05/06/08

Deve-se dizer “deve dizer‑se” ou deve dizer-se “deve‑se dizer”? (2)

É curioso: quando uma pessoa acaba de me conhecer e descobre que sou professor de português, arranja sempre maneira de me fazer alguma pergunta sobre se se diz assim ou se se diz assado, e fica sistematicamente desiludida quando eu discorro sobre o fenómeno em vez de lhe dar uma regra. As pessoas, não sei por quê, aceitam mal que se encare a língua como objecto de reflexão. Preferem que seja apenas objecto de regulamentação. O que não deixa de ser curioso. Ninguém imagina, por exemplo, já não digo um botânico, mas, vá lá, um jardineiro a discutir se uma planta deve ser de uma determinada cor ou ter ou uma determinada forma… A língua, porém, ninguém a quer ver como um ser natural…

Bom, não quero dizer com isto que haja uma ruptura definitiva entre a reflexão técnica, digamos assim, sobre a língua e a sua “regulamentação” – até porque se pode sempre rebater de um ponto de vista técnico as razões apresentadas para que determinada coisa “deva” ser de determinada maneira, que é o que eu faço neste texto. Quero dar-vos dois exemplos de “erros” que eu acho que é impossível provar que o são, embora sejam considerados como tal pela quase totalidade de gramáticos e gramáticas.

Começo por um “erro” só da escrita, que é pôr uma vírgula entre o sujeito e o verbo. As regras admitem esta vírgula em circunstância especiais que não vou aqui discutir, mas dizem que, no caso de uma oração em que sujeito o seja só daquele verbo, nunca se pode. Mas nunca porquê? Eu digo que, às vezes, essa vírgula tem razão de ser. Não digo que a uso ou que deve ser usada, apenas que é, no mínimo, muito discutível que esteja mal:

Se em francês ou em inglês se usa o chamado pronome enfático, ninguém tem dúvidas em colocar uma vírgula depois dele, entre esse pronome e o sujeito do verbo: «moi, j’aime le music hall» ou «me, I’m only the piano player». Se «j’aime le music-hall» se traduz por «gosto de music-hall” e “I’m only the piano player” por “sou só o pianista”, as frases com pronome enfático traduzem‑se por «eu (cá), gosto de music‑hall» e «eu (cá), sou só o pianista». Só que este pronome dito enfático tem, em português, uma forma igual à do pronome sujeito. Há muito boas razões teóricas para defender que este eu não é o sujeito imediato do verbo, digamos assim, ou seja, que não está ao mesmo nível na hierarquia dos enunciados, mas eu não quero meter-me por estas questões técnicas adentro. Quero apenas explicar que a vírgula que alguns põem instintivamente em contextos deste tipo está assim justificada.

Evidentemente, é muito mais difícil pensar em questões como: Qual é a diferença entre «eu, gosto de music‑hall» e «gosto de music‑hall»? Em que contextos de comunicação ou de expressão se utilizam as duas formas? Haverá uma terceira possibilidade, um «eu gosto de music‑hall» em que o eu não seja um pronome enfático e que, portanto, não corresponda a uma frase com moi em francês ou me em inglês? Etc. É muito mais fácil decorar numa gramática “nunca se põe uma vírgula entre o sujeito de um verbo e esse verbo”, pronto!, sem se interrogar nunca sobre o que é de facto o sujeito de um verbo... E pode argumentar-se, claro está, que é essa a “vantagem” da regra…

Como a tradição não é e não foi sempre a mesma em todo o lado, vamos encontrar escritores consagrados a usar vírgula entre sujeito e verbo. Em princípio, a regra é a mesma em espanhol, francês, ou inglês, pelo que passo agora a dar um exemplo de John Stuart Mill, que usa várias vezes vírgulas entre o verbo e o sujeito, sem que isso roube nenhuma lógica ao seu discurso: «The aim, therefore, of patriots, was to set limits to the power which the ruler should be suffered to exercise over the community; and this limitation was what they meant by liberty.» [“O objectivo, pois, dos patriotas, era estabelecer limites ao poder que se admitisse ao governante exercer sobre a comunidade; e este limite era para eles o significado de liberdade”]. É de notar que, em línguas como o inglês, o que acontece neste tipo de frases na oralidade, em contextos informais, é, precisamente, introduzir um “segundo sujeito” it depois da vírgula “errada” de Stuart Mill: «Well, you see, the aim of patriots, it was to set limits to the power…» E note-se até que, em francês, o uso de um “segundo sujeito” ce (« le but des patriotes, c’était de… ») neste tipo de frases não se limita de modo algum a registos informais. Que justificação haverá para tal fenómeno? Fica aqui mais matéria de reflexão para quem se interesse por mais do que regulamentar apenas.

