Falava eu no texto anterior
do ressurgimento da ideia de que a língua condiciona a nossa perceção do mundo
e de como estava disposto a rever a minha posição relativamente a essa ideia:
se até há pouco a recusava liminarmente, algum trabalho feito ultimamente
leva-me a aceitar, em determinadas casos, essa possibilidade[1].
O que quero agora acrescentar é que, se alguns trabalhos destes novos relativistas linguísticos[2] me
impressionam pelo seu rigor, fico também por vezes com a sensação de que nem sempre repensam suficientemente os conceitos linguísticos com que
trabalham. No tratamento do tempo linguístico, encontram-se muitas vezes
exemplos desta ligeireza teórica, como eu digo[3]. Eis um deles: no artigo “Does Your Language Shape How You Think?”, publicado no New York Times de 29 de agosto de 2010,
diz-nos o linguista Guy Deutscher (traduzo eu):
Se quiser contar em inglês um jantar com o
meu vizinho ou com a minha vizinha (…), tenho de dizer alguma coisa sobre a
localização temporal do evento: tenho de decidir se jantámos, se estivemos a
jantar, se estamos a jantar, se havemos de jantar, etc. O chinês, em
contrapartida, não obriga a especificar o tempo exato da ação desta maneira,
porque se pode usar a mesma forma verbal para ações passadas, presentes ou
futuras.
A maneira como Deutscher apresenta a questão,
por muito que seja seguramente convincente para a maior parte dos leitores do
artigo, é demasiado simplificada, ao ponto de ser incorreta. Em primeiro lugar,
mistura – ou confunde – tempo com outras categorias: a diferença entre have
eaten e have been eating (que só em contextos específicos, note-se,
correspondem às formas portuguesas que usei para as traduzir) não é de caráter
temporal, mas aspetual, ou seja, não tem a ver com tempo, mas como a ação nos
é apresentada, como vista do exterior ou do interior, como terminada ou em
curso, etc. Esta falta de rigor, porém, pode desculpar-se-lhe, admitindo que
não queira complicar as coisas para o leitor do New York Times. Já mais grave
me parece que chame a exprimir tempo linguístico “especificar o tempo exato da
ação”. O tempo linguístico tem muito pouco a ver com o “tempo exato” e o tempo
exato exprime-se com recurso a horas, dias e meses, não a formas verbais. Mas,
em última análise, também isto se lhe pode desculpar, aceito-o perfeitamente. O
que vem a seguir, já não.
O tempo linguístico (ou a combinação de tempo
e outras categorias, para ser mais rigoroso) não se exprime só através da forma
verbal, longe disso, e eu já vi trabalhos sobre marcações de tempo e aspeto em
chinês. Deutscher não refere (porquê?) as teorias linguísticas que consideram,
e demonstram com bastante subtileza, que o tempo é uma categoria universal,
presente em todas as frases de todas as línguas, independentemente de ser ou
não marcado nas formas verbais. Não me quero alongar nesta questão nem entrar
em pormenores muito técnicos, mas, quando se fala de tempo, há que ter conta não
só o verbo e a sua flexão, mas também as propriedades dos seus sujeitos e
complementos, os adverbiais, as relações lógicas entre a frase e as frases
anteriores do discurso, etc.
