Nada disto parece muito extraordinário, se
tivermos em conta que é sobretudo para comer que o dinheiro serve. Não só, é
claro, e sobretudo nas sociedades de abundância, mas foi sobretudo para a bucha
que ele sempre mais fez falta, e é assim que continua a ser na maior parte dos
sítios do mundo. É certo que nem só de pão vivem mulheres e homens, mas
primeiro a paparoca, ou não?
Ora, há uns
meses, surgiu espontaneamente, no meu mural de Facebook,
uma coleção de sinónimos de dinheiro. Reduzindo-a às expressões familiares (ou
de gíria ou calão, enfim, as que não se usam normalmente em situações formais)
e deixando de lado expressões que só se usam em construções específicas[3] ou
em expressões fixas[4], fico com duas dúzias de expressões[5]: aquilo com que
se compram os melões, arame, bago, bagaço, cacau, carcanhol/carcanhóis, caroço,
chelpa, gimbo, graveto, guita, guito, maçaroca, massa, milho, narta, nota,
papel, pasta, pastel, perné, pilim, pingo e taco. Destas 24, só 6 tem uma
relação óbvia com comida. Talvez se possa ver também comida em bagaço e cacau – e,
com boa vontade, em pingo…–, se incluirmos a bebida na comida, mas é duvidoso… (E
também não faço ideia de onde venham gimbo e chelpa, quem sabe se não se
comerão… )
Enfim, parece que a comida não é um campo tão
produtivo para a criação de palavras para dizer dinheiro em português como é em
francês. Calvet diz, no artigo citado, que “a língua tem as raízes na
sociedade, fala-nos dela e testemunha a sua evolução”. Se calhar – pode talvez pensar-se,
partindo dessa ideia – os portugueses têm menos palavras de comida para dizer
dinheiro porque gastam menos dinheiro na alimentação que os franceses, por
exemplo – quer dizer, porque o dinheiro é menos comida, para eles, e mais
outras coisas não comestíveis… Bom, o que as estatísticas dizem é precisamente o
contrário [6]. A razão há de ser outra… Ou então, bem pode ser que não haja nenhuma
razão especial…
______________________________
[1] “T’as pas cent balles…”, in Le Français dans le monde, n°210, julho
de 1987. Tenho o artigo em fotocópias desde essa altura e fui redescobri-lo há
pouco tempo. Além de mostrar que a cópia ilegal (ai, ai, ai…) já é uma coisa
muito antiga, isto mostra também que há fotocópias que resistem a 7 mudanças de
casa – incluindo 5 mudanças de continente – e a um incêndio…
[2] Devo confessar que, por
muito que me julgue bastante conhecedor de calão francês, não conhecia carme, que deve ter desaparecido da
língua corrente antes de eu ter começado a ter contacto com ela. Mas não há
dúvida de que faz parte do calão clássico, como se pode constatar em Argoji, Dictionnaire d’Argot Classique, que compila vocabulário de 13 dicionários de calão de 1827 a 1907.
[3] Cheta é sinónimo de
dinheiro, mas só em frases negativas e com uma elevada negatividade, se se pode
dizer assim: “tenho cheta” ou “esse gajo está cheio de cheta” são frases
impossíveis, e “não tenho cheta” não significa exatamente “não tenho dinheiro”,
mas antes “não tenho dinheiro nenhum”. Casos curiosos são também o das palavras tostão, tusto e pataco. Usadas com um determinante indefinido, podem
também significar “dinheiro” – no singular, são sempre usadas na negativa; no
plural, na afirmativa: “Não tenho um tostão”/“Tenho uns tostões guardados”
[4] O termo patacas só significa “dinheiro” na expressão árvore das patacas, a metafórica árvore do dinheiro (por muito que
não se possa dizer: “Mas tu pensas que as patacas crescem em árvores ou quê?”).
Fora disso, pataca é o nome de
várias moedas de vários sítios, mas não significa “dinheiro” como tal.
[5] Como não me sinto competente para mais,
limito a lista ao português europeu. Excluo larjã, porque não é senão l’argent;
móni/mâni, porque é apenas money, e grana, por ser calão próprio do português
americano. Quer dizer, não excluo completamente, relego os termos, coitados!,
para uma nota de rodapé… Também só aqui refiro o angolano cumbu e o
moçambicano tacos no plural, embora estas palavras tenham tido, pelos
menos em certa época e em certos círculos, alguma fortuna em Portugal. Cumbu
está dicionarizado e o Porto Editora em linha diz que vem do quimbundo ukumbu, “vaidade”, «por relação
efeito-causa». Talvez venha, talvez não, porque as etimologia da Porto Editora não
são sempre de fiar… Excluí também da lista expressões que conheço e uso, como bagoré, ferro,
música, roda e outras, porque não posso provar (a mim mesmo, antes de mais),
que não são exclusivo de círculos muito restritos. Mas é bem possível que sejam
mais que isso…
Tirando isso, 24 expressões familiares para
dizer dinheiro parecem muito, mas não são. Uma vez, para um programa de rádio que tive, incluindo
regionalismos e com pesquisas em dicionários de calão, fiz uma recolha de cerca de 80
palavras para dizer dinheiro – das quais me lembro que conhecia umas 3 dezenas,
se tanto (continuo com a sensação que me estou aqui a esquecer de palavras que
conheço…). Que pena tenho de não ter guardado essa lista.
Nos poucos dicionários a que tenho acesso
online, só não encontro duas destas 24 expressões: perné e narta. Perné, até
percebo que não esteja dicionarizado, é calão cigano, que não se ouve com
frequência. Agora, narta não vejo bem porque não há de estar em todos os dicionários,
palavra comum que é.
O português partilha com o castelhano os
termos guita e pasta.
[6] Ver,
por exemplo, dados dos relatórios Consumers in Europe, do Eurostat, 2009,
e ERS/USDA, EUROMONITOR, 2010
(dados de 2005 e 2009, respetivamente). Evidentemente, nada disto é para levar
muito a sério – não faz muito sentido, para mim, postular este tipo de
relações entre os factos da língua e os factos sociais, é mais porque me
apetecer mostrar-vos estas estatísticas, que acho interessantes.
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