31/05/18

Desventuras de um pilha-galinhas na Geórgia

Deve ser de estar a ir para a idade – dou por mim a recordar com saudade objetos da minha meninice ou da minha adolescência. Como hoje em dia é fácil encontrar tudo o que se procura, tenho adquirido – a preços razoáveis, ainda por cima – alguns desses objetos que nostalgia me traz à mente. Falo-vos hoje de dois livros.

Fala-se às vezes de livros que mudam a nossa vida. Publiquei aqui um texto, há muitos anos, em que argumentava que, ao contrário do que muitas vezes se diz – ou ao contrário de como muitas vezes se diz –, é muitíssimo raro um livro mudar a vida a alguém, sobretudo se for uma obra literária. Mais razoável é usar outra expressão comum: há livros que nos marcam. O que significa ser marcado por um livro difere com certeza de caso para caso – de pessoa para pessoa, de livro para livro… –, mas marcar parece ser, nalguns casos, uma descrição bastante literal do efeito de alguns livros: deixar em nós uma impressão perene. Lá está, é duvidoso que essa marca, essa impressão, tenha grande importância na nossa vida – ou é claro, o mais das vezes, que não tem. Mas é uma parte desimportante de nós, como a forma de um dedo pequenino do pé, uma coisa assim… Agora, o que é curioso é que, mais que os textos dos livros (de que recordo pouco), foram as suas ilustrações que nunca esqueci e foram elas que me levaram a comprá-los.

Birger Lundquist é um grande ilustrador, de traço rápido e muito expressivo. As ilustrações d'Um Rapaz da Geórgia são, muito provavelmente, a caneta de tinta permanente e sem esboço prévio, como ele muitas vezes fazia. Já Gabriel Ferrão não era propriamente um grande desenhador e o seu traço roça até o amadorismo; mas, como diz Jorge Silva no seu Almanak, «a patusca ingenuidade d[as suas] ilustrações (…) tem, passados sessenta anos, um irresistível encanto».
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[P.S.: Surpreendeu-me o tamanho dos livros, quando os recebi – são os dois livros de 12×18 cm e eu lembrava-me deles muito maiores. É estranho: quando li os livros infantis da Majora, era com certeza mais pequeno do que sou hoje, mas devia já ter o tamanho que tenho hoje quando li Caldwell... Tmabém não fazia ideia de que a tradução da novela de Caldwell era de Jorge de Sena.]

As sete primeiras ilustrações são de Birger Lundquist (in Erskine Caldwell, Um rapaz da Geórgia, Lisboa: Editora Ulisseia, 1954).
As quatro últimas são de Gabriel Ferrão (in Gabriel Ferrão, A desforra do Pilha-Galinhas, Porto: Editorial Majora, sem data).











30/05/18

De especialização e especialistas

Da especialização propriamente dita

«Sabe-se cada vez mais de cada vez menos», ouve-se e lê-se muitas vezes. E eu acho que, por sedutor que possa ser, este discurso não resiste bem a um bocadinho de reflexão.

O todo não é, como todo, apreensível nem analisável de forma organizada e racional – o todo é demasiado grande para os nossos sentidos e a nossa capacidade de abstração. Só faz sentido uma teoria geral fundamentada na totalidade possível do conhecimento específico. Neste sentido, a especialização não é um mal necessário, é um bem necessário, porque é de muitos conhecimentos especializados que é feito o conhecimento geral.

Quando se critica o demasiado enfoque na especialização e a proliferação de especialistas, porém, normalmente não se quer com isso dizer que há pouco quem tenha um conhecimento da Teoria Geral da Relatividade ou outra teoria bastante geral do universo, mas fala-se antes do declínio da erosão de um saber antigo – «enciclopédico», digamos – em que todas as áreas do saber se misturavam e se confundiam em relações estranhas, meio mágicas muitas delas. O problema é que só era possível saber bastante de tudo no tempo em que se sabia pouco de quase tudo. Hoje, não só há uma (incomparavelmente) maior acumulação de conhecimento em cada área, como há muito mais áreas de conhecimento, de maneira que um saber «generalista» correspondente é agora, pode dizer-se, não saber quase nada de quase tudo – o que não deve ser melhor que saber quase tudo de quase nada, pois não?

