Se se escolhe os subúrbios para local de habitação, a escolha prende‑se sempre com questões pragmáticas. Os subúrbios não são ideal de ninguém. Rebusquemos o sótão do imaginário colectivo. Eis que uma personagem nos afirma, com os olhos a brilhar de gananciosa esperança: «Ah, eu quero mais do que isto! Eu não fui feito para o campo! Não, que eu tenho outras ambições e essas só na cidade as poderei satisfazer!» A personagem em questão renuncia à sua condição inata de campesino. Decide tornar‑se citadino. Agora o exemplo contrário, tão fácil de encontrar como o primeiro: «Acho que não aguento o fumo, o stress, a violência, a desconfiança... Vou largá‑la de vez, a cidade, isto está a dar cabo de mim!» E lá vai para o campo. Citadino, quer deixar de o ser. Claro que ambas estas personagens darão provavelmente conta do engano em que caíram e, na maior parte dos casos, reconsiderarão. Mas isso é outra história.
Escolhe‑se ir passar a férias a Genève, a Roma ou a Londres, ou numa aldeia ou vila qualquer, mas nunca em Cergy‑Pontoise ou no Algueirão. A não ser que aí se fique a passar férias porque é aí que mora o tal casal amigo que nos alberga. Só que, nesse caso, contar‑se‑á no fim das férias que elas foram passadas em Paris ou em Lisboa. Os subúrbios são só uma parte da cidade. Como o nome indica, são a parte de baixo da cidade, não no sentido físico, obviamente, mas nos outros sentidos todos… Subúrbios são a sub‑cidade.
Um dos traços constantes da sub‑urbanidade é o sub‑urbanismo. No caso específico de Portugal, o urbanismo nem sequer é sub‑urbanismo, porque é inexistente. Salvo raríssimas excepções, os subúrbios são feios. Há uns mais feios que outros, naturalmente; há uns mais arborizados, mais confortáveis, menos cinzentos. Parece‑me, no entanto, não exagerar, se considerar sub‑urbanizações a quase totalidade das urbanizações suburbanas: os graffitti, nem sempre políticos, nem sempre com um propósito qualquer; o muro branco das escolas secundárias debruado a arame farpado, bastante mais do que vagamente concentracional; a pintura escamada; os elevadores avariados…
E um sempiterno tédio a pairar sobre as torres. Nos subúrbios, creio que já alguém o disse antes de mim, o tédio acarinha‑se como a um amigo. O tédio esfrega o tacão da bota bicuda contra a esquina dos prédios. O tédio passa horas sem conta à porta do café, a ver‑se desfilar na gente que passa. O tédio é sem cessar entornado nas mesas dos cafés, com gestos nervosos, impacientes: «Deixe ‘tar, que eu já limpo!», acorre solícito o empregado. E a salvação é sempre um transporte. De ou para a cidade.
Os sub-urbanos gozam de um respeito de que antes só gozavam certos habitantes da cidade, as camadas pobres dos chamados bairros populares. Para obter no nosso interlocutor o mesmo efeito que outrora se conseguia respondendo à pergunta «de onde é que você é?» com um «Alfama» ou «Ménilmontant» secos, basta agora dizer, com a mesma entoação, «Cacém» ou «Sarcelles». Não se pode dizer que tenha sido a mais simpática das conquistas da sub‑urbanidade, mas é, sem dúvida, uma das mais importantes. No imaginário colectivo, o subúrbio tornou‑se cóio de malandros, a escumalha apanhou os comboios tranvias ou as carreiras suburbanas e, da cidade, foi toda instalar‑se nos seus arredores.
Na maior parte destes antros de desolação cultivava‑se hortaliças e passava‑se férias há 30 anos. E menos. Em Cergy, não havia água canalizada há 40 anos. Há 20 anos, onde é hoje, na Rinchoa, a Urbanil, só havia algumas tamareiras e uma vacaria. Os subúrbios eram ainda verdes há pouco tempo e habitado por saloios. Debaixo de cada subúrbio há uma aldeia. E, às vezes, os restos da aldeia são ainda visíveis – se já não restam muitos dos aldeãos de Cergy, há‑os ainda em Belas ou na Abelheira. É claro que o futuro de todos os subúrbios é igual, sem lugar para nem sequer vestígios do campestre…
Há aqui na Travessa outro texto que complementa este. (Foi escrito na mesma altura, mas, talvez por ser em verso, resistiu melhor ao tempo, acho eu.) Estou agora muito longe de tudo isto. Revejo os subúrbios quando vou a Portugal de férias e já não os reconheço como meus ou como fazendo parte de mim, eu que lá cresci, imaginem vocês. Aliás, em muitos casos, pura e simplesmente não reconheço os lugares. Não sei como serão agora Belas ou a Abelheira. Provavelmente, ficam à beira de auto-estradas e já não lhes resta nada de aldeia que ainda eram um bocadinho há 25 anos.
Sem comentários:
Enviar um comentário