «nos levar a tomar as decisões mais adaptativas para a sobrevivência e para a reprodução». Mas é outra conversa completamente diferente, que não implica nenhuma mística de equilíbrio cósmico e, se tem algo em comum com a ideia da beleza universal de sequências matemáticas e proporções geométricas, é que explica muito pouco da beleza de cada obra: saber que certo tipo de paisagem é recorrente em arte porque o cérebro humano evoluiu nessa paisagem não explica porque é que às vezes achamos fascinante a representação dessa paisagem, outras vezes desinteressante apenas e às vezes mesmo feia, tal como as proporções decorrentes da sequência de Fibonacci não produzem forçosamente equilíbrio e elegância.

Muita gente dirá, aliás, que este tipo de crenças é errado e perigoso, que a criação estética — e a experiência estética em geral — assenta precisamente no contrário, no deslumbre que resulta da expressão essencialmente individual de uma maneira de ver ou dizer o mundo; que a beleza de uma obra vem não vem de se coadunar a qualquer padrão preexistente, na natureza e no cosmos ou no interior apenas do nosso sistema nervoso, mas sim da criação de algo realmente único. Uma vez, lembrei-me agora, ouvi alguém dizer[3] que, se Camões tivesse escrito «aquela leda e triste madrugada» em vez de «aquela triste e leda madrugada» teríamos não só uma banalidade semântica como uma banalidade fonética. A ideia de quem disse isso é também, creio eu, que há uma ordem natural nos elementos do discurso, mas que o que faz o poeta é romper com essa ordem natural para reorganizar o mundo numa voz única, sua apenas[4]. O contrário do que dizem os «fibonaccistas» místicos, portanto: o que importa em arte é não seguir nem a espiral de nenhuma concha marinha nem repetir as proporções de nenhuma fachada clássica, mas criar proporções e equilíbrios que nunca existiram antes.

Ana Pérez-Quiroga, fotógrafa. Natureza Morta: Caixas, Barros, Flores e Auto-Retrato, 2003. 
Fotografia a cores,  impressão a jacto de tinta sobre tela. Sobreposição digital de autorretrato sobre reprodução da pintura de 
Josefa d'Óbidos Natureza Morta: Caixas, Barros e Flores,  ca. 1660/70. Museu Nacional de Arte Antiga
Se é assim que eu vejo as coisas? Nem por isso. Creio que, em rigor, ninguém faz arte dessa maneira, mesmo que o queira fazer. Mas a ideia de que a arte obedece a esquemas de beleza ditados pela natureza, seja lá ela o que for, também não me agrada por aí além. Há agora uma certa moda de crítica ao predomínio da exploração e da inovação na arte no século passado. Diz-se até que, nos meios artísticos, se censurou tudo o que era clássico, harmónico, aprazível. E alguma dessa crítica é feita em nome da natureza humana: foi em vão que o radicalismo das formas de expressão do século XX tentou desfazer certas ideias de belo, insurgem-se alguns, porque elas são naturais em nós (o sublinhado é de quem assim fala).

Ora… Pode ser que se tenham fechado portas a tendência menos inovadoras, pode ser que às vezes se tenham vindo misturar a fraude e a facilidade à vontade sincera de abrir novos caminhos e pode ser que esses novos caminhos nem sempre tenham desembocado em longas avenidas nem em amplos prados. Mas não há nisto nada de novo — sempre assim foi. A natureza humana existe com certeza, mas ninguém descobriu ainda que cores, formas ou sons tem lá no fundo.
   
     O bonito, esse,
          está ora cá ora lá
              em tanto sítio que está…



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[1] Aconselho, por exemplo, o texto Fibonacci Flim-Flam, de Donald E. Simanek, em que o autor passa em revista «os disparates Fibonacci» e as muitas «falsificações Fibonacci» que por aí circulam, com pequenas e grandes batotas no ajuste das formas à regra de ouro, selecções e generalizações abusivas e delírio místico sobre a magia ou o poder de alguma forma essencial na «Criação» ou no universo. A «proporção de ouro» parece, afinal, estar o mais das vezes no olhar — um pouco distorcido — do observador… É provável que, algumas vezes, a batota seja feita sem querer, como se faz tantas vezes para confirmar aquilo em que se crê, mas nem por isso deixa de ser batota. Para sermos mais diplomáticos, podemos dizer, como Studiolum no blogue Mesa Revuelta, que (sendo castelhano, escuso-me a traduzir) «un historiador del arte sabe que la regla áurea como ley universal solo debe analizarse en aquellas imágenes donde pueda dibujarse limpiamente».
[2] Para uma introdução sensata à discussão do reconhecimento universal da «proporção dourada» e outras formas como sendo esteticamente superiores, ver, por exemplo, o texto The golden ratio and aesthetics de Mario Livio.
[3] Tenho até uma ideia de quem tenha sido, mas não tenho a certeza absoluta e, bem veem, se não se deve citar «alguém» (peço desculpa!), muito menos de deve pôr na boca de uma pessoa o que não se tem a certeza que ela disse.
[4] Não sei ao certo o que pensava esta pessoa sobre a originalidade dos versos de Camões, posso apenas especular.... Talvez achasse que o banal seria organizar dois elementos de um par pondo o mais longo e mais pesado no fim e pondo primeiro o positivo e depois o negativo. Ou talvez tivesse outra coisa em mente, não sei… Seja lá como for, tendo a considerar canónica — e nem por isso menos elegante — a tónica da rima em [a] aberto… Mas posso estar enganado.