Uma parte da crítica à especialização é mais uma versão do catastrofismo milenarista que diz que o passado é que era bom e o presente é lugar de decadência. Neste caso, eram bons os intelectuais que cobriam todas as áreas de saber e a decadência é a especialização. Na realidade, mesmo aprofundando conhecimentos numa área específica, provavelmente nunca houve tanta gente a saber tanto de tanta coisa. Não parece ser a especialização a matar a cultura geral. (E provavelmente, quem sabe muito pouco de quase nada também sabe mais do que quem antigamente sabia muito pouco de quase nada…)

Por fim – e notem que é de uma impressão que aqui se trata, não é nada que eu consiga demonstrar –, causa mais danos a ânsia de «holismo» do que a resignação de se conformar com a especialização. É que o centrar-se com rigor em objetos específicos tem a vantagem de nos fazer perceber quais são os limites concretos da procura concreta de conhecimento e não incentiva, como o parece fazer alguma procura de «holismo», a tentar preencher com uma alegre e seguramente bem-intencionada falta de rigor, quando não puro delírio, os espaços de ignorância que, claro, não deixam nunca de existir. Que vos parece?

Sejamos claros, enfim: se é sem dúvida importante para a vida de cada um o conhecimento «generalista», «enciclopédico», «holístico», e simplesmente a cultura geral, enfim, os avanços técnicos devem-se diretamente à especialização. A longa história da redução do tempo de trabalho e aumento do tempo de lazer, do aumento da esperança e da qualidade de vida – o viver-se, enfim, mais tempo em melhores condições e com menos esforço – é em grande medida a história do aumento do conhecimento especializado.

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Da desvalorização dos especialistas, e mais duns que doutros

Uma coisa curiosa, a propósito de especialização: parece-me evidente que a especialização se aceita melhor em certas áreas que noutras – o que, para mim, não faz qualquer sentido. Para conceber ou construir um edifício ou uma ponte, ninguém hesita a recorrer a técnicos altamente especializados. Se se discute alguma questão de física ou de química, aceita-se sem problema como referência a opinião de especialistas das áreas em discussão. Sobre a biologia, há mais reservas, sobretudo quanto à sua vertente técnica, a medicina: se é verdade que a maior parte das pessoas vai ao médico quando está doente, infelizmente aceitam-se ainda muitas opiniões de leigos sobre como lidar com problemas físicos de toda a ordem. Já se se discute língua ou história, quase toda a gente se sente capaz de ter uma opinião sobre temas de que não sabe grande coisa. Há casos até em que a condição de especialista, se não é considerado um handicap na discussão, é, pelo menos, vista como indesejável: «Esta saloiice do especialista, sobretudo nas ciências humanas», escrevia alguém no outro dia, num comentário no Facebook, «é uma idiossincrasia de país atrasado». Lá está: «sobretudo nas ciências humanas».

Será porque as pessoas as considerarem áreas «não científicas» e não dão, por isso, o mesmo crédito aos especialistas dessas áreas? Não creio que seja essa a razão, mas se fosse, seria uma atitude pouco razoável e incoerente. Sejam quais forem as especificidades das ciências sociais e humanas relativamente às ciências naturais (o seu grau de «dureza» varia muito de umas para as outras e de uma para outra área dentro de cada uma delas) deveria ser óbvio que os especialistas de uma determinada área de estudos sabem incomparavelmente mais dela que as outras pessoas e parece, no mínimo, sensato ouvir com muita atenção o que têm a dizer sobre essa matéria.

O problema pode bem ser antes que certas áreas sejam sentidas por todas as pessoas como mais diretamente constitutivas da sua identidade, do lugar que a si próprias se atribuem no mundo e que, por isso, se sintam mais no direito de ter uma palavra a dizer, sobretudo quando há algo que vem mexer com partes muito fundas dos afetos. Não é fácil abdicar de crenças e automatismos solidamente enraizados para se abrir a dados factuais – a que falta muitas vezes, ainda por cima, o conforto da simplicidade a preto e branco dos preconceitos…

Enfim… O certo é que a postura, quando não a crença explícita, de muita gente é que – pelo menos nalgumas áreas – todas as opiniões valem o mesmo, nem que sejam sobre assuntos em que nunca se pensou antes de surgirem polémicas em que imediatamente se toma partido. Isto é, para mim, um bocado assustador, porque é dar cabo, de um golpe fácil, de toda a base do conhecimento humano e da sua possibilidade de continuar a evoluir.

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 Dois exemplos óbvios de polémicas em que muita gente pessoa crê ter opiniões tão válidas como as de quem sabe do tema em discussão são a da reforma ortográfica e a da designação do futuro museu de Lisboa que se pretende dedicar às viagens e à expansão territorial portuguesas.

