Parece provável que o sentido 2. do termo derive do sentido 1, mas esta deriva metafórica tem de ter origem na associação de caldeirada a miscelânea, passando-se daí ao sentido de confusão, porque se há ideia que não pode derivar de uma caldeirada é a de rebuliço – uma caldeirada não se mexe, numa caldeirada não se mexe.
Bom, é verdade que caldeiradas há muitas (muitas!), tantas que parece, à primeira vista, impossível encontrar traço comum a todas elas, que defina, portanto, a essência da caldeirada. Talvez se possa, porém, ir por esta ideia de que uma caldeirada não se mexe. É uma maneira de alargar o conceito de caldeirada de modo a incluir as chowders dos Estados Unidos e do Canadá, que também não se mexem, como bem explica a primeira receita impressa de chowder que se conhece[3]:
De cebola, uma camada, p’ra o toucinho não queimar,
Que depois, na caldeirada, já não se pode tocar;
E pronto, traduzi chowder por caldeirada. Porque ficava feia uma palavra inglesa ali e porque me deu jeito para rimar; e sobretudo porque, bem vistas as coisas, as chowders da América do Norte são mesmo caldeiradas de pleno direito. Até no nome: segundo o site Etymology online, que parece de confiança, a chowder (palavra atestada pela primeira vez em 1751, talvez na receita que acabo de referir e grafada ainda chouder nessa altura), foi “aparentemente nomeada pela panela em que se cozinhava: do francês chaudière, "caldeira", do latim tardio caldaria (de onde vem, claro está, a palavra caldeira)”. Segundo este mesmo site, “a palavra e a prática teriam sido introduzidas na Terra Nova por pescadores bretões, tendo daí chegado à Nova Inglaterra”.
Quando quiserem variar da caldeirada portuguesa, experimentem uma chowder. Já fiz e gostei. Podem experimentar, por exemplo, esta receita de Lydia Maria Child, no livro The American Frugal Housewife, de 1829[4]:
Quatro libras de peixe são suficientes para fazer uma chowder para quatro ou cinco pessoas; meia dúzia de fatias de carne de porco salgada no fundo do tacho; pendure o tacho alto, para a carne de porco não queimar; tire-o quando estiver muito tostado; ponha uma camada de peixe, cortado em tiras no sentido do comprimento, e depois uma camada de bolachas de água e sal, cebolinhas pequenas ou cortadas às rodelas, e batatas cortadas em rodelas com a espessura de uma moeda de quatro pence, misturadas com os bocados de carne de porco que fritou; em seguida, mais uma camada de peixe e assim sucessivamente. Seis bolachas são suficientes. Deite um pouco de sal e pimenta por cima de cada camada; por cima de tudo, deite uma tigela de farinha, e água, até ficar ao nível dos ingredientes que tem no tacho. Um limão às rodelas dá mais sabor. Uma chávena de catsup de tomate é também excelente. Há quem ponha cerveja. Umas quantas amêijoas são também um agradável suplemento. Deve-se tapar de modo a não deixar sair nem uma partícula de vapor. Não destape, a não ser quando estiver quase pronto, para provar se está bom de temperos.
É uma receita difícil, eu sei, de tão vaga que é: Que carne de porco é esta? E estas bolachas? Bom, o porco salgado não sei que seria; as bolachas são as antigas bolachas muito duras que eram a base de alimentação da gente de mar e que creio que já não se encontram em lado nenhum; como também é agora praticamente impossível encontrar este ketchup à moda antiga… Simplifiquemos, então: uma camada de bacon, depois cebolas e batatas e peixe, como as nossas caldeiradas, com tomate e outros legumes, conforme se queira ou não ou não. E no fim juntar, dois minutinhos antes de tirar do lume, um bocadinho de nata? Há de também ficar bem, não vos parece[5]?
[1] Digo “em português moderno e corrente”, porque os dicionários registam outras aceções de caldeirada em que a palavra raramente ou nunca é usada: “conteúdo de uma caldeira”; “pancada de água, bátega, chuvarada.”, “grande porção de líquido que se despeja”... E é, evidentemente, do significado “conteúdo de uma caldeira” que derivam os outros. Em castelhano, a palavra calderada tem também este significado, tendo derivado dele um outro, o de “cantidad exagerada de algo, especialmente de comida”, que a palavra não tem em português.
