30/05/11

A paciência de um Santos, seguido de três pequenas notas sobre resignar-se, adaptar-se e envelhecer

Svendborg, Dinamarca, Agosto de 2009, férias de Verão, jantar no terraço de uma amiga. Conversa de ocasião de um amigo da amiga, enquanto aquece a grelha para as salsichas. Diz que nunca viveu em África, mas que já lá esteve, que tem amigos que lá viveram.
«Isso de viver em África, onde o ritmo de vida é tão mais lento, deve tornar as pessoas mais pacientes.»
E eu, com toda a sinceridade:
«Pode ser, não sei o que acontece às outras pessoas… Em mim, viver em Moçambique tem tido antes o efeito contrário – perdi a paciência toda…»
Não acredito, sinceramente, no que digo. É o passar dos anos que me faz perder a paciência, não viver em Moçambique. E ainda hei-de ser um velho mesmo rabugento, hão-de ver. Agora, se reajo assim à conversa do amigo da amiga, é porque me arrelia um bocadinho este preconceito primitivista. O ritmo de vida é mais lento? O que eu acho, sinceramente, é que quem assim pensa nunca viu as pessoas a trabalhar nas suas casas e machambas, nunca os viu a andar carregados, a pé ou de bicicleta, por estradas e caminhos… É verdade que se encontram pessoas a dormir a sesta às onze da manhã, mas essas pessoas levantaram-se às 4, para trabalharem o mais que podiam enquanto o calor não as impede de continuar. Conheço muitos moçambicanos que literalmente não param, entre o trabalho, que é muito, os estudos à noite e o mais que é necessário para arredondar o fim do mês, como dizem os franceses. Ritmo lento? Ora…
De que se fala então? Dos empregados de lojas, cafés e repartições públicas? Aí sim, é verdade, o ritmo aqui é muito lento. E em relação a essa lentidão – provavelmente por estar a tornar-me rabugento com a idade, pois… – não ganhei precisamente paciência nenhuma. Eu sei que há quem veja tudo isso como um traço cultural das sociedades menos desenvolvidas. E um traço cultural positivo: ausência de stress, uma bênção das culturas “pré-modernas”. É bem possível que seja um traço cultural, se aceitarmos uma definição de cultura que inclua não só a falta de tradição de trabalho assalariado como também a falta de formação técnico-profissional, os salários de miséria e o autoritarismo e incompetência das chefias, por exemplo. Talvez esta lentidão pareça hoje muito exótica a muitos europeus, que, com um olhar ingénuo, vêm nela a sobrevivência de uma paciência perdida no mundo desenvolvido. A mim, porém, é-me difícil ver o que tal lentidão tem de positivo, sobretudo para os desgraçados que esperam horas e horas nas repartições ou meses e meses por documentos oficiais que nunca mais vêem…
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Nota 1, sobre paciência e resignação: A paciência é uma grande virtude, recordava-me constantemente a minha avó. É verdade, pelo menos no sentido em que é a negação da impaciência – uma atitude de que (suponho que há nisto grande consenso) não resulta nada de muito bom. Muitas vezes, porém, aquilo a que se chama paciência é de facto resignação e a resignação já não é virtude. Talvez não se lhe possa tampouco chamar vício, mas é algo que tem de ser negativamente valorizado quando lhe avaliamos as consequências, porque, bem vistas as coisas, é contribuir para que se perpetue o que há de indesejável no mundo.
Há muitos moçambicanos que não se resignam perante o mau funcionamento dos serviços. Explicam a razão e a lógica dos mesmos, e exigem e barafustam. Agora, claro, há muitos mais que se resignam. Passando do nível das consequências para o das causas, acho que há mais uma coisa importante que é preciso dizer sobre resignação e que explica o facto de ela estar muito espalhada em certas sociedades e em certas camadas populacionais: resignação está directamente relacionada com ausência de poder. Não é determinada por ela e há às vezes pessoas com pouco poder que não se resignam. Mas é da ausência de poder que a resignação deriva mais normalmente e não surpreende que haja mais resignação entre aqueles que não têm, nunca tiveram, poder algum.

Nota 2, sobre adaptação: Está bastante espalhada a ideia de que, vivendo fora da nossa cultura, há que adaptar-se, aceitando que as coisas são como são na cultura em que vivemos. Trata-se, como a entendo, de uma perspectiva puramente estratégica, descartando a ponderação ética. Porque, se o que achamos que está bem ou que está mal muda conforme o lugar onde nos encontramos, é porque não assenta em nada de muito sólido; ou porque temos da moral uma perspectiva, digamos, etimológica (mores significa “costumes” em latim, não é verdade?) e aceitamos que são apenas os costumes que devem reger a nossa ideia de bem e de mal. Ora eu, que não sou maquiavélico, que sou um moralista racional, daqueles que acham que se deve repensar constantemente os princípios que devem reger as nossas acções, não posso aceitar tal posição: no geral, não aceito nem na Dinamarca nem em Moçambique o que não aceito em Portugal.
Se digo no geral, é porque há, ainda assim, diferenças que têm de ser tidas em conta e que podem justificar, nalguns casos, alguma flexibilidade tanto no que se aceita como no que se exige. No caso de Moçambique, por exemplo, há que ver que não se pode dar saltos no desenvolvimento, que o baixo nível de cultura profissional e de formação são obstáculos que levam algum tempo a vencer. Ainda assim, alguém tem de fazer aqui as mesmas exigências que outras pessoas fizeram já noutros lugares para que mudassem lá as coisas que aqui ainda não mudaram. É certo que, em absoluto, Moçambique não é apenas uma versão mais antiga nem da Europa nem de nenhuma outra parte do mundo e que, por isso, nunca as coisas foram noutro sítio exactamente como são aqui. Mas há coisas aqui que também já houve noutros lugares e de lá desapareceram porque as pessoas fizeram alguma coisa para elas desaparecerem. 
O que muitas vezes se considera aqui adaptação de um estrangeiro à vida local é uma evolução imoral e discriminatória: começar a aceitar que estas pessoas são essencialmente diferentes de nós e que, portanto, não se pode ou deve esperar ou exigir delas (diferentes nuances modais, conforme a nossa postura, mais ou menos activa, perante o mundo…) e para elas o mesmo que exigimos das “nossas” pessoas e para as “nossas” pessoas. Esta “adaptação” é também passar a aceitar assimetrias inaceitáveis: que o sistema feudal é uma realidade inelutável e que há que aceitar os privilégios dos privilegiados, sejam eles régulos, administradores ou ministros; que os pobres morrem “naturalmente” em África e que não há nada a fazer contra isso; que haver uns a meter ao bolso o dinheiro do Estado ou dos outros é a maneira normal de “estes países” funcionarem, e por aí adiante. Resignação…

Nota 3, sobre envelhecer: Não é só rabugenta que uma pessoa se torna, ao ir para a idade: é chata também, repetitiva. Já viram que, num texto tão pequeno, repito três vezes (esta é a terceira!) que me estou a tornar rabugento com a idade?

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