Participei algumas vezes na discussão da reforma ortográfica. Defendi-a contra vários ataques sem pés nem cabeça. Há gente que não sabe ou não quer distinguir entre língua e grafia, que defende a influência da grafia na pronúncia (sem se quer se dar conta, sequer, de que o seu argumento implicaria que não existissem as tais «consoantes mudas» que acha que devem continuar a existir), gente que não compreende a diferença entre as várias lógicas que podem subjazer a uma grafia, gente que não sabe sequer o que está em discussão, gente que nunca pensou dois minutos sobre grafia antes de a reforma entrar em vigor, mas que expressa, ainda assim, de forma veemente, quando não virulenta, opiniões não fundamentadas. Como o assinalava um comentador anónimo numa discussão em linha, esse violento debitar de disparates teve como consequência afastar do debate público a maior parte das pessoas que sabem alguma coisa de língua, linguistas ou não, académicas ou não, defensoras ou não da reforma, porque a discussão era demasiado má, a todos os níveis – e ficou, com essa ausência, ainda pior… A verdade é que não havia muito a discutir, porque a esmagadora maioria dos detratores da reforma não estava e não está disposta a uma discussão racional. A única coisa que querem é continuar a escrever como aprenderam e alguns chegaram a justificar de formas abstrusas o seu conservadorismo. Cheguei a ver, por exemplo, quem afirmasse que o tempo que tinha passado a aprender a escrever como escrevia justificava bem nunca mudar de ortografia.

A defesa da designação «Museu das descobertas» e o ataque à carta de mais de uma centena de académicos que denuncia a carga ideológica dessa designação é também significativa. Di-lo bem o historiador Paulo Pinto, um dos signatários do documento (artigo aqui):
Há um indiscutível aroma lunático em tudo isto. Primeiro, porque é incompreensível a ligeireza e o desprezo que continuam a merecer historiadores e especialistas das Ciências Sociais e Humanas; depois, porque o que deveria ser um debate intelectual construtivo e sereno é reduzido, afinal, a um destilar de bílis e paixões; finalmente, porque o nosso ego nacional, aparentemente sólido e robusto, revela-se, uma vez mais, um véu frágil e inseguro. Não se encontra uma opinião fundamentada a contestar a carta, só achismos, mitos, calor e ignorância. 
Há também outro aspeto que ajuda, provavelmente, à postura antiespecialistas. O conhecimento sério, seja ele de história, língua ou seja lá do que for, não só é complexo como é chato para a maior parte das pessoas. O simplismo dos mitos é muito mais reconfortante – e mais mediático. Cabe aos especialistas, é certo, tentar tornar a complexidade das suas áreas acessível a toda a gente, mas a complexidade das questões não pode ser nunca razão para os deixar de lado no debate público – é antes razão para lhes dar mais visibilidade. Como diz a historiadora Ângela Xavier Barreto (artigo aqui),
[a] revisitação histórica e a recusa de visões simplistas e parcelares são exercícios fundamentais de e para uma cidadania consciente, informada, crítica — aquilo que tantas vezes se acusa de, na sociedade portuguesa, não existir. Entre os signatários [da carta aberta publicada no Expresso online de 12 de Abril] encontram-se, precisamente, muitas das pessoas que, nas últimas décadas, produziram conhecimento científico de referência sobre temáticas associadas à expansão dos portugueses. É verdade que a maior parte delas não escreve colunas nos jornais, nem aparece na televisão. É por isso que é tão importante que M[iguel] S[ousa] T[avares] se disponha a dialogar com elas e que os leitores possam partilhar a discussão sobre os problemas que existem com as palavras que reproduzem a imaginação histórica em que foram educados.*   
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Mas então, quero eu dizer com isto que todas as discussões se devem reservar aos especialistas de cada área, que os não especialistas não têm direito a opinião? Não, não quero dizer absolutamente nada disso; apenas que, para ter uma opinião sólida, para participar numa discussão de maneira construtiva e rigorosa, uma pessoa deve informar-se… junto dos especialistas – que têm muitas vezes, aliás, posições diferentes uns dos outros. E que em situação nenhuma, mas nenhuma, a ignorância pode ser usada como argumento («eu não sei nada do assunto, por isso recuso-me a ter em conta o que se sabe desse assunto») e o conhecimento considerado um handicap na discussão. Só isto.


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* Ângela Xavier Barreto refere Miguel Sousa Tavares, porque responde ao seu ataque à carta aberta dos académicos, mas o que ela afirma diz, obviamente, respeito a todos os participantes em qualquer debate nestas condições. Sobre a questão do museu, é interessante também ver a opinião não só de historiadores, mas também de museologistas como Maria Isabel Roque (artigo aqui) e Maria Vlachou  (artigo aqui – no fim deste artigo, há uma lista de links para 20 artigos sobre este tema)