O que é estranho no ressurgir das teses de
condicionamento do pensamento e da perceção pela língua é que se parece repetir
um erro simples do primeiro whorfianismo, que é identificar categorias
linguística e formas da língua: Whorf argumentava que em hopi (a língua
ameríndia que descreveu) não havia “tempo” como em inglês, mas antes uma
diferença entre “manifestado” e “não manifestado”, mas essa afirmação resulta
obviamente de uma incompreensão das categorias tempo e modo. Para dar um
exemplo óbvio (que não corresponde de maneira alguma ao das categorias verbais
do hopi, quero deixar claro), um dos eixos de organização do sistema verbal nas
línguas latinas é a oposição entre indicativo e conjuntivo que, embora
suficientemente misteriosa para não haver nenhum tipo de consenso entre
estudiosos quanto ao seu significado, não é seguramente do tipo temporal e
poderia até definir-se (com alguma boa vontade, eu sei…) como um tipo de
oposição entre manifestado e não manifestado, pelo menos se se assumir que
manifestado pode significar “assumido como factual pelo locutor”… O facto é
que, deixando de lado o poder de sugestão que traz agarrada a ela a referência
à língua de um povo distante, com uma mundivisão seguramente muito diferente,
não parece haver grande diferença na conceção do tempo, e do mundo em geral,
entre uma francófona de alguma povoação do cantão suíço do Valais e uma falante
do alemânico de uma povoação próxima no cantão de Berna, que tem um sistema
verbal muito “temporal” e que não faz diferença nenhuma entre “ando à procura
de um restaurante onde fazem bom rösti” e “ando à procura de um restaurante
onde façam bom rösti”. De facto, que as formas verbais reflitam direta e
essencialmente o tempo é uma característica das línguas germânicas que não se
encontra nas línguas latinas, por exemplo, em que o sistema verbal, embora contenha
marcas de tempo, é organizado em torno de noções de aspeto (fez vs
fazia, etc.).
Um estudo fantástico
Um exemplo extremo, mas muito curioso, da
falta de rigor no tratamento do tempo linguístico num trabalho whorfiano é o do
estudo de M. Keith Chen “O efeito da língua no comportamento económico[4]”.
Assim resume Chen o seu trabalho (traduzo eu):
Testo a hipótese de que as línguas que não
distinguem gramaticalmente entre eventos presentes e futuros (o que os
linguistas chamam línguas de futuro fraco) levam os seus falantes a realizarem
ações mais orientadas para o futuro. Primeiro, mostro como esta previsão
decorre naturalmente quando a efeitos bem documentados da língua na cognição se
juntam modelos de tomada de decisão ao longo do tempo. Em seguida, mostro que,
corroborando esta hipótese, falantes de línguas de futuro fraco poupam mais,
guardam mais para a reforma, fumam menos e têm menos probabilidades de ser
obesos, e gozam de melhor saúde a longo prazo.
Nem mais: o estudo “demonstra” que há uma
influência tão grande das formas linguística de “futuro” na maneira como as
pessoas concebem e sentem o porvir que quem fale uma língua com formas
específicas para o futuro não poupa e complacentemente se lança em comportamentos
suicidas. Evidentemente, a primeira coisa que nos vem à cabeça é que há que
substituir urgentemente a segurança social por uma reforma linguística que
proíba o uso dessas formas verbais altamente nocivas para a sociedade. A tese é
suficientemente disparatada para merecer ser ignorada com um sorriso apenas ou
uma grande gargalhada, consoante o estado de espírito da altura, mas não é
assim que um linguista procede. Como diz Julie Sedivy[5],
[a proposta de Chen] é demasiado intrigante
para se resistir a falar nela. Na realidade, lembra-me as palavras de um
proeminente linguista que uma vez afirmou durante uma palestra: “A explicação
em questão é quase de certeza falsa. Se fosse verdadeira, porém, seria
incrivelmente interessante, de maneira que não temos outra escolha que não seja
explorá-la.”
E depois não é só isso: pode aproveitar-se
para mostrar a fragilidade da classificação de Östen Dahl aqui usada por Chen –
mas que pode também ser usada em quaisquer outros estudos menos fantásticos que
este…
Há muitas críticas que se podem fazer – e
foram feitas – ao trabalho de Chen. Críticas sobre a metodologia do trabalho,
sobre inferências forçadas, sobre efeitos estatísticos incontrolados, etc.
