«Este (…) comboio [de Machu Pichu para Cuzco] tem uma carruagem de terceira classe para os índios locais: são como as que se usam para transportar gado na Argentina, com a diferença que o cheiro de bosta de vaca é bastante mais agradável que o do seu equivalente humano. A ideia algo primitiva que os índios têm do pudor e da higiene leva a que, seja qual for o seu sexo ou a sua idade, façam as suas necessidades à beira dos caminhos, limpando‑se as mulheres com as saias e os homens não se limpando de todo, e depois continuem o seu caminho, como se nada fosse.»
Reagi mal e por escrito, mas só para mim… Não vou agora pôr aqui o texto que escrevi, até porque era extenso, mas o fundamental era que a «ideia primitiva de higiene» que Guevara refere é comum às populações da maioria dos tempos e dos lugares, apenas porque só se podem desenvolver as noções de higiene que ele achava aceitáveis em determinadas circunstâncias. «Quanto a mim», escrevia eu, «estes hábitos estão relacionados pura e simplesmente com a existência de meia dúzia de condições materiais e dificilmente serão alterados, se elas não forem alteradas.»
É uma ideia que já ouvi defender aqui em Moçambique em relação às queimadas, contra as quais tanto se tem lutado em vão: «Enquanto não houver ferramentas que possibilitem a redução do esforço físico, há-de sempre haver queimadas. Quem é que quer limpar machambas à força de braço?» E a minha conclusão era que não há nenhuma «ideia» a determinar a pouca higiene dos camponeses peruanos (ou as queimadas): «Eu, por exemplo, exactamente como vocês me conhecem, com a minha cultura “europeia”, “moderna”, “urbana”, se for viver para uma casa de adobe no planalto, sem dinheiro para nada e sem água corrente em casa nem água seja lá de que tipo for em sítio nenhum ali perto, mudo logo no primeiro dia da minha nova vida a minha ideia de higiene, querem apostar?»
Continuo a achar que a minha argumentação da altura faz todo o sentido, mas isso não significa que não aceite também que certas ideias possam estar por trás das maneiras de agir. Li agora há pouco tempo um artigo do médico e sociólogo Nicholas Christakis em que ele dá conta do trabalho sobre redes sociais que tem feito com o seu colega de ciências políticas James Fowler. A partir de uma quantidade grande de dados (referentes a 12 000 pessoas no decorrer de 32 anos), Christakis e Fowler têm estudado as redes sociais e a forma como certos fenómenos se espalham nessas redes sociais; sobretudo a obesidade, mas não só. E concluem que o que se espalha são ideias (ele chama-lhe norms, no sentido de «padrões») e não hábitos de comportamento. Por exemplo, no caso concreto da obesidade, é, segundo eles, uma concepção do que é uma massa corporal aceitável que se propaga e não hábitos alimentares específicos.
Agora, aceitar uma proposta destas não é, afinal, aceitar uma ideia clássica de cultura como um conjunto de ideias adquiridas que determinam a nossa maneira de ver o mundo? Podemos chamar-lhes memes, para dar um toque de modernidade à coisa, mas a ideia de base é a mesma. Não teria mesmo razão o jovem Ernesto de la Serna e não terão os quíchuas do altiplano peruano aprendido uma determinada ideia «primitiva» de higiene? É possível. Não tenho maneira nenhuma de julgar a validade das conclusões de Christakis e Fowler, mas, se estou disposto a aceitar que se espalham ideias em vez de hábitos, é porque essa tese tem mais poder explicativo: ela permite explicar, precisamente, o facto de não serem sempre os mais próximos de nós a influenciarem-nos e porque (isto não diz Christakis, digo eu), dado que implica economia no tempo de exposição ao «contágio», é capaz de ser boa explicação para a grande rapidez com que muitos comportamentos se alteram. O que já tem menos a ver com a tal ideia clássica de cultura. Além disso, deixem-me lá puxar a brasa à minha sardinha, pouco importa que ideia eu tenha do que é uma massa corporal aceitável, se não tiver acesso a comida em quantidade suficiente e for forçado a muito exercício físico, não consigo mesmo engordar – donde que não se podem nunca deitar fora as circunstâncias…
Mas enfim, seja qual for a parte de verdade que haja na minha focalização nas circunstâncias e na hipótese de Christakis e Fowler (ou em ambas, conforme a que se apliquem…), o que me parece inegável é que, ao contrário do que muita gente afirma, não há nada em nós que nos impeça de mudar muito rapidamente – e podemos mudar, como Christakis nota e muito bem, independentemente de quais sejam as ideias dominantes na nossa sociedade.
