Escrevi aqui no outro dia que tinha trocado, em Bvumba, um livro de contos de Tchekhov por uma edição de 1933 de King Solomon’s Mines de Rider Haggard; mas era mentira. Quer dizer, mentira não era, mas pretendia ser literatura, que é parecido. A verdade é que vou conservar o livro de contos de Tchekhov, pelo menos até arranjar uma edição melhor – ou uma edição maior, se a qualidade for a mesma.
De facto, guardo poucos livros. Antigamente não, guardava os livros todos e tinha uma biblioteca que, não sendo muito grande, me ocupava ainda assim uma parede de cerca de 15 m2. Um dia, ardeu-me a casa e aprendi com o incêndio uma coisa que tinha obrigação de saber antes dele, mas que, pelos vistos, não sabia: que não devemos guardar nada que não consideremos muito provável vir a utilizar. Faço agora circular todos os livros que compro ou que me dão, excepto, claro está, os de consulta ou que possam como tal vir a ser usados, e meia dúzia de obras que sei que, mais cedo ou mais tarde, hei-de reler. Os contos de Tchekhov, está agora decidido, são uma dessas obras.
Dizem que Tchekhov está para o conto como Schubert está para o Lied. Não tenho maneira de avaliar a proposição, porque os meus conhecimentos de contos e de Lieder não chegam para tal, mas posso confirmar que Tchekhov escreve contos muito bem escritos – dos mais bem escritos que conheço. Ora, como sabem, Tchekhov é conhecido não só como contista, mas também como dramaturgo. Não sei se será mais conhecido como contista ou como dramaturgo, mas – e chegamos aqui à ideia central deste texto, à ideia que me levou a escrevê-lo – parece-me que os contos de Tchekhov são também, essencialmente, sketches ou quadros teatrais; e que mesmo aqueles em que há algum movimento por diversos espaços e tempos [a maioria tem a unidade espácio-temporal típica do drama] podem, com truques simples, ser adaptados ao palco. Foi isso que fiz com este conto a que chamei “O visitante importuno” e que traduzi e adaptei das traduções inglesas de Constance Garnett em 1921 (“The troublesome visitor”, in The Horse-Stealers and Other Stories) e de Marian Fell em 1914 (“The troublesome guest”, in Stories of Russian Life) . Quero deixar claro, para não me criticarem depois a falta de rigor, que se trata de uma tradução dita livre, até porque não tenho maneira de verificar, no original russo, qual das duas traduções segue de mais perto o original, quando existem discrepâncias entre as duas – e há muitas; e quero avisar também que tirei ao conto alguns pormenores descritivos, que não se deixavam transformar bem nem em indicações de cenário nem em didascálias, e o gato e o cão, que a maior parte dos encenadores não consegue dirigir...
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(Interior de uma cabana pequena, de tecto baixo. Estão dois homens sentados sob o ícone escuro: ARTEM, o dono da cabana, um camponês de alguma idade com uma barba pequena; e um CAÇADOR, um jovem alto de camisa nova carmim e grandes botas enlameadas. Estão sentados num banco a uma mesa de três pés sobre a qual arde uma vela metida no gargalo de uma garrafa. Fora da janela está tudo escuro. Um vidro partido da janela está tapado com papel.)
ARTEM (numa voz meia murmurada, fixando assustado o CAÇADOR com olhos esbugalhados): Vou dizer-te uma coisa, bom cristão. Não tenho medo de lobos nem de ursos, nem de animais selvagens, sejam lá eles quais forem, mas tenho medo do homem. Dos bichos, uma pessoa pode salvar-se, com uma espingarda ou outra arma qualquer, mas não há maneira de escapar a um homem mau.
CAÇADOR: Isso é certo, pode-se disparar contra um bicho, mas, se se dispara contra um ladrão, tem de se responder por isso: vai-se parar à Sibéria.
ARTEM: Há trinta anos, rapaz, que sou guarda-florestal e nem queiras saber o que eu tenho passado com homens de mau carácter. Têm passado por aqui muitos. A cabana está numa clareira, na estrada das carroças, e é isso que os traz, esses demónios. Não há rufião que aqui não apareça e, sem sequer tirar o boné nem fazer o sinal da cruz, não comece logo a exigir: «Dá-nos lá pão, anda!» Onde é que eu vou arranjar pão para lhes dar? E que direito têm eles de mo pedir? Será que sou algum milionário, para dar de comer a todos os bêbedos que aqui passem? Mas eles parece que estão cegos de maldade e, sem hesitar, gritam-me aos ouvidos: «Dá-nos pão!» Bom, e eu dou-lhes... Não me vou pôr à pancada com esses pagãos! Alguns medem dois metros de ombro a ombro e têm punhos do tamanho das tuas botas e eu, bem vês a fraca figura que sou. Um desses tipos era capaz de me esmagar com o dedo mindinho. E então, pronto, dou-lhes pão, eles empanturram-se e estendem-se para aí na barraca a descansar e nem obrigado me dizem. Há alguns que ainda me pedem dinheiro. «Diz lá, onde é que tens o dinheiro?» Como se eu tivesse dinheiro! Onde é que eu havia de o arranjar?