Todas elas são válidas e podem facilmente encontrá-las online com uma pesquisa
simples. Muitas delas, aliás, encontram-se nos textos do Language Log para que
vos remeto aqui. Mas, como no-lo recorda Geoffrey K. Pullum[6], todas essas
críticas são desnecessárias, se pensarmos que a hipótese inicial de Chen
dificilmente se tem de pé [tradução minha]:
Chen usa dados descritivos das línguas que vêm
do projeto EUROTYP de Östen Dahl, e adota uma classificação do inglês como
tendo futuro forte. Mas o inglês usa constantemente, e de forma notória, o
presente para referir o tempo futuro:
Meg's mother arrives tomorrow. [“A mãe da Meg chega amanhã”. Negritos meus.]
If the phone rings, don't answer it. [“Se o telefone tocar, não atendas.”]
My flight takes
off at 8:30. [“O meu voo parte às 8:30.”]
IBM is
declaring its fourth-quarter profits tomorrow. [“A IBM apresenta amanhã os
lucros do último trimestre do ano.”]
No próprio exemplo que Berreby dá, usa-se o
inglês I am going to + verbo, alegadamente ilustrando uma marcação gramatical do
futuro; mas, claro, am é o presente do verbo, por isso teria de defender-se que
o uso do verbo de movimento go no seu sentido idiomático de futuro próximo conta
como marcador gramatical de tempo verbal, o que levanta questões sobre se o
mesmo se deve dizer de am about to e de am on the point of e por aí fora. Se o
inglês tem marcadores do futuro verbal, tem pelo menos uma dúzia; mas o uso
simples do presente dos verbos é uma maneira muito comum de referir o tempo
futuro, e o que havemos de pensar disso? Pela minha parte, desconfio muito que
se possa descrever com rigor o inglês como uma língua de “futuro forte”. Quase
todos os gramáticos tradicionais descrevem o inglês como tendo um sistema de
tempos verbais que inclui uma forma verbal de futuro, mas isso não é bem
verdade; will é um auxiliar modal que também tem diversos outros usos. Se a
apresentação dos factos é pouco sólida relativamente ao inglês, que
probabilidade tem de ser rigorosa em línguas que não foram estudadas de forma
tão intensiva?
Podemos ver o caso do português. Mas,
primeiro, há que detalhar mais a perspetiva de Chen. Na sua demasiado ligeira
introdução à questão da problemática do futuro, diz-nos ele no estudo referido
(traduzo eu):
As línguas diferem no facto de exigirem ou não
que os seus falantes marquem eventos futuros. Por exemplo, um falante do alemão
que preveja chuva pode, de forma natural, fazê-lo no presente, dizendo: Morgen regnet es o que se traduz por
“Chove amanhã”. Em contrapartida, o inglês exigiria a utilização de um marcador
do futuro como “will” ou “is going to”, como em “It will rain tomorrow”.(…)
Desta forma, o inglês obriga os seus falantes a codificar a distinção entre
eventos presentes e futuros, ao passo que o alemão não o faz.
E acrescenta, em nota de rodapé:
É possível em inglês a referência ao futuro
sem marcadores de futuro em certos contextos: especificamente com
acontecimentos programados ou acontecimentos que resultem de propriedades do
mundo que sejam como leis (…). Na minha análise, deixo de lado estes casos,
porque, como [Dahl] mostra, “em muitas, se não todas, as línguas, este tipo de
frase é tratada de uma forma que não a marca gramaticalmente como tendo
referência temporal não presente (...), mesmo em línguas em que a referência ao
futuro é, noutras situações, altamente gramaticalizada.” Por outras palavras, a
forma como os acontecimentos programados são tratados não reflete o tratamento
geral da referência ao futuro numa dada língua.
Ora bem, na classificação de Dahl, o português
europeu é classificado como língua de
“futuro forte” e o português do Brasil como
língua de “futuro fraco”. Em português, no registo oral quotidiano, cada vez mais
a forma verbal do futuro tem um uso a que chamarei exclusivamente modal para
simplificar («Onde andará agora a Rita?») e só é usado temporalmente num
registo mais cuidado (situações formais, língua escrita)[7].
