Em francês, distinguia-se – e há ainda com certeza quem distinga, apesar de a regra ter sido alterada em 1990 – entre cuissot, uma coxa de um animal de caça, e cuisseau, uma coxa de vitela, por muito que as duas palavras se pronunciem, claro, da mesma maneira e tenham, evidentemente, a mesma origem.
Agora, se isto vos aparece extravagante, vejam que o Porto Editora diz que uma escola islâmica se chama uma madraça, a não ser que seja na Guiné-Bissau ou em Moçambique, onde é uma madrassa.Era dar conta de uma curiosidade e não uma crítica. Provavelmente, até é certo que a grafia predominante na Guiné e em Moçambique é com ss e nas outras variantes com ç. (O que está com certeza mal é que a grafia moçambicana não tem origem no mandinga, mas isso é outra história…)
E respondeu-me Stefaan (traduzo eu de forma bastante livre, porque ele não me respondeu em português):
Em suaíli, darasa (no singular, madarasa no plural.) significa apenas aula ou sala de aulas. Ok, isto não está diretamente relacionado com a ideia central da tua publicação, mas fiquei a pensar em qual seria o significado de darasa em árabe. Parece-me provável que também signifique apenas «sala de aula».Fui dar uma voltinha ao Google e respondi-lhe:
Stefaan, em árabe, a palavra tem o ma- no singular e no plural e significa apenas «escola», qualquer tipo de escola (مدرسة, madrasah, plural مدارس, madāris).Na altura, pesquisei apenas madrasah em árabe, mas não pesquisei se darasa também significava alguma coisa nessa língua – que era a dúvida de Stefaan. E significa, de facto, pelo menos a fiarmo-nos no Wiktionary —não «sala de aula», como Stefaan previa, mas «aula», «lição» ou «estudo». Ou seja, tem afinal, um significado igual a um dos significados de darasa em suaíli. Além disso, como verbo, pode também significar «estudar» e «aprender». De facto, madrasah forma-se como nome de lugar do verbo: é um lugar de estudar ou de aprender. Mas isto só o soube ontem. Na altura, o que me veio à cabeça foi outra coisa diferente:
É de facto interessante, Stefaan, agora que penso nisso: como o ma- é marca de plural nas língua bantas, o suaíli cria uma forma de singular de uma palavra que não é originalmente plural, só porque começa com ma-. O mesmo acontece, por exemplo, em português quando algumas pessoas dizem «uma sande». Partem do princípio de que o s final de sandes é uma marca de plural e criam, por isso uma forma singular sem s [quando de facto o s final de sandes vem do ch final de sandwich, singular].Muito provavelmente, e mesmo sem saber, na altura, da existência de darasa em árabe, tenho razão na minha análise da formação do singular darasa em suaíli, com o significado de «sala de aula» – mas talvez não, talvez esse significado tenha derivado diretamente do significado «aula»...
Stefaan, pegando na deixa da chamada etimologia popular (ou, mais concretamente, de ressegmentação, metanálise ou retroformação, não chego à conclusão de que termo é mais usado em português), tinha algo a acrescentar sobre este tema:
Vítor, não é regra geral, mas há com certeza outros exemplos. Um deles é kitabu, «livro», no singular, que dá vitabu, no plural. Kitabu vem do arábe kitab [ كِتَاب — a primeira sílaba é pois interpretada com o prefixo suaíli ki- do singular de uma classe de nomes, pelo que passa a vitabu, que é o plural dessa classe]. Também na brincadeira (ou como calão), há quem faça o singular de video como kideo…. A classe ki-/vi- é uma classe de nomes para «coisas». [Ver aqui uma explicação do sistema das classes de nomes em suaíli.]Já se sabe, as palavras são como as cerejas e, palavra puxa palavra, uma pessoa começa a falar de palavras com grafia dupla e, de repente, ena, onde a conversa já vai!