[A verdade é esta, que confesso apenas porque sou um grande desenvergonhado: ponho aqui este texto sobretudo porque me aborrece não dar algum uso ao que tanto trabalho me deu a escrever. Agora, o texto é, em grande parte, um falhanço. Não só porque nele se reconhece o fracasso da hipótese que me levou a escrevê-lo, mas também porque, no que diz respeito à reflexão sobre música, não acredito que haja nele senão trivialidades. Mas enfim, aqui fica: uma banal lista de controlo das questões mais básicas a colocar-se ao reflectir organizadamente sobre música – feita por alguém que, amante de música que é, não tem nenhuma formação musical.]
Costumo dizer que um pianista ou um violinista é apenas como um sapateiro ou um marceneiro que não conceba ele próprio o que produz: pode executar com maior ou menor perfeição a obra que realiza, mas artista não é; artista é quem a criou. Mas digo isto à laia de provocação, porque tenho plena consciência de que é perfeitamente justo duvidar de que exista uma fronteira real entre criação e execução; e de que faz todo o sentido perguntarmo-nos se a execução não é sempre criação e até que ponto é legítimo considerar o executante apenas um técnico e não um criador de pleno direito. É fácil admitir a coexistência, numa peça musical, de vários criadores – ou de vários planos de criação, se se preferir. Quando é tocada uma peça para piano, por exemplo, há dois artistas, o compositor e o pianista, que produzem a obra (a sequência e/ou justaposição de sons reais que ouvimos); se se tratar de uma peça tocada por uma orquestra de 40 elementos, há muitos mais criadores da obra de arte concreta que ouvimos…
Agora, a provocação que refiro no início do texto não é gratuita, mas pretende antes dar conta de uma opinião: no caso de obras escritas, por muito que admita que cabe ao intérprete uma parte da criação, essa parte é tão pequena, comparada com a parte que cabe ao compositor, que não hesito em considerar o compositor o verdadeiro artista. Dito de outra maneira: admitindo embora que haja várias instâncias criativas de que resulta uma obra musical, há uma clara hierarquia de importância entre elas e a importância do compositor é muitíssimo maior do que a dos músicos que a interpretam[1].
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Em Musicophilia (London: Picador, 2008), Oliver Sacks conta a invulgar história do músico e musicólogo inglês Clive Wearing, a quem uma encefalite causou um tipo muito raro de amnésia que o impedia de recordar o passado, mesmo o passado muito recente, e de formar novas memórias. Clive Wearing lembra-se de muito pouco: da mulher, dos filhos – e da música. Continua a saber ler música e a saber tocá-la. Se se pensar que muitos dos conhecimentos gerais, como falar línguas, são retidos em casos de amnésia e que a interpretação de uma peça de música que se lê acontece apenas no presente, não parece haver nisto nada de extraordinário. Nas palavras de Sacks:
Pode ser que Clive, incapaz de recordar ou prever acontecimentos por causa da sua amnésia, seja capaz de cantar e tocar e dirigir música, porque recordar música não é de modo algum recordar, no sentido habitual. Recordar musica, ouvi-la ou tocá-la passa-se inteiramente no presente. (p. 228) Ouvir música não é um processo passivo mas sim intensamente activo, implicando um fluxo de inferências, hipóteses, expectativas e previsões. (…) Essa previsão (…) é possível porque se tem um conhecimento, em grande parte implícito, de “regras” musicais (como uma cadência deve resolver-se, por exemplo) e de convenções musicais específicas (a forma de uma sonata ou a repetição de um tema). Quando “nos lembramos” de uma melodia, ela toca na nossa mente; fica viva outra vez. (…) Não há um processo de chamar à memória, juntar e recategorizar, como quando se tenta reconstruir um evento ou uma cena do passado. Recordamos um tom de cada vez, e cada tom preenche completamente a nossa consciência, mas relaciona-se, ao mesmo tempo, com o todo. É semelhante a quando caminhamos, corremos ou nadamos – fazemo-lo passo a passo, braçada a braçada, mas cada passo ou cada braçada é parte integral do todo. De facto, se pensarmos em cada nota ou em cada passo de forma demasiado consciente, podemos perder o fio à acção, a melodia motriz. (pp. 226, 227)
Note-se como a passagem insiste no carácter automático da reprodução de algo profundamente enraizado. Oliver Sacks postula que «podem existir dois tipos de memória muito diferentes: uma memória consciente de acontecimentos (memória episódica) e uma memória inconsciente para procedimentos (procedures)» (p. 220) e que essa memória processual se mantém intacta na amnésia. Seria nessa memória que estariam armazenados os conhecimentos gerais descritos atrás que o amnésico consegue recuperar.
