17/12/24

Costura: coisas da memória e coisas da história


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Distinguia a minha avó

dois casacos, os quais são:

sem trespasse, paletó;

de trespasse, jaquetão.

(E não julguem qu’isto é só

devaneio ou disparate;

saibam que era a minha avó

costureira d’alfaiate!)

Mas mais que o corte, enfim,

se é ou não assertoado,

o que conta, para mim,

é o mat’rial usado;

e aquele que mais combina

comigo é, não sei porquê,

a velhinha bombazina,

– ou veludo cotelê...


Além das palavras que aparecem nas quadras acima, aprendi com a minha avó muitas outras expressões mágicas e os gestos que lhes correspondem: alinhavar, chulear, gizar, passajar, pespontar, bolsos metidos e bolsos estampados, costura inglesa, singela ou dupla, e muitas outras. Estes termos da costura são uns mais conhecidos que outros entre os não iniciados, como é natural quando se trata de termos técnicos; mas figuram todos nos dicionários, como devem, por muito que haja já pouco em Portugal quem ganhe a vida a costurar artesanalmente, ou seja, a fazer roupa à mão e à máquina... de costura. 

Como acontece também noutras áreas,  alguns termos da costura foram importados de línguas mais internacionais, como o inglês das mangas raglan ou o francês de plissar – depois de devidamente nacionalizado a palavra plisser – e de poche, a bolsinha de pano onde a minha avó guardava agulhas, dedais e alfinetes. Achei que, no meio de tantos empréstimos dicionarizados que há (e bem, não tenho nada contra), poche também o devia ser e propus essa entrada a um dicionário, mas a minha proposta foi indeferida – a única poche que aceitam é uma interjeição «usada para chamar e afagar um cão»...

A máquina de coser lá de casa era uma Singer a pedal, com uma correia de transmissão de couro (igualzinha a esta aqui), que a minha avó, como creio que todos os portugueses dessa época (e não só...), pronunciava com g de gelo e não com g de gato. Aprendi nela a enfiar linha e a coser – mas quem cosia sempre era o meu irmão, que cosia muito melhor que eu... Normalmente, eu alinhava e ele cosia. Cosia a minha roupa e a dele. Apertávamos sobretudo jeans, que se usavam muito justas na pernas, ou fazíamos bainhas, coisas simples.  

O princípio revolucionário do olho da agulha no extremo oposto ao das agulhas manuais, a ideia que permitiria a criação da máquina de coser, foi registado por um alemão que vivia em Inglaterra, Charles Fredrick Wiesenthal, em 1755 (!). Mas Wiesenthal não inventou propriamente uma máquina de costura. Nos 100 anos seguintes, foram-se sucedendo várias desenhos e protótipos de máquinas de costura, até que surgiram em meados do séc. XIX as máquinas de costura modernas, ou seja, já não muito diferentes da primitiva máquina da minha avó (ver aqui).

Penso que as pessoas não se dão conta da revolução que a máquina de costura constitui e sugiro um vídeo de Derek Muller no seu canal Veritasium em que, além de contar a história do engenho, explica em detalhe o seu funcionamento (em inglês). 



Divertimento com nomes de pessoas e nomes de letras de dois alfabetos


Rom,_Domitilla-Katakomben,_Steintafel_mit_Inschrift,_Alpha_und_Omega_und_Christussymbol_Chi_Rho
«Eu sou alfa e ómega, o primeiro e o último, o princípio e o fim».
As letras alfa e ómega, com o qui e o  de Xristos sobrepostos entre elas,
na Catacumba de Domitila, Roma.
Conheci uma vez uma rapariga chamada Alfa. A sério. Não tive coragem de lhe perguntar, por achar claramente importuno, o que qualquer pessoa quer saber quando conhece uma rapariga chamada Alfa: se tinha uma irmã chamada Beta*. 

Mudando apenas a terceira letra de Alfa, consigo encontrar dois nomes de pessoas que conheço: Alda e Alma. Sei que existem também Alba e Alea, mas não conheço ninguém com esses nomes. Não consegui fazer mais nenhum nome de mulher mudando a primeira, segunda ou quarta letra de Alfa.

Zeta também é um nome, tanto nome próprio como apelido, e Capa e Gama são só apelidos, ao que sei.

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Duas capas de revista com fotos de Robert Capa (1913–1954),
repórter fotográfico conhecido sobretudo como fotógrafo de guerra,
que morreu no exercício da sua profissão.
the-great-gama-pehlawan-fights-raheem-bakhsh-sultani-wala
O Grande Gama (à direita) em combate com Raheem Bakhsh Sultaniwala,
um anterior campeão, que era, como se vê, muito maior que ele.
O gama pequeno, γ, é muito diferente do gama grande, Γ. Grande Gama é também o nome desportivo de Ghulam Mohammad Baksh Butt (1878–1960), um dos mais famosos profissionais de luta livre de todos os tempos: em 52 anos de carreira, nunca perdeu um combate.

Agora, se, em vez do alfabeto grego, pensarmos antes no alfabeto fonético da OTAN, a Alfa que eu conheci também podia ter um namorado chamado Romeo, como quem poderia dar passeios de automóvel; ou ter amigos chamados Charlie ou Mike ou Oscar ou Victor, e amigas chamadas Juliett ou India ou Sierra – com a possibilidade de tanto India como Sierra serem cantoras de música country. Sierra é também apelido e Lima é só apelido. 

India Ramey já foi advogada e agora é cantautora. Faz música de intervenção em forma de outlaw country

A cantora Sierra Ferrell toca às vezes serra musical – quem sabe se por ter o nome próprio que tem... 