[2] Jogando com os dois sentidos da palavra, mas sem nunca usar a palavra caldeirada no seu segundo sentido, Luís Miguel Oliveira fez este fabuloso fado que Raul Solnado cantou:
Fado Maravilhas
Fui no domingo a Cacilhas
Mais o Chico Maravilhas
Comer uma caldeirada.
A gente não nada em taco
Mas vai dando pr’ò tabaco
E p’ra regar a salada.
É po’que ist’ é me’mo assim
A gente morre e o pilim
Não vai para a cova c’a gente.
E antes gastá-lo no tacho
Que na farmácia, é que eu acho
Qu’isto é que é, principalmente.
Terminada a refeição
Ao entrar na embarcação
Começou a grande espiga.
Um mangas abriu o bico
Pôs-se a mandar vir c’o Chico
O Chico arriou a giga.
Eu, para acalmar a tormenta
Ainda disse ao Chico «Òguenta!»,
Mas o mangas insistiu.
E o Chico sem intenção
Deu-lhe um ligeiro encontrão
Atirou c’o tipo ao rio.
Um sócio do outro meco
Quis-se armar em malandreco
A gente já estava quentes.
Vei’ p’ra mim desnorteado
Eu dei-l’e c’o penteado
E pu-lo a cuspir os dentes.
Veio outro, eu dei outra ideia
Desarrumei-lhe a plateia
Mais outro, fui-lhe ao focinho.
E o Chico pelo seu lado
Só para não ficar parado
Aviou quatro sozinho.
Fez-se uma grande molhada
Desatou tudo à estalada
Eu e o Chico no centro.
Naquela calamidade
Apareceu a autoridade
E meteu-nos todos dentro.
Não tenho vida p’ra isto
E de futuro desisto
De me meter noutra alhada.
Nunca mais vou a Cacilhas
Mais o Chico Maravilhas
Comer outra caldeirada!
Quero agradecer a António Gameiro, que me informou da autoria do "Fado Maravilhas", que eu desconhecia quando aqui publiquei este texto.
Notem, já agora, que a caldeirada tem batatas e molho e que batatada e molho são, precisamente, sinónimo de caldeirada, quando, como neste caso, é estalo que a palavra refere.
[3] Segundo Jasper White, no seu livro 50 Chowders. A receita, curiosamente em verso, é do Boston Evening Post de 23 de setembro de 1751. Eis o texto original dos dois primeiros versos que traduzi:
First lay some Onions to keep the Pork from burningEncontrei esta informação na página "History of Chowder" do site What’s cooking America.
Because in Chouder there can be not turning;
[4] O livro encontra-se, em edições mais recentes, na Amazon (por exemplo, esta de 1999); mas, como já prescreveram os direitos de autor, está também disponível, em versão eletrónica, no Projeto Gutenberg (versão revista de 1832). Descobri a receita não nesse livro, mas em Cod, de Mark Kurlansky (Londres: Vintage Books, 1999), que, além de contar a história da pesca e do consumo de bacalhau, traz muitas receitas do dito, de vários tempos e vários lugares.
[5] Numa versão bretã de caldeirada, referida também por Kurlansky em Cod, usa-se aipo e alho francês, por exemplo. Não pode senão ficar bem. Também se propõe, nessa receita, juntar crème fraîche à caldeirada, na altura de a comer. Quanto à ideia das natas, também não é minha: há várias receitas de chowder em que entram natas. Só mais uma palavra-como-as-cerejas: esta caldeirada bretã chama-se bouillabaisse de Fécamp (porque a palavra original chaudrée entretanto desapareceu, diz Kurlansky), mas não tem nada a ver com bouillabaisse no sentido normal da palavra. A verdadeira bouillabaisse, porém, embora seja muito mais complicada, porque implica a preparação prévia da sopa onde vão cozer os peixes, talvez se possa também considerar uma caldeirada… ou talvez não…
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