07/02/25

Uma canção do pós-guerra: «A última turista na Europa»


Já divulguei no blogue alguns clássicos da canção popular dinamarquesa, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Em Portugal (e no mundo lusófono em geral) conhece-se muito pouco da música dinamarquesa e eu acho que há obras dinamarquesas que merecem ser conhecidas por toda a gente.

Apresento-vos então mais uma bonita canção dinamarquesa, escrita em 1948 por Henrik Blichmann (música) e Mogens Dam (letra) e gravada nesse mesmo ano por Lulu Ziegler. Ziegler interpreta a canção num estilo meio cantado meia declamado, comum na época e não só na Dinamarca. A grande maioria dos leitores deste blogue não sabem dinamarquês, mas, para quem o fale, é também de notar a sofisticada dicção, com uma pronúncia que não existe a não ser no teatro clássico e em canções. A melodia é simples e bonita, e fica no ouvido. A canção foi um grande êxito na época. É considerada um clássico da canção popular dinamarquesa e é ainda bastante conhecida, até porque têm sido feitas dela várias versões, algumas até bem recentes.

Quanto ao conteúdo lírico, eu chamar-lhe-ia europeísmo romântico: o sujeito lírico da canção é uma improvável turista que faz uma contemplação desolada da Europa destruída pela guerra e uma viagem mental por umas quantas personagens e lugares míticos europeus — pela sua Europa.

É interessante: três anos apenas depois do fim da ocupação da Dinamarca pelas tropas de Hitler, esta turista quer passar uma parte da sua nostálgica viagem na Alemanha, em vez de a varrer da sua Europa. A canção refere cinco cidades alemãs, três das quais muito destruídas pela guerra, Dresden, Lübeck e Berlin. Não me parece que a inclusão da Alemanha na sua Europa ideal e o reconhecimento da sua desgraça possa ser visto como um perdão. É apenas a constatação simples de que a Alemanha era e continuaria a ser, uma parte fundamental da Europa, e que, como os outros países, tinha sido também vítima de uma guerra e não apenas o seu agente. Mas não seria isto a contracorrente na altura, com as feridas da invasão alemã ainda por sarar? Não sei*

Por fim, é curioso notar que esta Europa mítica não inclui o resto da Escandinávia, nem a Ibéria nem a maior parte do Leste Europeu. Isto pode ter  a ver apenas com a experiência do autor, claro está, mas também pode dar conta da perspetiva dinamarquesa da altura: aos olhos de um dinamarquês, talvez faltassem à Europa periférica figuras e lugares míticos com lugar nos livros de história das artes …

A tradução do texto por baixo do vídeo é minha e devo avisar, sem falsas modéstias, que não está grande coisa. Aliás, nem sei se é possível fazer uma tradução razoável duma canção destas. Dou-a em prosa, para tornar evidente a despoetização por que passou. Enfim, dá uma ideia do que a cantiga diz, mas não de como o diz… Quero só notar que hesitei um bocado entre «A última turista na Europa» e «A última turista da Europa». Às vezes, o «em» locativo germânico soa pouco natural nas línguas latinas, em que, nas mesmas situações, se usa antes um «de» determinativo: não se diz «a aldeia mais alta no país», mas sim «a aldeia mais alta do país». Neste caso, porém, achei mais relevante acentuar que o «turismo» da voz lírica é «na Europa» que «da Europa», embora a turista seja obviamente «da Europa»...

A última turista na Europa

Vim ter com a minha Europa e o velho mundo que um dia foi meu. Vim ver se é verdade que não passa agora de uma ruína fumegante. Estive fora muito tempo — demasiado tempo. Lá de longe, só se ouviam explosões e gritos. Não quero acreditar que não restem senão destroços — um cenário árido para a próxima guerra.

Sou a última turista na Europa. Não me pesam nem o ouro nem a tristeza, mas preciso de ver, preciso de saber se a Europa conseguirá sobreviver à guerra.

Despareceram os que viajavam por prazer ou desenfado, foram à procura de outros lugares. Sou a última turista na Europa, vim ter com ela outra vez.

E procuro na Europa ensanguentada aquilo com que sonhei no meu exílio: as eternas e brilhantes flores da arte e o velho sorriso sábio de mestres silenciosos. Numa igreja de cúpula dourada em Varsóvia, quero acender uma luz sob um ícone e, uma noite, quero passear por Veneza para me encontrar com Ticiano na ponte de Rialto.

Sou a última turista na Europa e vagueio, em desassossego, por aqui e ali. Quero ir a Viena para me encontrar com Mozart, quero ajoelhar-me diante de Rafael em Roma. Quero ir a Londres e a Stratford-upon-Avon, quero ver Antuérpia, Bruges e Bruxelas e, última turista da Europa, quero ver Paris ao pôr-do-sol da Torre Eiffel.

Revi a casa de Goethe em Weimar, bebi os aromas de mil rosas em Eutin e encontrei um exemplar meio carbonizado de ‘Buch der Lieder’ soterrado num teatro em Berlim. Sonhei com as pequenas ruas rococó de Dresden e com o colorido gótico da velha Lübeck, e algures perto de Leipzig quero ouvir a música de Beethoven numa escola de aldeia.

Vou percorrer toda a Europa, onde o amor foi derrotado, até ao túmulo do Père Lachaise onde jazem Abelardo e Heloísa. E entre as colunas dóricas do Pártenon, Palas Atena, de lança na mão, dá-me a coragem de enfrentar a minha sorte com um espírito reto e socrático. Quero saudar todas as catedrais de França, sorrir com doçura a uma pastora de Chardin, encontrar-me com Rembrandt entre os canais de Amesterdão e enterrar-me em livros em Lovaina.

Quero ouvir a cotovia a cantar no Norte a melodia alegre de todas as almas livres, para sentir que, apesar de tudo o que perdemos, há vida a despertar sob as cinzas!

Porque és como a Fénix, Europa! Por mais que te queimem e te violentem a alma, há de sempre haver novas flores, e viçosas, a crescer em volta das tuas colunas destroçadas.

Fui a última turista na Europa, que se encolheu horrorizada ao som das rajadas de balas. E sou a primeira turista na Europa quando ela se erguer das cinzas outra vez…

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* Os pensamentos são como as cerejas e, quando li a letra desta canção, veio-me à cabeça «Göttingen», da grande Barbara. Em menina, Barbara, que era de família judia, fora obrigada a fugir da França ocupada. E em 1964, com a canção «Göttingen», lembrava a quem ainda guardava rancores contra «os Alemães», todos os alemães, que as crianças eram iguais em Paris e em Göttingen.


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