É comum apelar-se ao respeito das culturas, mas já é muito mais raro defender com argumentos esse apelo. Eu, que nunca tive especial respeito pela minha cultura, custa-me muitas vezes perceber o que é que há de tão respeitável nas outras culturas. Não vou postular aqui que todas as culturas são só feitas de coisas más (para falar a verdade, nem sei bem o que de que é que elas são feitas), mas não há nenhuma cultura defensável do ponto de vista moral. Aliás, o que é sempre defensável em qualquer cultura (comida, música, dança, etc.) não tem implicações morais. Defina-se cultura como se definir, pouco importa, a igualdade e a justiça ficam sempre de fora de todas as culturas, porque ficam forçosamente de fora de toda a informação adquirida acriticamente.
Sejamos claros: coisas como o racismo, o machismo, o elitismo de certos grupos ou camadas sociais, por exemplo, existem, com mais ou menos intensidade e sob formas diferenciadas, em todas as culturas que conheço. Quando me dizem que tenho de respeitar as outras culturas, significa isso que só tenho o direito de recusar esses fenómenos na minha cultura? A mim, parece‑me claro que posso recusá‑lo em todas, porque as razões que tenho para o fazer não são determinadas por uma cultura específica, nem a minha nem a de ninguém. A universalidade a que aspiro é a do bom senso que permita que gente oriunda de todas as culturas participe ao mesmo nível na discussão das leis e dos princípios que devem reger a sua vida – de fora da cultura que herdou sem que ninguém lhe perguntasse o que pensava dela.
Podem acusar-me de estar a usar um conceito redutor de cultura, mas é este o conceito que se usa normalmente quando se fala da “cultura francesa” ou da “cultura latina” ou da “cultura africana”. Cultura, no sentido em que a palavra é habitualmente usada, são costumes, hábitos, tradições. E é contraditório aceitar o primado dos costumes, dos hábitos, da tradição e defender ao mesmo tempo a ideia de democracia. E isto porque a democracia não pode, em nenhuma das formas que possa eventualmente tomar na prática, deixar de ser, em abstracto, uma forma de governo em que os membros da sociedade em que ela funciona vão decidindo a cada instante, como governantes, sobre as leis que querem para si próprios, enquanto governados. Se houver vontades ou ideias que valham, à partida, mais do que outras ideias ou outra vontades, não há democracia. Dito de outra maneira: uma sociedade é tanto mais democrática quanto mais as leis que a regem tiverem sido decididas numa discussão de todos os seus membros de igual para igual. Ora uma cultura é uma imposição a priori e aceitá-la é aceitar um código para que nenhum dos presentes foi chamado a contribuir. Aceitar uma cultura, em última análise, não é apenas deixar que a comodidade do involuntariamente adquirido se sobreponha ao desafio da escolha consciente, é também impor essa escolha a quem não esteja interessado nessa opção de facilidade.
Se alguém, na discussão efectivamente democrática das linhas com que a comunidade se há-de coser, tiver como proposta de comportamento o código de comportamentos tradicionais, deve propô-lo – e essa proposta deve ter o mesmo valor que qualquer outra proposta. Esta é a única maneira de não pôr em cheque a democracia, porque uma proposta de comportamentos tradicionais que seja uma proposta de comportamentos ao mesmo nível das outras já não é uma verdadeira imposição de cultura, uma vez que esta pode, então, ser discutida, posta em causa, alterada, esquartejada ou deitada fora. Perde, portanto, o carácter religioso que têm as verdadeiras tradições, costumes e hábitos (tens de fazer assim, porque é assim que se faz) e passa a ser só mais uma contribuição (eu gostava que se fizesse assim; e vocês?).
Finalmente, se, por ser fraco o argumento ético (que não é!), fosse preciso um argumento de tipo pragmático ou estratégico contra a prevalência de uma herança cultural, seria sempre fácil argumentar que é forçosamente menos adaptado à situação actual um código de comportamentos que foi criado sem ter em conta essa situação, num estado anterior da sociedade. Logicamente, as leis e as regras de conduta de uma sociedade só não se tornarão obsoletas se forem mudando à medida que mudam as condições de vida dessa comunidade. A objecção de que as condições sociais não estão em mutação permanente é fraca, porque o facto de se aceitar que elas possam mudar (e não há ninguém em seu perfeito juízo, creio, que não o aceite) é já bastante para que se defenda, em abstracto, um mecanismo ágil e eficaz em caso de mudança; para que não se aceite, portanto, nenhuma proposta de códigos de comportamento baseados em valores tradicionais – na “cultura portuguesa”, na “cultura moçambicana”, na “cultura dinamarquesa”, seja lá em que cultura for.
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