CAÇADOR (rindo): Um guarda-florestal sem dinheiro! Recebes todos os meses e de certeza que vendes madeira às escondidas.
(ARTEM olha de esguelha para o CAÇADOR e puxa a barba).
ARTEM: És ainda muito novo para me dizeres uma coisa dessas. Terás de responder perante Deus por essas palavras. Quem és tu? De onde és?
CAÇADOR: Sou de Viazofka. Sou filho de Nefed, o meirinho da aldeia.
ARTEM: Andas por aí aos pássaros de espingarda na mão. Eu também gostava de caçar, quando era rapaz novo. (Boceja.) Ah, grandes pecadores que nós somos. É triste! Há pouca gente boa, mas não faltam para aí bandidos e assassinos – Deus tenha piedade de nós.
CAÇADOR: Parece que também estás com medo de mim...
ARTEM: Ora essa! Porque havia de ter medo de ti? Eu vejo as coisas... Compreendo-as... Entraste, e não entraste de qualquer maneira, benzeste-te, fizeste uma vénia, com decência, como se deve... Eu percebo bem as coisas... Posso dar-te pão... Sou viúvo, nunca acendo o fogão, vendi o samovar... Não tenho dinheiro que chegue para ter carne em casa, nem nada parecido, mas podes servir-te de pão. (Faz uma breve pausa.) Dizes então que és de Viazofka… Gente esquisita, essa gente de Viazofka. A igreja foi assaltada duas vezes no espaço de um ano... Como pode haver gente assim tão malvada? Não têm medo dos homens e também não têm medo de Deus! Roubar o que pertence ao Senhor! Enforcá-los ainda é pouco! Antigamente, os governadores mandavam cortar a cabeça a facínoras dessa espécie.
CAÇADOR: Pode-se castigá-los de qualquer maneira, mandar chicoteá-los ou seja lá o que for, não serve de nada, não se consegue tirar o mal a quem tem o mal dentro de si.
ARTEM: Que a Virgem Santa tenha piedade de nós e nos proteja, e nos salve dos nossos inimigos e de quem nos quer mal! (Suspira.) A semana passada em Volóvi Zaimíchtchi, um ceifeiro abriu o peito a outro com uma foice... Matou-o logo ali naquele instante! E aquilo tudo porquê, valha-me Deus? Sai um ceifeiro da taberna, bêbedo; o outro topa com ele, também bêbedo…
(O CAÇADOR estica-se de repente para a frente, fica com uma expressão tensa e interrompe o relato de ARTEM.)
CAÇADOR: Espera. Parece que está alguém a gritar.
(O CAÇADOR e ARTEM ficam calados a escutar, de olhar fixos. Ouve-se distintamente lá fora alguém gritar por socorro.)
CAÇADOR (levantando-se): Olha, por falar em assassinos… Está alguém a ser assaltado!
ARTEM (murmurando): O Senhor tenha piedade de nós!
(ARTEM também se levanta. O CAÇADOR olha pela janela e põe-se a andar de um lado para o outro.)
CAÇADOR: E que noite esta, que noite esta! Não se vê um palmo à frente do nariz! É mesmo noite para assaltos. Ouviste? Gritaram outra vez.
(ARTEM olha para o ícone na parede e depois para o CAÇADOR e senta-se de novo no banco.)
ARTEM: Amigo, vai ali à entrada e tranca a porta. E também temos de apagar a luz.
CAÇADOR: Para quê?
ARTEM: Podem vir dar cá a casa... Pobres de nós, pecadores!
CAÇADOR: Então nós devíamos era ir lá e tu estás-me a dizer que tranque a porta? Ora aí está uma coisa inteligente! Vens ou não?
(O CAÇADOR põe a arma ao ombro e o boné na cabeça.)
CAÇADOR: O que é que estás a fazer aí sentado? Não me vais dizer que não vens…
ARTEM: Onde?
CAÇADOR: Ajudar!
ARTEM: Porque é que havia de ir? Deixa-os lá estar…
CAÇADOR: Porque é que não vens?
