03/09/24

De frutos e parasitas

 

Dizia aqui no outro dia que «muitos conceitos abstratos são referidos com metáforas de coisas materiais». De facto, quando uma palavra é usada em várias aceções, umas mais abstratas que outras, a aceção mais concreta costuma ser a primeira: estrela usava-se para referir um corpo celeste antes de se usar para referir uma celebridade e a palavra foco usava-se para designar um ponto de luz (é uma forma divergente de fogo) antes de referir, entre outras coisas, «questão, assunto ou ponto para onde converge a atenção de alguém». 

Parece fazer todo o sentido, não é verdade?, esta deslocação metafórica das coisas mais concretas para as menos concretas e é de facto assim que o significado evolui muitas vezes. Mas nem sempre. O contrário pode também acontecer e às vezes surpreende-nos. 

Por exemplo, quando se diz «o fruto do meu trabalho», podemos pensar que é mais um caso do tipo de evolução semântica do concreto para o abstrato. Na realidade, porém, não se trata de uma metáfora do fruto da planta, mas antes ao contrário: o sentido mais antigo de fructus em latim é o de «utilização, disfrute» — «fruição», enfim, ou «usufruto»! A palavra é de facto um particípio do verbo que deu o nosso fruir e que tinha o mesmo significado. E é deste sentido mais abstrato de «fruição» que deriva a aceção mais concreta de «produto» (não forçosamente agrícola, mas também agrícola, e não limitado a fruta) ou de «rendimento proveniente do que se produz» e, enfim, o da componente ou órgão de uma planta. 

Parasita é outra palavra em que a evolução do significado se faz ao contrário do que muitos esperariam: poderia pensar-se que o significado primeiro é o de «animal ou planta que se alimenta de um hóspede», mas este significado surgiu há pouco tempo e deriva diretamente do significado original: a palavra grega parasitos significava «alguém que come em casa de outrem», sobretudo «quem frequenta as casas dos ricos e obtém as suas graças através de bajulação». 

Já agora, uma curiosidade que não tem nada a ver com o tema aqui tratado: o latim fructus teve uma fortuna tal que se usam os seus descendentes em praticamente todas as línguas europeias, sejam elas românicas, germânicas, célticas ou eslavas (podem ver aqui exemplos em mais de 50 línguas.] 

Outra curiosidade é a distinção que se faz em português e noutras línguas ibéricas entre o masculino fruto e o feminino fruta. Fruta é um nome não contável*, ao contrário de fruto, e, embora os dicionários de português e castelhano digam que designa «os frutos comestíveis», a verdade é designa apenas frutos comestíveis sem casca rija e de sabor tendencialmente doce — nunca se chama fruta a nozes e avelãs, nem a tomates, pepinos, pimentos, azeitonas e muitos outros frutos não doces. 

* Ao que vi, fructa, plural neutro de fructus, já existia em latim com esta aceção dita «coletiva».


O inferno [Crónicas de Svendborg #49]


 Hoje vi uma casa arder com uma pessoa lá dentro.

E éramos várias pessoas cá fora, a não poder fazer nada — que podem uns baldes de água quando uma casa está toda em chamas? — e todos nós conhecíamos o homem que já estava morto lá dentro e todos tínhamos por ele simpatia, alguns até amizade.

Uma casa a arder com uma pessoa lá dentro. O inferno.  


A antiguidade não é posto nenhum

Ouvi algumas vezes defender doutrinas ou formas de conhecimento ou de medicina com base na sua antiguidade.  Dever-se-ia, segundo alguns, aceitar a validade de coisas como a «medicina» aiurvédica ou a acupunctura e outras formas de «medicina tradicional» por serem «conhecimentos já muito antigos». 

Agora digam-me: como pode avalizar essas práticas o facto de terem sido criadas numa altura em que se desconheciam os mais básicos fundamentos de química, em que ninguém fazia ideia nenhuma de como funcionava o corpo humano – nem a natureza em geral? 

É antes ao contrário, não é? De qualquer informação sobre doenças, tratamentos e efeitos de quaisquer substâncias ou práticas sobre o ser humano ou outros animais (mas também sobre a descrição da realidade em geral), o melhor é certificar-se sempre de que ela não está desatualizada. 

Imagem: Sushruta a atender doentes, autor anónimo sec. XVII. Wikimedia Commons, daqui.