A observabilidade de um fenómeno não é condição essencial à sua discussão e nem sequer a recolha de dados tem de preceder forçosamente a especulação racional; mas todas as discussões, mesmo as aparentemente mais abstractas, se podem enriquecer com o observável, pensei eu. Quando encontrei a história de Clive no livro de Sacks pensei imediatamente que os factos descritos davam bons argumentos à ideia da grande subalternidade do papel criativo do intérprete relativamente ao compositor: um amnésico pode continuar a tocar bem, mas com certeza que não pode compor. Definir, além disso, a memória processual como mais primitiva e estabelecer uma relação fundamental entre essa memória e a arte do intérprete, como faz Sacks, reforça claramente a hierarquia dos papéis, se se partir do princípio, como ele parte, de que é essa a parte da memória que desempenha o principal papel no trabalho do intérprete:
A memória episódica ou explícita, sabemos nós, desenvolve-se relativamente tarde na infância e está dependente de um complexo sistema cerebral (…), o sistema que fica danificado em amnésicos graves e que está completamente inutilizado em Clive. A base da memória processual ou implícita é menos fácil de definir, mas envolve certamente partes maiores e mais primitivas do cérebro (…). A memória episódica depende da percepção de acontecimentos específicos e muitas vezes únicos e as recordações que uma pessoa tem desses acontecimentos, como a percepção original que deles se teve, não só são altamente individuais (coloridas pelos interesses dessa pessoa, pelas suas preocupações e pelos seus valores) mas também susceptíveis de serem alteradas ou recategorizadas de cada vez que são trazidas à memórias. Isto é fundamentalmente o contrário do que se passa com a memória processual, em que é importante que a recordação seja literal, exacta e reprodutível. Repetição e prática, tempo e sequência são aqui essenciais. (p. 222)
Sacks explica-nos que «o neurocientista Rodolfo Llinás usa a expressão “padrão fixo de acção” para essas memórias processuais». Escreve Llinás no seu livro I of the Vortex:
Quando um solista como [Jascha] Heifetz toca com uma orquestra sinfónica a acompanhá-lo, por convenção o concerto é tocado puramente de cor. Tocar assim implica que um padrão motor altamente específico seja armazenado algures e seja posteriormente disparado na altura em que sobe o pano. (Citado por Sacks, p. 223)
Agora, a história desta reflexão é, afinal, a história de uma progressão optimista por um beco sem saída óbvia. Quando estava convencido de que a minha intuição tinha sido boa, dei-me subitamente conta de que, depois de bem analisadas as coisas, tudo é um pouco mais complexo do que parecia... O processo de interpretar uma peça não se pode reduzir a um armazenamento e reprodução de automatismos. Depende, num mesmo grau, da memória explícita e de escolhas conscientes. Para ser um verdadeiro executante, para ser capaz de acrescentar a sua arte à arte do compositor, a memória explícita de um intérprete desempenha, obviamente, um papel tão importante como a memória implícita, como o explica Llinás:
Sem a memória explícita intacta, Jascha Heifetz não se lembraria de um dia para o outro de que peça tinha anteriormente decidido trabalhar nem que tinha já trabalhado essa peça. Nem se lembraria do que tinha já feito no dia anterior nem, por análise da experiência, em que problemas específicos de execução deveria incidir o ensaio de hoje. De facto, nem sequer lhe viria à ideia que tinha de ensaiar; sem uma precisa direcção de outra pessoa, seria efectivamente incapaz de iniciar o processo de aprender qualquer peça nova, independentemente da sua considerável capacidade técnica. (Citado por Sacks, p. 223)