Como podem facilmente constatar prestando
atenção ao que se diz ao vosso redor, usam-se, para indicar o tempo futuro,
além das formas chamadas perifrásticas ir+infinitivo e haver de+infinitivo, o
presente do indicativo. Mesmo que consideremos as perifrásticas “marcas
gramaticais de futuro”, elas não são sempre obrigatórias, longe disso, e o
presente parece até ser a forma mais utilizada em frases em que há uma
referência temporal explícita no futuro:
«O que é que fazes hoje à tarde/no Natal?»
«Não faço nada de especial, porquê?»
Não é perfeitamente natural em português,
digam-me lá, eu perguntar a uma pessoa «Então, amanhã chove ou não?» e essa
pessoa responder-me «Chove, pois, de certeza absoluta»?
Então, aceitando as restrições de Chen de não
contar subordinadas (porquê?) nem eventos programados, continua a ser muito
duvidoso que o português europeu seja classificado como língua de “futuro forte”,
não é verdade? Mesmo sem analisar como se chegou a esta conclusão, posso
constatar, pelo que explico atrás, que é fácil considerá-la de rigor
extremamente duvidoso. Como é, aliás, extremamente duvidoso que haja na
marcação verbal do futuro diferenças tão grandes entre o português dos dois
lados do oceano que o português americano seja, ao contrário do português
europeu, uma língua de “futuro fraco”[8].
Podíamos continuar a analisar a expressão do
futuro em muitas línguas, em todas até, muito provavelmente para chegarmos
sempre a mais dúvida do que aprovação relativamente aos axiomas de que Chen
parte. Tenho uma atitude muito mais radical que Pullum – ou menos
diplomática, se preferirem: a divisão entre línguas de futuro fraco e de futuro
forte é impossível de provar. “Os linguistas” não chamam futuro fraco a nada.
Há linguistas que usam esse conceito, mas são, obviamente, uma minoria e o
conceito é de produtividade duvidosa. O trabalho que Chen se propõe fazer não
pode ser feito. E Chen devia referir muitos outros linguistas além de Östen
Dahl, para ficarmos então a saber o que dizem “os linguistas” sobre o futuro
linguístico e os seus marcadores.
…
Quero com isto tudo chegar a uma conclusão
simples: quem queira estudar uma relação entre um fenómeno linguístico e um
fenómeno percetivo ou social deve ter sempre também o cuidado de pensar e repensar
muito bem os aspetos linguísticos da questão a estudar – sobretudo os
pressupostos linguísticos em que a hipótese assenta… Que o que acabo de
escrever é disparatado, por demasiado óbvio? É certo. Mas a verdade é que nem
sempre assim se faz…
__________________
[3] O tempo é uma área por que tenho especial
interesse e, por isso, reparo mais nas incorreções nessa área e analiso-as com mais facilidade. Já aqui tinha referido a falta de
rigor de Lera Boroditsky no tratamento do tempo linguístico: ver a segunda
parte deste texto,
que começa com “O trabalho de Boroditsky é, repito, um trabalho científico
cuidado…”.
[4] Chen, M. Keith. The Effect of Language on
Economic Behavior: Evidence from Savings Rates, Health Behaviors, and
Retirement Assets, Yale University, School of Management and Cowles Foundation,
agosto de 2012. Aqui.
[5] Em “Thought experiments on language and thought” de no site Language Log. Quem queira aprofundar a discussão do trabalho de Chen pode perfeitamente partir
daqui, porque ele foi muito discutido no Language Log.
[7] Muita gente argumentará que raramente ou
nunca se pode isolar o valor “exclusivamente temporal”, mas não quero lançar-me
agora nessa discussão.
[8] Pode ser que os brasileiros poupem mais
que os portugueses, não sei, mas isso é – pelo menos, para mim – uma questão
muito diferente (smile).