19/04/12

Últimas palavras

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Peço desculpa pelo atraso. Era na Páscoa que este texto ficava bem, não era?, e a Páscoa já foi há duas semanas na Europa e há 1 semana na Etiópia. Mas esta música fica bem em qualquer dia, acho eu…

A peça As Sete Últimas Palavras do Nosso Salvador na Cruz foi composta por Joseph Haydn em 1785 ou 1786. A obra foi-lhe encomendada para a missa de Sexta-Feira Santa na Catedral de Cádis. A interpretação da orquestra Le Concert des Nations dirigida por Jordi Savall, que vos proponho (vejam no Youtube, porque não tenho autorização para a mostrar no blogue), foi gravada nessa mesma catedral em 2009. Da génese da obra, disse Haydn (traduzo eu):
Há uns quinze anos, pediu-me um cónego de Cádis que compusesse música instrumental sobre as sete últimas palavras do nosso salvador na cruz. Era costume na Catedral de Cádis apresentar todos os anos um oratório pela Quaresma, sendo o efeito da apresentação muito ampliado pelas seguintes circunstâncias: as paredes, janelas e pilares da igreja era cobertos de pano negro e um candeeiro apenas, pendendo do meio do teto, quebrava a solene escuridão. Ao meio-dia, as portas eram fechadas e começava a cerimónia. Depois de um breve serviço, o bispo subia ao púlpito, pronunciava a primeira das sete palavras (ou frases) e fazia um discurso sobre ela. Chegado ao fim, saía do púlpito e ajoelhava-se diante do altar. O intervalo era preenchido com música. O bispo então pronunciava da mesma forma a segunda palavra, e a terceira e assim sucessivamente, entrando a orquestra após a conclusão de cada discurso. A minha composição estava sujeita a estas condições e não era tarefa nada fácil compor sete adágios de dez minutos cada um sem cansar os ouvintes. De facto, achei que era impossível ater-me aos limites que me eram dados.
Nelson Thorpes é um detetive de novelas de cordel, que tem, de vez em quando, ideias um pouco estranhas sobre música. A certo passo da sua primeira aventura, propõe uma atualização da obra:
O que se devia fazer era encomendar a um bom compositor contemporâneo, por exemplo a Bill Lee Bell, conhece, não conhece?, uma revisão de As últimas sete palavras de Cristo na cruz de Haydn em que, para as melodias iniciais de cada parte, se usassem, em vez da tradução latina das frases que o Cristo terá dito na crucifixação, essas mesmas frases em aramaico, que era a língua que Cristo falava. Por exemplo, o número de sílabas de Pater, Pater, dimitte illis, quia nesciunt, quid faciunt, “pai, pai, perdoa-lhe que eles não sabem o que fazem”, que é a frase a partir da qual Haydn constrói a primeira sonata, determina a frase melódica principal desse segundo andamento. Mas quantas sílabas terá “pai, pai, perdoa-lhe que eles não sabem o que fazem” em aramaico?
Enfim... Deixo-vos também um texto de José Saramago, que acompanha o disco e o DVD de Savall e que se chama “As sete palavras do homem”. É, com certeza, menos disparatado que as propostas de Thorpes e termina assim:
(...) Acabámos. Representei o meu papel o melhor que podia. O futuro dirá se o espetáculo valeu a pena. E agora, Deus, Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?
O quadro de James Tissot que termina o post, pintado entre 1886 1894, chama-se O que o nosso salvador viu da cruz, o que me parece ter ecos haydnianos; mas podia também, muito saramagicamente*, chamar-se A crucifixação vista por Jesus Cristo.

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* Não sabia que adjetivo construir do nome Saramago, para dele fazer um advérbio, mas, de repente, saiu-me este – como que por magia…

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