O facto de um amnésico como Wearing saber tocar peças musicais e ser incapaz de compor não é, como eu cheguei a pensar que fosse, argumento a favor da “superioridade” artística da composição relativamente à interpretação, porque Clive Wearing com amnésia não é apenas incapaz de compor, ele é também incapaz de ser um verdadeiro intérprete. Como o nota Deborah Wearing, a mulher de Clive, mesmo a aparente capacidade de improvisação e de personalização das peças tocadas parece ser, no caso de Clive Wearing, também uma repetição de algo interiorizado antes da doença (embora ela não queira chamar-lhe automatismos, que é termo com conotações negativas na crítica musical). Escreve ela numa carta a Sacks de 2008 (p. 230):
Concordo (…) que as execuções instrumentais de Clive não são fixas em tempo, fraseado, etc. Mas, como Clive é um bom músico, segue coerentemente as dinâmicas e os tempos – até as marcas metronómicas (sem recorrer a um metrónomo) – da pauta. Quando não há indicações metronómicas, escolhe normalmente o tempo que teria escolhido antes da doença – e provavelmente influenciado pelo que a memória de longo prazo guarda de uma peça ou de prática de tocar música de um determinado estilo ou época[2].
Agora, com um sorriso maroto: o facto de não poder utilizar a seu favor o argumento factual que queria utilizar não quer dizer por si só que a minha hipótese tenha sido invalidada, obviamente…
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Para concluir esta divagação, gostaria de propor que se considerem dois tipos de factores que contribuem para determinar a maior ou menor contribuição do executante na obra de arte final – na obra de arte em si e na obra de arte percebida:
O primeiro factor são as características objectivas das peças musicais escritas. Pode considerar-se que a quantidade de criatividade que intérprete pode dar à obra depende daquilo que se poderia chamar a sua plasticidade: o maior ou menor espaço deixado (ou proposto) pelo compositor para a individualidade da interpretação. É-me impossível definir com rigor este conceito, mas provavelmente nem todas as obras escritas se prestem da mesma forma a uma mesma amplitude de interpretações. Em princípio, quanto menos exacta for a escrita da obra (por exemplo, indicações do andamento em bpm são mais rigorosas do que as mais tradicionais indicações de andamento, que são mais vagas, ou do que a indicação do tempo total que a peça deve ter ou do que a total ausência destas indicações) e as instruções de expressão e dinâmica da execução, mais plástica é a obra. Um exemplo extremo de plasticidade é uma música escrita apenas com indicações vagas da forma última que a peça deverá ter, como um peça em que, em vez de se indicar ritmo e notas a tocar, se prescreva apenas que os músicos devem usar os seus instrumentos como instrumento de percussão[3]. Pode também considerar-se que a plasticidade não depende apenas da escrita e das indicações do compositor, mas também da eventual decisão do intérprete de seguir com mais ou menos exactidão o que o compositor escreveu e as suas indicações acessórias. Isto leva-nos à constatação interessante de que o intérprete tem a possibilidade de decidir o seu próprio espaço de criatividade numa determinada obra. E suscita uma pergunta de difícil resposta: até que grau de afastamento das intenções expressas do autor se pode considerar que a obra ainda é a obra por ele escrita?