 

 

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Lima de Freitas: duas ilustrações de uma edição norte-americana de Nostromo, de Joseph Conrad, 1961
O pintor Lima de Freitas (1927-1998) era também um famoso ilustrador. Fez, entre muitas outras coisas, muitas capas e outras ilustrações para livros.  




Conclusão:

Segui acasos fúteis, sem temer

Perder-vos no que a sorte vos trouxer.

Não vem daí ao mundo nenhum bem,

mas também nenhum mal decerto vem...


Ou, dito de outra maneira, não se distingue bem o culto do a propósito (amiúde louvado) do culto do despropósito (sempre criticado)... Não faz mal. Contanto que a gente se divirta!

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* Vivo na Dinamarca e Alfa é dinamarquesa. O nome Alfa é raro na Dinamarca, mas menos raro do que eu pensava: segundo Hvor mange hedder...? («Quantos se chamam...?»), o site oficial de Estatísticas da Dinamarca para os nomes próprios e apelidos, há 83 pessoas do sexo feminino e 4 do sexo masculino que têm o nome próprio Alfa e ninguém o tem como apelido. Já Beta não ocorre como nome próprio, mas há 13 pessoas com esse apelido.

A verdade crua e outras obras nuas


Já aqui o disse aqui uma vez: Tenho a ideia de que, nas artes plásticas, a tão comum personificação feminina de ideais e conceitos abstratos tem sido um pretexto apenas para mostrar corpos femininos nus — e seios, principalmente seios. Creio que era mais fácil despir abstrações que duquesas, burguesas ou camponesas.  É claro, o género gramatical de certas palavras nas línguas românicas justificar uma personificação feminina da República, da Justiça, da Liberdade, da Fortuna, etc. Mas por que razão é que a República, a Liberdade, a Justiça, a Fortuna e outras abstrações hão de aparecer de seios nus? Até nos cemitérios há estátuas de mulheres — anjos fêmeas e figuras alegóricas indeterminadas  — de seios descobertos*

Mas não só em figuras alegóricas, também noutros tipos de imagens. Por exemplo, no quadro abaixo, que razão haverá para estarem nuas as duas futuras mártires cristãs que serão lançadas às feras, a não ser, precisamente, isso mesmo — a vontade de as mostrar nuas?…

Tirando isso, gosto da obra. Gosto, sobretudo das indefinidas feras que, lá do fundo, cristianizam os nus, se se pode dizer assim...

Saint George Hare: A vitória da fé («The victory of faith»), 1891. Óleo sobre tela, Galeria Nacional de  Victoria, Melbourne, daqui
Há quem consiga ver na obra o que o autor provavelmente dizia que nela se devia ver, duas mártires cristãs numa abraço fraternal, esperando serem atiradas às feras que as observam do fundo esbatido da cena. Outros, porém, veem na tela duas amantes adormecidas depois de um ato de amor. A artista Laura Olenska tem um texto sobre o quadro no seu site Éffluves, em que, além de outras informações interessantes, nos diz que fez sobre ele um breve inquérito justo dos seus contactos do Instagram, em que lhes pedia para darem a sua opinião sobre o quadro, sem pensarem muito e sem fazerem pesquisas na Internet: «O número de pessoas que participaram foi suficiente para se obter uma estatística realista». O resultado foi que 95% [escolheram] «descanso depois do prazer» e só 5% viram no quadro «um abraço fraternal»... E que dizem as/os leitoras/es deste blogue?



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* [Longa nota de rodapé, maior, afinal, que o próprio texto...]

O caso das personalizações nuas da Verdade é um pouco mais complicado: a expressão «verdade nua [e crua]» existe em várias línguas, mas não consigo encontrar uma explicação inequívoca da sua origem. 

Há uma história conhecida que diz que, de uma vez que a Verdade se banhava num rio, passou por lá a Mentira, que lhe roubou a roupa que ela deixara na margem. A história ocorre com pelo menos duas conclusões. Nalguns textos, diz-se que a Mentira lá deixou as suas roupas, mas a Verdade preferiu ir nua que vestir a roupa de Mentira. Noutros, diz-se que a Mentira não deixou lá roupa nenhuma e que, daí em diante, aparece às pessoas vestida como se fosse a Verdade, ao passo que esta última não pode senão aparecer nua e que, por isso, muitas pessoas recusam olhar olhar para ela. 

Esta história é muita vezes dada como sendo uma fábula da antiguidade, mas não consigo encontrar dela versões antigas. O que consigo encontrar, isso sim, é uma famosa citação de Demócrito, que diz que «na realidade, não sabemos nada, porque a verdade está no fundo de um poço». Segundo algumas traduções, seria antes «Da realidade, não sabemos nada...», ) e, em vez de poço, tratar-se-ia de um abismo».... Como não sei grego antigo, não posso tomar partido por nenhuma das traduções, mas o certo é que há toda uma tradição pictórica de representar a Verdade saindo nua de um poço — muitas vezes com uma espelho na mão, que é também uma forma clássica da sua representação. A mais conhecida destas obras é a pintura de Jean-Léon Gérôme «A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade». Este quadro é de 1896, mas há vários anteriores, a partir de 1879, pelo menos

Pode pensar-se que, mais uma vez, é a vontade de mostrar mulheres nuas que justifica este motivo pictórico. O facto de  Demócrito ter posto a Verdade nas profundezas da terra não pode justificar, por si, a sua nudez: porque não haveria ela de estar num poço e vestida? 

Já em 1838, porém, podia ler-se, num conto em verso de Jean-Pierre Claris de Florian:

«A Verdade, toda nua, / Saiu do seu poço um dia. / Já despojada, p'lo tempo, / dos encantos que tivera.»

Pode então a origem da nudez ser literária e não pictórica...