26/01/08

Alpondras, saudosismo e traduzibilidade: como é que se diz châssis em francês?

As palavras portuguesas que traduzem stepping stone (“uma pedra elevada, normalmente fazendo parte de uma fileira de pedras semelhantes, para ajudar a travessia de um riacho, de uma área lamacenta, etc.”), aprendi eu noutro dia, são alpondra, pondra e poldra. Pouco tempo depois de aprender isto, apareceu-me numa tradução a frase “The awareness building deriving from poor people’s participation in local consultations will act as a stepping stone for sustainable empowerment” e eu fiquei desiludido com o meu novo conhecimento: “A consciencialização resultante da participação das pessoas pobres nas consultas ao nível local servirá de alpondra a um empoderamento sustentável” [desculpem o empoderamento, sim?, de que eu também não gosto, mas é a palavra que se usa em Moçambique neste jargão da cooperação para o desenvolvimento…]? Parece que alpondra não serve bem quando a expressão stepping stone não é usada no seu sentido “primeiro”, mas antes no seu sentido “abstracto” ou “metafórico”. Uma busca simples em Google, no entanto, usando o sintagma “a stepping stone” (com artigo, para evitar nomes de instituições, livros, etc.), mostra que esse sentido “metafórico” é que é, afinal, o seu sentido primeiro – e o outro é relativamente marginal. Acontece...

Serve este pequeno delírio para introduzir de maneira descontraída os temas sérios da tradução e da traduzibilidade. O texto que se segue insere-se numa campanha que eu ando a fazer há muito tempo contra os mitos das palavras intraduzíveis. Estes mitos nacionalistas são um fenómeno mais espalhado do que possa pensar-se. Só para ficar pelas línguas mais próximas, há alemães que defendem a intraduzibilidade de Sensucht (“saudade”), finlandeses que dizem que não há tradução para o seu sisu (“resistência, capacidade de aguentar, de suportar”) que traduz a “alma finlandesa”, dinamarqueses que dizem o mesmo do seu hyggelig (“acolhedor, cómodo, aconchegadinho, confortável”), e holandeses do seu gezellig, que, curiosamente, corresponde ao hyggelig dinamarquês... A mim, portuguesinho que sou, agasta-me sobretudo o nosso mito da “intraduzível saudade” e é esse o tema mais imediato do texto panfletário que se segue.

O mito da intraduzibilidade de saudade é um disparate, mas é um disparate de sucesso – provavelmente até de maior sucesso que muitos outros mitos do mesmo tipo. Vejam a página Saudade da Wikipédia em inglês, por exemplo. Que os operadores turísticos e as editoras de novo fado queiram vender a saudade, eu percebo. Mas estas pessoas que fazem estas páginas da Wikipédia, o que é que aquilo lhes deixará? O mais assustador é a (forte) possibilidade que há de eles acreditarem mesmo no que dizem! A questão é esta: a boa-fé desculpa a falta de bom senso? Se sim, estão todos perdoados. Até Teixeira de Pascoaes.

Pascoaes merece aqui um destaque especial porque foi ele, como se sabe, um dos principais obreiros, se não o principal obreiro, do mito da intraduzibilidade de saudade, sobretudo na sua Arte de Ser Português [citações abaixo da edição Delraux, Lisboa: 1978]. Bom, quando saudade, para ele, significa “fusão do princípio naturalista ou ariano e do princípio espiritualista ou semita … sua unidade sentimental … desejo (parte sensual e alegre – ariana, portanto) e lembrança (face espiritual e dolorida – semita), lembrança que inclui ausência de uma coisa ou de um ser amado que adquire presença espiritual entre nós… desejo [que] é esperança assim como é lembrança pela dor” é verdade que é muito difícil de traduzir essa palavra – até para português… Aliás, Pascoaes vai tão longe na sua obsessão de intraduzibilidade que chega até a afirmar que “para além deste aspecto definido e revelado da saudade, existe ainda a sua feição misteriosa, vaga e indefinida, que devemos perscrutar [sublinho eu] em outros vocábulos intraduzíveis como remoto, ermo, oculto, luar, nevoeiro, medo, sombra, etc.”.

Evidentemente, ideias assim tão estapafúrdias não podem deixar de causar alguma indignação em pessoas com menos tendência para o delírio metafísico. António Sérgio, por exemplo, além de desancar no saudosismo pascoaesiano, apresentou logo uma lista de traduções de saudade em sete línguas [“Epístola aos saudosistas”, in A Águia, vol. 4, 1913, p. 97 e seguintes]:
Muito ao contrário do que Pascoaes afirma, a palavra saudade é traduzível. Várias nações a representam por um termo especial: o galego tem soledades, soedades, saudades; o catalão, anyoransa, anyoramento; o italiano, desio, disio; o romeno, doru, ou dor; o sueco, saknad; o dinamarquês, savn; e o islandês, saknaor… Eles, porém, menos iluminados que nós outros, apesar de terem Ibsens, Ardigos, Höffdings, não se lembraram de construir a filosofia definitiva e surprema do anyoranismo, do desiismo, do doruísmo, do saknadismo, do savnismo, do saknaorismo…. Saknaorismo é catita! Meus queridos amigos, meus confrades, meus irmãos da renascença: é o que vocês são em islandês: saknaoristas!
A lista de António Sérgio é capaz de não ser muito rigorosa, pelo menos relativamente a saknaor, mas não tenho a certeza – o verbo sakna pode, de facto, significar “ter saudades de”, mas o meu corrector ortográfico de islandês não reconhece a forma saknaor, além de que uma busca de saknaor em Google em páginas em islandês não me dá nenhum resultado. Algo aqui não bate certo…. Mas enfim, rigorosa ou não, a lista também não é muito completa. É possível acrescentar muito mais termos à lista de Sérgio. A referida página da Wikipedia propõe alguns e eu, com um bocado de trabalho, poderia provavelmente acrescentar centenas – se fosse esse o meu jogo… Sem sair das sete línguas que Sérgio menciona, poderia acrescentar morriña e señerdá em galego, længsel em dinamarquês e, para as saudades da terra, hjemve também em dinamarquês e Heimweh em alemão. Notem, no entanto, que nem todos os termos aqui propostos para traduzir saudade, embora possam perfeitamente servir para tal em determinados contextos, lhe correspondem directamente. É que saudade tem uma restrição semântica que não se aplica a alguns deles: só se pode ter saudades do que se conhece.

