O grande poeta e compositor de canções dinamarquês Benny Andersen disse várias vezes que tinha escolhido Povl Dissing para cantar as suas maravilhosas canções, porque toda a gente cantava canções alegres de uma forma alegre e canções tristes de uma forma triste, mas só Dissing cantava de tal forma que não se sabia se a canção era para rir ou para chorar. De tanto que o repetiu e de tanto que isso foi notado, creio que não pode haver dúvidas: o projeto de Benny Andersen era mesmo que o público não conseguisse bem decidir se as suas canções eram «para rir» ou «para chorar». E encontrou, de facto, o cantor ideal para esse projeto.
A minha ideia é fazer aqui uma brevíssima apresentação de Benny Andersen e de Povl Dissing[1]. Se vos não incomodar demasiado a barreira da língua (a mim, nunca me incomodou, porque sempre ouvi música popular em inglês, mesmo muito antes de perceber o que estavam a cantar...), talvez queiram explorar o trabalho do duo. E escolho, para a apresentação, uma famosa canção em que Svante, a personagem da canção, sonha com a Suécia do outro lado do Øresund.
O álbum em que a canção aparece chama-se Svantes viser, «As canções de Svante» (pode ouvir-se aqui), e faz parte do Cânone Cultural da Dinamarca, uma lista oficial de 108 obras, elaborada em 2004, sob a égide do Ministério da Cultura: «uma recolha e apresentação das melhores e mais importantes obras do património cultural da Dinamarca», ou seja, basicamente as obras que todos os dinamarqueses deviam conhecer. Uma ideia estranha não é verdade?
Como o nome do álbum indica, todas as canções têm um mesmo protagonista, o escritor de canções Svante Svendsen. Svante nasceu na Suécia, mas perdeu-se dos pais aos nove anos, no barco de Malmö para Copenhaga, e vive desde essa altura na Dinamarca, onde teve de «desenrascar-se sozinho com a ajuda dos outros». Não há, porém, uma narrativa no ciclo de canções. Quando muito, o eu lírico das várias canções mantém, de umas para as outras, alguma coerência psicológica, se se pode dizer assim. Aparece também nalgumas canções (nesta não) uma personagem feminina: Nina, a musa de Svante. Creio que há aqui um piscar de olho a Carl Michael Bellman, um famoso poeta e cantautor sueco do século XVIII, cujas canções se continuam a cantar até hoje. Bellman também tinha uma personagem recorrente, o relojoeiro Jean Fredman, nos seus ciclos de canções Epístolas de Fredman e Canções de Fredman[2].
Tanta digressão! Eis então a canção e a letra traduzida A tradução, bastante livre e prosificada, é minha e é extremamente empobrecedora do texto original, que, como tudo o que Benny Andersen escreveu, é rico em imagens e trocadilhos completamente intraduzíveis:
Aqui estou eu, de olhos fixos na costa da Suécia e a sonhar com montanhas mais altas[3]. Tenho o coração aos pulos no peito – que vontade de apanhar o primeiro ferry e esquecer todo o mal do mudo em bosques claros de bétulas e raparigas risonhas! Mas tenho de ficar, porque eu enjoo quando ando de barco…
É como ver a terra prometida, repleta de dádivas, onde o tempo parece não passar e onde as pessoas cantam canções de Bellman com a boca cheia de bagas silvestres! E eu tenho de aqui ficar a viajar só com os olhos, porque eu enjoo quando ando de barco…
E aqui estou, num paisinho neurótico, habitado por loucos sorridentes. Os suecos sabem fazer muitas coisas que nós não sabemos fazer: mantêm-se corajosamente neutros[4] e são tão saudáveis – em bosques claros de bétulas – e têm sempre tantas ideias! E eu tenho de aqui ficar a definhar, porque eu enjoo quando ando de barco.As minhas cinzas serão enviadas para a Suécia e espalhadas aos quatro ventos, para eu ser assim levado de praia em praia. Sim, talvez encontre finalmente um lugar onde possa ficar, em bosques claros de bétulas... Mas, até lá, acho que vou ter de viver aqui nesta terra, porque eu enjoo quando ando de barco…
[2] Povl Dissing gravou em 1991 um disco de versões dinamarquesas de algumas canções de Bellman, que se pode ouvir aqui.
[3] A Dinamarca é o quarto ou quinto país mais baixo do mundo, com uma altitude média de 34 metros e a elevação natural mais alta com 170 metros.
[4] Referência clara à tão discutida neutralidade sueca durante várias guerras, nomeadamente as duas guerras mundiais.