ARTEM: Depois das conversas tenebrosas que tivemos, recuso-me a aventurar-me no escuro. Deixa-os lá estar! Já vi acontecerem coisas horríveis nessa mata…
CAÇADOR: Mas de que é que tu tens medo? Não tens uma espingarda? Vamos lá embora, por favor. O que mete medo é ir sozinho; é melhor irmos os dois. Estás a ouvir? Mais um grito. Levanta-te, vá!
ARTEM: Mas por quem me tomas tu, rapaz? Pensas que sou tontinho, para ir agora lá para fora e alguém me dar cabo do canastro?
CAÇADOR: Então não vens?
(ARTEM não responde.)
CAÇADOR: Vens ou não?, estou eu a perguntar!
ARTEM: Não me estejas a chatear! Se queres ir, vai tu.
CAÇADOR: Velhaco, é o que tu és!
(O CAÇADOR sai e deixa a porta aberta. A luz apaga-se. ARTEM, às apalpadelas, vai trancar a porta.)
ARTEM (murmurando): Pela minha alminha! Que tempo nos manda Nosso Senhor!
(Sempre às apalpadelas, vai para junto do fogão, deita-se e cobre a cabeça e o corpo com uma pele de ovelha.)
ARTEM: Ele é mas é doido. Aposto que até treme de medo.
(Escuro e silêncio, durante dois ou três minutos. Batem à porta com força.)
ARTEM: Quem é?
CAÇADOR: Sou eu. Abre lá a porta.
(ARTEM acende a vela e vai até à porta. Entra o CAÇADOR.)
ARTEM: O que era?
CAÇADOR (ofegante): Uma camponesa numa carroça. A carroça despistou-se e ficou presa numa moita.
ARTEM: Pateta da mulher! E assustou-se, está claro... E então, puseste-lhe a carroça na estrada outra vez?
CAÇADOR: Não me apetece falar com patifes da tua laia. (Pousa o boné no banco.) Sei agora que és um patife e o mais reles dos homens. E ainda por cima és pago para ser guarda! És uma vergonha dum guarda!
(ARTEM aproxima-se do fogão, pigarreia e baixa-se. O CAÇADOR estende-se no banco e fica com ar pensativo. Passado pouco tempo, levanta-se, apaga a vela e volta a estender-se. Vira-se e cospe para o chão.)
CAÇADOR: Estava com medo, vejam lá… E se estivessem a matar a mulher? Defendê-la para quê? Está velho, coitado… E diz que é cristão… Um nojento, é o que ele é, não passa disso.
(ARTEM pigarreia e suspira profundamente.)
CAÇADOR: Com que então, tanto se te dava que matassem a mulher? Ora, raios me partam, não fazia ideia de que tipo de pessoa é que tu eras… (Faz uma pausa.) E se fosses tu a gritar por socorro, em vez de ser a mulher? Gostavas que ninguém viesse em teu auxílio, meu animal? Pões-me doente com a tua cobardia, raios te partam! (Faz uma longa pausa.) Mas tu deves ter dinheiro, para teres tanto medo das pessoas! Um pobre não tem medo assim dessa maneira...
ARTEM: Hás-de responder perante Deus pelo que estás a dizer. Não tenho dinheiro nenhum.
CAÇADOR: Deixa-te de lérias! Os velhacos como tu têm sempre dinheiro... Porque é que tens medo das pessoas, então? Tens dinheiro, pois! Apetece-me roubar-te, só por pirraça, para te dar uma lição!...
(ARTEM desce do fogão, acende mais uma vela e senta-se debaixo do ícone.)
CAÇADOR: É isso mesmo, vou-te roubar. O que é que achas? Gente como tu merece uma lição. Diz lá então, onde é que escondeste o dinheiro?
(ARTEM puxa para si as pernas e pisca os olhos.)
CAÇADOR: Estás aí a contorcer-te para quê? Onde é que está escondido o dinheiro? Não tens língua, ó pateta? Porque é que não me respondes? (Põe-se de pé de um salto e vai até perto de ARTEM.) Está a piscar os olhos, parece uma coruja! Então? Dás-me o dinheiro ou dou-te um tiro?
ARTEM: Mas porque é me estás a atormentar? (Chora.) Que mal é que eu fiz? Deus vê tudo! Hás-de responder perante Deus por cada palavra que disseste. Não tens direito nenhum de me pedires dinheiro.
(O CAÇADOR olha para ARTEM, franze o sobrolho e começa a andar de um lado para o outro. De repente, põe o boné com um gesto irado e pega na espingarda.)
CAÇADOR: Bah! Fico mal disposto só de olhar para ti. Aqui é que eu não fico a dormir. Adeus!
(O CAÇADOR sai, batendo com a porta. ARTEM tranca a porta, benze-se e vai-se deitar outra vez junto do fogão.)
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