Distinguia a minha avó
dois casacos, os quais são:
sem trespasse, paletó;
de trespasse, jaquetão.
(E não julguem qu’isto é só
devaneio ou disparate;
saibam que era a minha avó
costureira d’alfaiate!)
Mas mais que o corte, enfim,
se é ou não assertoado,
o que conta, para mim,
é o mat’rial usado;
e aquele que mais combina
comigo é, não sei porquê,
a velhinha bombazina,
– ou veludo cotelê...
Além das palavras que aparecem nas quadras acima, aprendi com a minha avó muitas outras expressões mágicas e os gestos que lhes correspondem: alinhavar, chulear, gizar, passajar, pespontar, bolsos metidos e bolsos estampados, costura inglesa, singela ou dupla, e muitas outras. Estes termos da costura são uns mais conhecidos que outros entre os não iniciados, como é natural quando se trata de termos técnicos; mas figuram todos nos dicionários, como devem, por muito que haja já pouco em Portugal quem ganhe a vida a costurar artesanalmente, ou seja, a fazer roupa à mão e à máquina... de costura.
Como acontece também noutras áreas, alguns termos da costura foram importados de línguas mais internacionais, como o inglês das mangas raglan ou o francês de plissar – depois de devidamente nacionalizado a palavra plisser – e de poche, a bolsinha de pano onde a minha avó guardava agulhas, dedais e alfinetes. Achei que, no meio de tantos empréstimos dicionarizados que há (e bem, não tenho nada contra), poche também o devia ser e propus essa entrada a um dicionário, mas a minha proposta foi indeferida – a única poche que aceitam é uma interjeição «usada para chamar e afagar um cão»...
A máquina de coser lá de casa era uma Singer a pedal, com uma correia de transmissão de couro (igualzinha a esta aqui), que a minha avó, como creio que todos os portugueses dessa época (e não só...), pronunciava com g de gelo e não com g de gato. Aprendi nela a enfiar linha e a coser – mas quem cosia sempre era o meu irmão, que cosia muito melhor que eu... Normalmente, eu alinhava e ele cosia. Cosia a minha roupa e a dele. Apertávamos sobretudo jeans, que se usavam muito justas na pernas, ou fazíamos bainhas, coisas simples.
O princípio revolucionário do olho da agulha no extremo oposto ao das agulhas manuais, a ideia que permitiria a criação da máquina de coser, foi registado por um alemão que vivia em Inglaterra, Charles Fredrick Wiesenthal, em 1755 (!). Mas Wiesenthal não inventou propriamente uma máquina de costura. Nos 100 anos seguintes, foram-se sucedendo várias desenhos e protótipos de máquinas de costura, até que surgiram em meados do séc. XIX as máquinas de costura modernas, ou seja, já não muito diferentes da primitiva máquina da minha avó (ver aqui).
Penso que as pessoas não se dão conta da revolução que a máquina de costura constitui e sugiro um vídeo de Derek Muller no seu canal Veritasium em que, além de contar a história do engenho, explica em detalhe o seu funcionamento (em inglês).