São famosas as brincadeiras que há sobre traduções literais de expressões idiomáticas. Uma das mais famosas é propor “You are here, you are eating!” como tradução da ameaça “‘Tás aqui, ‘tás a comer!”
Antes de entrar num comentário da frase, faço uma pequena excursão para falar um bocado de comer, que é uma coisa de que eu gosto. Não me entendam mal: é verdade que gosto de comer, mas o que eu quero dizer aqui é que gosto de falar da palavra comer, ou melhor do conceito comer. Já disse aqui uma vez que não se traduzem palavras, só frases. E é curioso que mesmo uma palavra aparentemente muito simples como a palavra portuguesa comer não encontra noutros idiomas uma correspondente directa, no sentido de cobrir o exactamente os mesmos significados. Comparemos com o espanhol comer e o inglês eat, para não ir mais longe. Saindo dos significados base de “meter à boca, mastigar e engolir”, no seu uso transitivo, ou de “alimentar-se”, no uso intransitivo, começam as divergências.
Em inglês, por exemplo, eat pode referir a acção de erosão, de degradação da saúde, de diminuição de recursos, ou de destruição por animais como ratos ou traça, situações em que nós não usamos comer, mas antes arruinar, dar cabo de, minar, desgastar, roer. Mas usamos comer como os ingleses usam eat quando é de corrosão que se trata. Além disso, um carro também pode eat up gasolina ou distâncias, ao passo que, em português, ele gasta ou bebe gasolina e devora distâncias; e um país pode eat up os países vizinhos, em vez de os anexar.
Em espanhol, um penteado pode comer a cara de alguém, e os gastos podem comer as poupanças, como a renda pode comer metade do salário. Não me parece que se use comer em nenhuma destas situações em português, embora não nos chocasse a palavra, se alguém, por castelhanismo, a usasse, e compreenderíamos decerto o que queria dizer... Curiosamente o uso de comer relativamente a recursos económicos é mais parecido em espanhol e inglês do que em espanhol e português. Já noutras coisas o comer castelhano se usa mais como em português: uma pessoa pode comer quatro anos de cadeia e pode comer as palavras ou parte delas, e também pode comer alguém na última curva de uma corrida, e o sol pode comer as cores de um tapete; e também se pode comer uma rainha ou uma dama, seja em jogos de tabuleiro, seja sexualmente falando... Mas comer um poste, como se diz em espanhol com sentido de “espetar-se contra” ele, não se diz assim nem em inglês nem em português...
Podíamos passar nesta brincadeira o resto da vida. Mas voltemos ao comer que aqui nos trouxe: “Estás aqui, estás a comer” não é, afinal nada de estranho. Basta saber que comer é “levar tareia” (o que não choca, tendo em conta muitos dos outros significados da palavra: comer é, muitas vezes “ser o recipiente de”) e o resto é simples. Aqui, a palavra aqui tem um sentido temporal, não é? Como tem muitas vezes em português (“daqui a quinze dias, daqui em diante, etc.”). Aliás, as expressões de lugar e de tempo são muitas vezes as mesmas, até porque o espaço e o tempo se organizam semanticamente de uma forma semelhante e parece que são processados nas mesmas partes do cérebro. Então o “estás aqui, estás a comer!” é a criação de um “falso presente”, digamos assim, que por ser apresentado como “presente” é que é ameaçador – ou ao contrário: que se apresenta como “presente” para ser ameaçador.
É claro, como é só o português que tem a possibilidade de dizer isto desta maneira, pode dizer-se com propriedade que estamos perante um fenómeno idiomático... como estamos sempre quando alguma coisa é dita numa língua. Mas, se nos deixarmos de lado essa generalidade demasiado geral, muitas das expressões ditas idiomáticas não o são de facto. São figuras de estilo que só se tornaram populares numa determinada região e que, por isso, só se usam na língua dessa região, mas que nada impediria de terem tido a mesma fortuna noutra regiões e noutras línguas. Vejamos alguns casos:
Ficar feito num oito, por exemplo, é uma imagem apenas, talvez proveniente de acidentadas rodas de bicicleta… Não se diz noutras línguas, mas não é porque o significado de oito em português seja diferente do significado do mesmo algarismo em francês ou italiano. Uma expressão como dar corda aos sapatos, que não é senão uma imagem, pode ser compreendida numa boa tradução para qualquer língua... O mesmo andar às aranhas, desamparar a loja a alguém, ficar a ver navios, ser um fala-barato, estar com olhos de carneiro mal morto, etc. O que não se pode é traduzir de uma maneira parva, como se faz normalmente nas anedotas para aumentar o efeito cómico…
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