Mas isso importa pouco. O que importa é que, se palavras “intraduzíveis” são palavras sem correspondência biunívoca com um item lexical de outra língua, que é o que parece querer dizer muitas vezes quem postula que essas palavras existem, praticamente todas as palavras de todas as línguas são intraduzíveis – excepto, talvez, nomes de objectos físicos, mas, mesmo o caso dos nomes das coisas não é tão simples como pode parecer à primeira vista. , dar ou comer são altamente intraduzíveis nesta acepção de intraduzibilidade. E ainda que, afrouxando um bocado o conceito de intraduzibilidade, seja considerada intraduzível a palavra que não tem palavras que lhe correspondam directamente (embora não biunivocamente) na mesma categoria lexical noutras línguas, continua a haver em português palavras com muito mais probabilidades de serem intraduzíveis do que saudadepingarelho, por exemplo. Discutir se as palavras são ou não traduzíveis, porém, é já uma maneira errada de abordar a questão.

Quando se postula a “intraduzibilidade” de um palavra, o que se faz é ignorar a regra de base da tradução: o que se traduz não são palavras, mas frases (uso a palavra frase para simplificar). E uma palavra ou expressão, como vimos na introdução com stepping stone, pode ter de se traduzir, em frases diferentes, por palavras ou expressões diferentes. Além disso, uma ideia que numa língua é expressa só por um verbo, por exemplo, pode ter de ser, noutra língua, dita com um verbo não predicativo mais um nome ou um adjectivo (“I’m freezing” = “Estou cheio de frio”/“Tenho muito frio”). Etc., etc., etc. Deixemo-nos então de palavras (stepping stone é uma palavra ou duas? E couve-flor?) e pensemos em termos de frases. Curiosamente, a tradução de frases com a palavra saudade não costuma colocar ao tradutor problemas por aí além (sobretudo comparando com frases com a palavra pingarelho..). “Tenho saudades da minha tia” (ou “…de ti, meu amor” ou “…da Mari’ Francisca”, é irrelevante) é uma frase que se traduz com uma perna às costas. Um texto como o daquela cantiga que há “ai, que saudades da minha piquena aldeia / ai, que saudades, saudades da luz da candeia” pode facilmente traduzir‑se para qualquer língua, se bem que, sinceramente, não veja bem que interesse isso possa ter (traduzir uma cantiga assim, quero eu dizer)... “Sentiu a saudade devorar-lhe o peito” já é mais difícil, mas, com o contexto a ajudar (é preciso saber de que é a saudade, ou de quem) também se lá vai sem passar muitas noites em claro… Intraduzibilidade? Ora, sejamos sérios!

Para terminar, há uma falta de seriedade indesculpável no postulado da intraduzibilidade de uma determinada palavra, seja de que língua for: é que para afirmar que uma palavra não tem tradução, há que o ter verificado em todas as línguas existentes (entre 3 e 6 mil, depende de como se contam…)!... Que é para ter a certeza, por exemplo, de que hiraezh em bretão ou watukuy em quéchua não são bons candidatos à tradução de saudade... Vale a pena sublinhar que os defensores da intraduzibilidade de uma palavra nunca se dão a esse trabalho?

3 comentários:

Anne Berbert disse...

Muito bom essa postagem! Sou brasileira, estudo História, e línguas, que é uma grande paixão.
Obrigada pela postagem esclarecedora, e sucesso!

Unknown disse...

Aquilo que designas por "postulado da intraduzibilidade de uma determinada palavra" representa, a meu ver, uma afirmação, por pouco rigorosa que seja, de uma característica, uma forma de ser, sentir ou agir que um determinado povo reconhece em si próprio como definidor da sua originalidade cultural. Não conheço nenhum estudo, no entanto, que permita afirmar-se com rigor que todos os portugueses reconhecem o conceito de saudade ou a sua intraduzibilidade para outras línguas, como distintivo da sua originalidade. Estas afirmações são subjectivas, são representações ou tentativas de representação de um património emocional colectivo que nem sempre se baseiam em premissas rigorosas, dado estarmos no campo das imagens, das representações ou seja, do modo como me vejo a mim própria e/ou do modo como penso que os outros me vêm. O marketing costuma usar muito bem, para fins comerciais ou políticos estes (pre)conceitos que acabam, pela repetição ao longo do tempo, por assemelhar-se a verdades inquestionáveis. Apesar destas considerações achei graça ao poster e decidi publicá-lo com uma finalidade específica (secreta!:D ) por isso, não me leves a mal!

Vítor Lindegaard disse...

Lucinda, desculpa lá não te ter respondido antes, mas é porque, como sabes, já te respondi noutro lado :) Não te levo nada a mal, o que havia de levar-te a mal? Quanto ao póster, bom, eu sei de que póster se trata, mas as outras pessoas que lerem o teu comentário não hão de perceber nada. Beijinhos!