Voltando à questão da higiene e para não chegar a conclusão nenhuma (a não ser à conclusão óbvia de que há mais do que apenas padrões culturais e circunstâncias materiais a modelar o comportamento de cada um…), deixo-vos uma história daqui de casa:
Há uns meses, o Sr. João, o nosso jardineiro, veio queixar-se de que o guarda (pois, é assim a vida dos ricos em Moçambique: jardineiro, guarda…) deixava a casa de banho num nojo de cada vez que a utilizava.
«Fale com ele, Sr. João», disse eu, «e explique-lhe que não pode ser assim, que ninguém tem nada de andar a limpar a porcaria que ele faz.» E acrescentei, muito compreensivo: «Mas é natural, sabe? Ele não está habituado a usar uma casa de banho assim...»
O Sr. João deu-me logo uma lição de antropologia:
«Não está habituado? Ele é mas é porco, porque eu também nunca tive casa de banho em minha casa, mas, da primeira vez que tive de utilizar uma casa de banho, não fiz a porcaria que ele faz.»
Continuo a achar que a minha argumentação da altura faz todo o sentido, mas isso não significa que não aceite também que certas ideias possam estar por trás das maneiras de agir. Li agora há pouco tempo um artigo do médico e sociólogo Nicholas Christakis em que ele dá conta do trabalho sobre redes sociais que tem feito com o seu colega de ciências políticas James Fowler. A partir de uma quantidade grande de dados (referentes a 12 000 pessoas no decorrer de 32 anos), Christakis e Fowler têm estudado as redes sociais e a forma como certos fenómenos se espalham nessas redes sociais; sobretudo a obesidade, mas não só. E concluem que o que se espalha são ideias (ele chama-lhe norms, no sentido de «padrões») e não hábitos de comportamento. Por exemplo, no caso concreto da obesidade, é, segundo eles, uma concepção do que é uma massa corporal aceitável que se propaga e não hábitos alimentares específicos.
Agora, aceitar uma proposta destas não é, afinal, aceitar uma ideia clássica de cultura como um conjunto de ideias adquiridas que determinam a nossa maneira de ver o mundo? Podemos chamar-lhes memes, para dar um toque de modernidade à coisa, mas a ideia de base é a mesma. Não teria mesmo razão o jovem Ernesto de la Serna e não terão os quíchuas do altiplano peruano aprendido uma determinada ideia «primitiva» de higiene? É possível. Não tenho maneira nenhuma de julgar a validade das conclusões de Christakis e Fowler, mas, se estou disposto a aceitar que se espalham ideias em vez de hábitos, é porque essa tese tem mais poder explicativo: ela permite explicar, precisamente, o facto de não serem sempre os mais próximos de nós a influenciarem-nos e porque (isto não diz Christakis, digo eu), dado que implica economia no tempo de exposição ao «contágio», é capaz de ser boa explicação para a grande rapidez com que muitos comportamentos se alteram. O que já tem menos a ver com a tal ideia clássica de cultura. Além disso, deixem-me lá puxar a brasa à minha sardinha, pouco importa que ideia eu tenha do que é uma massa corporal aceitável, se não tiver acesso a comida em quantidade suficiente e for forçado a muito exercício físico, não consigo mesmo engordar – donde que não se podem nunca deitar fora as circunstâncias…
Mas enfim, seja qual for a parte de verdade que haja na minha focalização nas circunstâncias e na hipótese de Christakis e Fowler (ou em ambas, conforme a que se apliquem…), o que me parece inegável é que, ao contrário do que muita gente afirma, não há nada em nós que nos impeça de mudar muito rapidamente – e podemos mudar, como Christakis nota e muito bem, independentemente de quais sejam as ideias dominantes na nossa sociedade.
Voltando à questão da higiene e para não chegar a conclusão nenhuma (a não ser à conclusão óbvia de que há mais do que apenas padrões culturais e circunstâncias materiais a modelar o comportamento de cada um…), deixo-vos uma história daqui de casa:
Há uns meses, o Sr. João, o nosso jardineiro, veio queixar-se de que o guarda (pois, é assim a vida dos ricos em Moçambique: jardineiro, guarda…) deixava a casa de banho num nojo de cada vez que a utilizava.
«Fale com ele, Sr. João», disse eu, «e explique-lhe que não pode ser assim, que ninguém tem nada de andar a limpar a porcaria que ele faz.» E acrescentei, muito compreensivo: «Mas é natural, sabe? Ele não está habituado a usar uma casa de banho assim...»
O Sr. João deu-me logo uma lição de antropologia:
«Não está habituado? Ele é mas é porco, porque eu também nunca tive casa de banho em minha casa, mas, da primeira vez que tive de utilizar uma casa de banho, não fiz a porcaria que ele faz.»
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