26/01/24

Pequena divagação sobre pseudónimos e mercado


No artigo «O deus mercado rejeitou o homem branco» (um artigo por sinal bem interessante), João Zamith explica as considerações de ordem económica que determinam as escolhas e as imposições — algumas delas surpreendentes — das editoras de livros. Uma das histórias curiosas que conta é a do nome literário (não sei se se lhe pode chamar pseudónimo…) de Joanne Rowling:

Quando Rowling tentou publicar Potter originalmente no Reino Unido, o primeiro livro da série, que viria a vender 120 milhões de exemplares, foi rejeitada não por uma mas por 12 editoras antes de ser aceite provisoriamente pela Bloomsbury Publishing. Digo provisoriamente porque a editora tinha uma imposição para Rowling: não podia usar o seu nome, Joanne.

Ninguém compra livros de fantasia escritos por mulheres. Doze editoras antes da Bloomsbury sabiam isso muito bem, e a Bloomsbury também não tinha qualquer dúvida. Se Harry Potter alguma vez chegasse às livrarias, a sua autora nunca poderia ser Joanne. O público leitor tinha de ser enganado, ou ao menos distraído. E assim surgiu JK. Um nome ambíguo, neutro, sem o estigma da feminilidade.

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Veio-me no outro dia à memória um nome da minha infância e juventude: Roussado Pinto, que conheci como comentador e argumentista de banda desenhada, e diretor de revistas de BD. Eu lembro-me dele como diretor do Jornal do Cuto, que colecionei, mas sei que dirigiu mais uma meia dúzia de revistas antes dessa. Além das suas atividades na BD, Roussado Pinto foi também jornalista, novelista e diretor do célebre Jornal do Incrível...  Lembrei-me de Roussado Pinto e lembrei-me de que descobri um dia que, como autor de novelas policiais, usava os pseudónimos Ross Pynn e Edgar Caygill.  

Num artigo publicado no blogue O voo do Mosquito, escreve Jorge Magalhães:

Evocar o [nome de Roussado Pinto] significa, inevitavelmente, recordar também os pseudónimos que o celebrizaram, como os de Edgar Caygill e Ross Pynn. Usou-os em muitas obras, de maior ou menor importância e simbolismo na sua carreira, não porque quisesse passar, à força, por um escritor estrangeiro — imitando outros autores de novelas de aventuras —, mas porque sabia, com a sua profunda intuição literária, que esses nomes possuíam uma carga onírica que não se desvaneceria com o tempo, dando-lhe assim uma espécie de passaporte para a imortalidade.

Curiosamente, nesse mesmo artigo há uma referência a Luís Campos («outro notável escritor policial português»), que usava o pseudónimo Frank Gold… Roussado Pinto não era o único a usar pseudónimos ingleses e a romântica explicação de Jorge Magalhães não me convence muito... Parece-me que, nestes casos, a chã explicação economicista de João Zamith funciona muito melhor. Talvez não tivesse sido imposição das editoras, mas antes uma decisão dos próprios Roussado Pinto e Luís Campos, perfeitamente conscientes de que as novelas policiais de autores portugueses estavam condenadas a ter pouca ou nenhuma saída. Isso não se sabe. Mas um nome inglês era, é claro, muito mais comercial. E é também o que se depreende do que conta Dinis Machado

Um dia, a minha filha estava para nascer, e eu precisava de vinte contos, fui falar com o Roussado Pinto. E ele disse: «Está bem, ganhas vinte contos, mas fazes três romances policiais com um nome americano, como eu faço». E fiz três romances policiais num ano [com o pseudónimo de Dennis McShade]. 

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Isto os pseudónimos são como as cerejas, vêm todos agarrados uns aos outros. Lembrei-me de uma obra de Boris Vian, Irei cuspir-vos nos túmulos, cujo enredo pseudonímico, se se pode dizer assim, é mais complicado: Vian apresenta-se como tradutor da obra de Vernon Sullivan, um escritor afro-americano. Fui tentar averiguar a razão desta opção. Diz-me o artigo da Wikipédia sobre a obra que «os críticos divergem na sua apreciação da escolha de um pseudónimo». Um deles, porém, Michel Rybalka, acha que o fez por precisar de dinheiro. Quando me informo de como a obra surgiu, sou tentado a dar-lhe razão.  A descrição que se segue, traduzida do artigo da Wikipédia, baseia-se num trabalho sobre a obra publicado por Mounia Benalil em 2001.

No início do verão de 1946, Vian conheceu um jovem editor, Jean d'Halluin, que queria publicar obras de grande difusão para lançar as edições Le Scorpion, que acabara de criar – em particular imitações dos romances americanos que estavam na moda naquela altura. D'Halluin pediu a Vian [...] que lhe escrevesse um livro no estilo de Trópico de Câncer de Henry Miller, que era um grande êxito. O projeto foi então concebido pelo autor e pela editora como a «aposta de fabricar» um best-seller em duas semanas, ou seja, um romance que fosse ao mesmo tempo um sucesso comercial e um «exercício» na tradição do romance negro americano.

Philippe Boggio, na sua biografia de Vian, corrobora a ideia da perspetiva comercial: 

A ideia de Irei cuspir-vos nos túmulos nasceu em dez minutos no meio da rua. Michelle [Léglise, esposa de Vian] e Boris conversaram sobre o projeto. Boris não tinha ganho o prémio literário da Pléiade e estavam desesperadamente necessitados de dinheiro. Boris já não aguentava o trabalho de engenheiro. A publicação dos seus romances estava demorada e, de qualquer forma, poucas possibilidades tinham de virem a pagar as despesas quotidianas e o carro que Boris sonhava comprar.

A moral da história é que os autores de policiais e afins, já sabem, têm de ter um nome inglês. Senão, não se vende. Vocês compravam um policial de um Vítor Santos? Claro que não. Mas se fosse um Victor Lindegaard? Ah, aí já eram capazes de comprar. Ou as coisas mudaram muito desde essa altura e agora são só os autores de fantasia que não podem ser mulheres?


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