03/06/08

O regresso às origens: do Senegal como Brasil ideal

“Deve ser legal ser negão no Senegal”, diz Chico César no seu hit “Mamã África”. Regresso às origens, diz você, Chico César. Mamã Àfrica: Deve ser legal ser negão no Senegal? Pois olhe, eu tenho a certeza de que muitos senegalenses prefeririam ser negões no Brasil… Além de um achado sonoro quase tão bom como “qual é o pente que te penteia” de “Nêga do Cabelo Duro” de David Nasser, a frase é, sobretudo, expressão de um etno-romantismo (o louvor da “pureza das raízes”) que nunca levou nem há-de levar a lado nenhum… Não só porque, confrontados com a realidade das “raízes” idealizadas, nos apercebemos depressa que elas não são, afinal assim tão perfeitas, mas também porque, se quisermos ser mais rigorosos na procura dessas raízes, chegamos forçosamente à conclusão de que elas pura e simplesmente não existem.

Conheço propostas extremamente radicais de “regresso às origens”. «Para nós, o caminho é a descolonização, quer dizer, sermos nós mesmos, e deixar vazio o que há de Ocidente, como dizia Gandhi, referindo‑se ao sentido último da liberdade na Índia: Des‑aprender o que nos inculcaram os colonizadores», diz o pensador indigenista Grimaldo Rengifo Vásquez*, que trago aqui como exemplo desse radicalismo. «Ser nós mesmos, significa deixar vazio o desenvolvimento e robustecer o andino, descolonizar‑nos. (…) [Robustecer o seu próprio modo de ser] significa recuperar para todo o âmbito andino as suas sementes nativas, os seus animais nativos, os seus modos de recriar os saberes, a sua religiosidade panteísta. (p. 42).» Outro indigenista radical, Luciano Tapia, afirma**: «Nós, os indianistas, proclamamos e defendemos o direito natural dos povos a reivindicar as formas do seu governo ancestral, da sua autonomia e soberania política, conforme o direito de domínio histórico dos originários ou povos milenários. De maneira que o homem índio possa realizar‑se plenamente como consciência, identidade sócio‑cultural, do ser nacional, no quadro da sua própria história e cultura.»

“Des‑aprender o que nos inculcaram os colonizadores”; “recuperar as sementes nativas, os animais nativos”; “reivindicar as formas de governo ancestral”: o que se propõe de facto é o regresso ao passado. Mas um regresso ao passado é uma proposta com um sentido apenas aparente. O que é que quer realmente dizer recuperar uma maneira de ser num contexto diferente? O idealismo da proposta torna‑se evidente, porque se assume que o ser de um povo é independente das suas circunstâncias. O tal ser andino de antigamente, para poder ser recuperado hoje, teria que ser independente das condições de antigamente, teria de ser uma essência imutável. Por outras palavras, é assumir que 500 anos de história não afectaram este ser, que o contacto prolongado com a sociedade europeia ou criolla não lhe fizeram nada… É difícil de aceitar. Os povos não têm essência nem alma, têm condições históricas, que, em vez de imutáveis e coesas, são, pelo contrário, em permanente mudança e cheias de contradições. Levado à letra, este tipo de postura exige, por exemplo, que se abandonem os trajes típicos dos indígenas e a música tradicional, porque estão cheios de influência dos colonizadores. Por outras palavras, aquilo que é considerado normalmente o definidor de uma cultura deve ser abandonado, porque não é “puro”, da mesma forma que são rejeitadas, por impuras, as técnicas de cultivo, as sementes ou os animais não originários, como o burro, por exemplo. Mas levanta‑se um problema teórico insolúvel: qual é o estado “puro” do “ser” andino a ter como referência? Acreditar‑se‑á que as sementes e os produtos agrícolas originários existiram sempre e foram sempre os mesmos? Ou são o resultado de um processo de domesticação da natureza que resultou, como em qualquer parte do mundo, do encontro e do confronto de saberes vários? O que é extremamente contraditório, além do mais, é que renegar o saber “ocidental” significaria passar a desconhecer uma parte do saber andino antigo, que foi, em determinados períodos, abandonado ou destruído pelos próprios andinos e que só o saber “ocidental” permitiu redescobrir…

O problema para mim não são tanto estas convicções idealistas. A teoria, como a fé, por si só não tem consequências reais. O problema real começa nas propostas de acção. Se alguém se dispusesse a levar efectivamente a cabo o processo de “purificação” proposto, o resultado seria sem dúvida caótico, porque ninguém resiste a abandonar todas as suas referências culturais de facto na busca de algo que ninguém sabe o que é.

Mia Couto diz algo muito semelhante num discurso admirável apresentado na Associação Moçambicana de Economistas a 30 de Setembro de 2003, que podem (e devem!) ler na íntegra:

«Numa conferência em que este ano participei na Europa, alguém me perguntou: O que é, para si, ser africano?

E eu lhe perguntei, de volta: E para si, o que é ser europeu?

Ele não sabia responder. Também ninguém sabe exactamente o que é africanidade. Neste domínio há muita bugiganga, muito folclore. Há alguns que dizem que o “tipicamente africano” é aquele ou aquilo que tem um peso espiritual maior. Ouvi alguém dizer que nós, africanos, somos diferentes dos outros porque damos muito valor à nossa cultura. Um africanista numa conferência em Praga disse que o que media a africanidade era um conceito chamado “ubuntu”. E que esse conceito diz que “eu sou os outros”.

Ora todos estes pressupostos me parecem vago e difusos, tudo isto surge porque se toma como substância aquilo que é histórico. As definições apressadas da africanidade assentam numa base exótica, como se os africanos fossem particularmente diferentes dos outros, ou como se as suas diferenças fossem o resultado de um dado de essência.

África não pode ser reduzida a uma entidade simples, fácil de entender. O nosso continente é feito de profunda diversidade e de complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais valiosos patrimónios do nosso continente. Quando mencionamos essas mestiçagens falamos com algum receio, como se o produto híbrido fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da espécie humana. Os senhores dizem que não há economia actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.»

O discurso de Mia Couto termina com a única injunção que, para mim faz sentido (ele di-lo a propósito a da nação moçambicana e da moçambicanidade, mas pode aplicar-se a qualquer outra procura de identidade):

«A nossa única saída é continuar o difícil e longo caminho de conquistar um lugar digno para nós e para a nossa pátria. E esse lugar só pode resultar da nossa própria criação.»

É isso mesmo: o caminho é para a frente, não para trás. O Senegal onde há-de ser legal ser negão só pode ser, afinal, um Brasil que se venha a construir.

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* “Desaprender la modernidad para aprender el andino”, in revista unitas, Nº 4, La Paz: Dezembro de 1991, p. 41, traduzo eu.
** “Resumen de principios ideológicos, posición política y objetivos de mitka”, in revista unitas, Nº 3, La Paz: Setembro de 1991, p. 49, traduzo eu.

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