Um outro factor de que depende a maior ou menor parte de criatividade do músico intérprete na obra musical é a educação musical do ouvinte, um factor que muita gente tenderá, portanto, a classificar como “subjectivo”. Quando mais uma pessoa sabe de música, mais se apercebe das diferenças entre diversas interpretações. Para uma pessoa sem educação musical, essas nuances interpretativas são muitas vezes imperceptíveis, embora isso não impeça o reconhecimento da peça. É certo que, para reconhecer peças de música escrita longas e complexas, o leigo precisa de as ouvir mais vezes do que a pessoa musicalmente educada. Mas estou em crer que lhe é sempre mais fácil conhecer uma peça (no sentido de armazenar informação suficiente para a reconhecer) do que conhecer uma interpretação. Evidentemente, isto não passa de uma impressão, mas é uma impressão que pode ser testada. A confirmar-se a minha suspeita, alvitro agora eu, não estaremos então diante de um observável que confirma (uma parte d)a subalternidade do papel do intérprete relativamente ao do compositor na construção da obra musical?
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[1] Se se tratar de música improvisada, porém, é evidente que o criador da música e o intérprete são uma e a mesma pessoa. É por falaciosa convenção apenas que no jazz se dá como único autor da peça o autor do tema a desenvolver. Por exemplo (agarro no primeiro disco de jazz que me vem à mão da estante dos meus CDs), no disco Sonny side up, de Dizzy Gillespie, Sonny Rollins e Sonny Stit, indica-se que o tema “After Hours” é da autoria de Avery Parrish, mas Avery Parrish é o autor de muito pouco do que se ouve, no disco, nos 12 minutos e 19 segundos designados como “After Hours”. Se de tratar de canção (a forma mais comum da chamada música popular) e se se definir a canção (é que se faz normalmente) como uma melodia com uma sílaba da letra correspondendo a cada nota dessa melodia, por um lado, não há dúvidas sobre quem considerar os verdadeiros criadores – os autores da música e da letra, obviamente –, mas há, por outro lado, um enorme espaço para criação nos arranjos e interpretação da cada versão da canção.
[2] Continuação da carta de Deborah Wearing a Oliver Sacks (pp. 230, 231):
As interpretações de Clive são automáticas? Não, reflectem o seu sentido de estilo de execução, o seu humor e uma exuberante alegria de viver em geral. Mas, como Clive é a mesma pessoa, pode bem reagir coerentemente a uma peça musical. Qualquer músico tem a sua interpretação do fraseado ou da “cor” de uma peça (quando não prescritos pelo compositor). Porém, onde se revela a amnésia de Clive é numa repetição de brincadeiras musicais semelhantes em passagens semelhantes – astúcias de improvisação. Qualquer músico pode, no acto de improvisação, recorrer a um repertório de possíveis fórmulas e é provável que apresente ideias semelhantes. Clive tem realmente algumas reacções fixas às mesmas peças musicais – numa cadência cheia de semicolcheias no Prelúdio de Bach que tocou para si, talvez se recorde que ele atacou a escala de uma maneira muito grosseira, tocando umas mãos-cheias de notas. Faz sempre isso e sempre pela mesma razão, de acordo com as suas prioridades na execução: dando-se conta de que é incapaz de escutar a escala à grande velocidade requerida, sacrifica o rigor num alvoroço excessivo para não perder o tempo. Para um maestro, o tempo é tudo. Também exagera no atabalhoamento das notas mal tocadas, de maneira que, não podendo ser certas, sejam pelo menos divertidas.Surge imediatamente a pergunta: E até que ponto se passa o mesmo com qualquer músico em plena posse de todas as suas faculdades? Uma questão interessante é a do grau de importância destes tipos de automatismos para o estilo, tanto de intérpretes como de compositores. A impressão que tenho é que estilo é algo em que estamos habituados a pensar como um produto, uma realização, se não sempre consciente pelo menos resultante de uma vontade, de um percurso dirigido…
[3] Sei que isto não é invenção minha e que existe de facto pelo menos uma peça assim, mas, por mais voltas que dê à cabeça – e a Google –, não consigo descobrir qual é… Alguém me pode ajudar?
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