Além disso, já vi várias vezes tolerado, que nunca obrigatório, o uso de uma vírgula a separar o sujeito do verbo quando o sujeito é muito longo e é bem provável que, concordando-se ou não com esta prática, testes empíricos de legibilidade confirmem o bom senso da proposta.

Mas passemos agora a um outro alegado “erro” que não é só da escrita, senão podem acusar‑me de estar a fazer batota: ter que em vez de ter de.

Porque deve dizer‑se «tenho de comprar esparguete» e não «tenho que comprar esparguete», como muita gente diz? A argumentação comum é que só de é que é preposição, e que que não o é; e que ter que se utiliza numa situação completamente distinta, como em «não posso sair hoje, porque tenho que fazer», em que a última oração é parafraseável por «porque tenho coisas para fazer». Muito bem! Então, digam‑me lá:

Se em castelhano só se pode dizer tener que e não existe tener de, será porque o que castelhano tem características fundamentalmente distintas do que português? Ou será que são os infinitivos em espanhol que têm características diferentes dos infinitivos das outras línguas e aparecem depois de outras categorias que não sejam as preposições? Muitos responderão que sim, que o que espanhol é diferente do que português. Eu tenho muitas dúvidas, mas aceito a contra-argumentação, porque é possível que assim seja. Mas insisto de outra forma:

Numa frase como «há que esperar mais um bocadinho», pela mesma lógica, também tem de se utilizar um de – «*há de esperar mais um bocadinho» –, não é? Ou este que é do mesmo tipo do que em «tenho muito que fazer»? Bom, não se vê bem como é que a frase com haver que se pode parafrasear por «há coisas para esperar mais um bocadinho»...

É verdade que tento escrever de acordo com as normas dominantes, mas é pela mesma razão que uso gravata em certas ocasiões: por estratégia, para tomarem atenção ao meu conteúdo e não à minha forma. De resto, não acredito em nenhuma superioridade essencial da norma em relação ao resto. Da mesma forma que um fato com gravata não é, em absoluto, melhor do que outra roupa qualquer, também o padrão de uma língua não é, em absoluto, melhor do que as formas não standard. O que se pode dizer é que, da mesma forma que andar de calções no Inverno é, objectivamente, vestir-se mal, também não dizer bem o que se quer dizer é, de facto, usar mal a língua. Para mim, falar ou escrever mal é dizer uma coisa que não é o que se quer dizer ou dizer uma coisa que se pode entender de várias maneiras, ou simplesmente dizer uma coisa que não se percebe. É um erro técnico, mas de um tipo diferente dalguns que criticam desapiedadamente os puristas. É mais como desequilibrar-se ou tirar uma fotografia tremida. E é de evitar ser mal entendido ou não ser entendido, mesmo que as frases que não se percebem sejam frases sem erro nenhum, como muitas que eu ganho a vida a traduzir: «Para contribuir da forma não só mais eficiente mas também mais simples e eficaz para o desenvolvimento metodológico neste campo, foi decidido criar-se um fórum que orientasse o processo e facilitasse a aprendizagem de todas as partes interessadas, plataforma essa cujas tarefas mais importantes vieram a ser a concepção e a implementação de um sistema actualizado e funcional de controlo do desempenho dos intervenientes no programa, a capacitação ao nível regional e o apoio à elaboração de sistemas de monitoria adequados para projectos temáticos específicos, além do desenvolvimento de um conjunto de padrões e indicadores quantitativos e qualitativos a serem usados em avaliação globais que procuram aferir as mudanças registadas não só ao nível do contexto em que a intervenção se insere como no próprio interior das estruturas que a coordenam». O quê?

É de evitar isso e pegas no paleio. Quando todos nos entendemos, vale mais discutir o que se diz do que discutir como se diz. Não sou eu, com certeza, que vou perder tempo a corrigir alguém que escreva: «Nós, temos é que acabar com essa mania que há de atacar a forma em vez de discutir conteúdo…».

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