Num romance ou num filme não se referem normalmente idas à casa de banho, as horas diárias de sono, compras e preparação de refeição, tudo aquilo que faz a maior parte da vida de toda a gente. Ou, se se referem, referem-se de passagem, talvez para ajudar a caracterizar uma personagem ou no meio de uma sequência de acontecimentos, mas nunca – nem de muito longe – se gasta com essas chatas banalidades espaço narrativo proporcional ao que ocupam na vida real. Isto é só uma introdução a outra coisa, que não é de narrativas que vos quero falar.
É comum afirmar-se que, ao aprender uma língua estrangeira, se ganha acesso à cultura das pessoas que a falam. Uma língua é, diz-se, uma porta aberta para as especificidades da cada cultura, para o que é único de um determinado grupo humano. E há muito de verdade nesta afirmação. A língua é, de facto, condição necessária para aceder à cultura – se bem que insuficiente. Para se conhecer a cultura do Idaho, do Yorkshire ou da Irlanda no Norte, por exemplo, não basta saber inglês, mas é de facto impossível conhecer devidamente (uma grande parte d)a cultura destes lugares sem falar inglês.
O que eu queria aqui sublinhar é, digamos assim, o outro lado da questão. Saber a língua de um grupo de pessoas serve também para perceber que elas são iguais a nós. E isto é tão importante como compreender as suas especificidades. Costumo dizer a brincar – mas ao mesmo tempo muito a sério – que os dinamarqueses eram mais interessantes antes de eu falar dinamarquês, porque, observando-os apenas sem compreender o que diziam, os imaginava a falarem entre eles das coisas de que falavam comigo em inglês. Nas conversas com estrangeiros, evita-se o trivial, como na literatura e no cinema. Quando alguém de fora me visita, falo-lhe, sei lá…, da história e da arquitetura da zona, de política, do que de mais interessante me ocupa o espírito. Não lhe falo das conversas da última reunião de pais, nem dos vulgares desentendimentos com colegas ou familiares, nem da diferença de produtos e preços das lojas locais, da vizinha que, coitada, tem andado adoentada, de utensílios de cozinha a precisar de substituição, ou os estofos de cadeira, nem da limpeza dos algerozes ou da revisão do carro… E, claro está, os dinamarqueses, os portugueses, os franceses, os moçambicanos, os bolivianos e os outros humanos todos passam uma grande parte da sua vida a falar de coisas corriqueiras. A sua quotidiana trivialidade é também uma parte essencial da sua cultura – que partilham com todas as outras pessoas.
15/01/19
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