Carl Bloch, Fra et Romersk Osteria (“De uma Osteria Romana”), 1866. Óleo sobre tela, Museu Nacional de Arte da Dinamarca, Copenhaga |
Já ouvi dizer ou já li alguma coisa sobre o erotismo do quadro, a sua
riqueza de pormenores, a seu dramatismo, o seu caráter popular, o seu cunho
misterioso, os estereótipos que encerra, e mais… Mas nunca li nem ouvi o
que me veio à cabeça quando o conheci e apeteceu-me, por isso, escrever um
textinho sobre ele para esta Travessa que nunca teve textos sobre pintura[1].
O que salta à vista são os olhares das figuras fixos no olhar do espetador.
Bom, não é nada de novo, é uma caraterística de muitos retratos, e não só, e
cria, muitas vezes, um efeito especial. E o especial aqui, creio eu, é que esse
truque cria uma história, ou uma reserva de histórias, à disposição do
espetador. A ideia que tenho é que, em vez de descritivo, como os quadros
figurativos quase sempre são, este quadro é essencialmente narrativo. Há
quadros que evocam uma história, mostrando um episódio dessa história, mas este
não evoca nenhuma história conhecida – ele conta uma história que não existe em
mais lado nenhum. Quem vê o quadro pode ser apenas espetador em segunda mão de
algo vivido ou imaginado pelo autor do quadro. Nesse caso, é como ler um conto
contado na primeira pessoa. Agora, quando se lê um conto contado na primeira
pessoa, o leitor não pode usurpar o lugar do narrador, porque não sabe o que
vem a seguir – precisa do narrador, sem ele não há história. Aqui, como é uma
narrativa sem fio narrativo, digamos assim, uma narrativa que é toda contada
como um instante apenas, o espetador pode decidir ser ele a personagem da
história, pode deitar fora o narrador e ocupar o seu lugar. De qualquer forma,
precisamente porque só lhe é dado um momento preciso dessa história, é o
espetador que tem de a rematar, de construir os seus pormenores, e, para isso,
tanto faz imaginá-los vividos ou inventados por Carl Bloch como imaginá-los
vividos por ele próprio, espetador.
É preciso dizer que o truque não foi inventado por Carl Bloch. Bloch
limitou-se a dar nova vida a uma ideia que o seu compatriota e professor
Wilhelm Marstrand tinha tido 18 anos antes.
Wilhelm Marstrand, Pige, der byder den indtrædende velkommen (“Rapariga dando as boas vindas a uma pessoa que entra”), 1848. Óleo sobre tela, Nova Gliptoteca Carlsberg, Copenhaga |
No site da Galeria Nacional da Dinamarca, diz-se que o quadro de Bloch é
“uma versão intensificada” da pintura de Marstrand. É uma boa maneira de o
dizer, acho eu. Também me parece que o quadro de Marstrand, bonito e
interessante que é, não tem a mesma intensidade. Nem a mesma capacidade de
produzir histórias. É certo que o facto de ter um título também não ajuda nada
– é uma “rapariga dando as boas vindas a uma pessoa que entra”[2] e parece que não
pode ser muito mais… Bloch introduz o elemento masculino e introduz, sobretudo,
o que me parece o fundamental do quadro: a indefinição das expressões,
incluindo a indefinição da gestualidade. Não que os rostos e as posturas não
sejam bem expressivos, que o são, mas que expressões têm? São inúmeras as
interpretações possíveis. Creio, aliás, que, quando se diz que o quadro é
misterioso, é esse um dos principais elementos constituintes do seu mistério,
talvez o principal. Surpresa, desafio, sensualidade, reconhecimento, sedução, temor, tudo é
possível ali ver. Não importa a idade, o género, a origem ou o estado de
espírito da pessoa que olha para o quadro; se decidir que é ela e não Bloch que
entra na sala – ou seja, se decidir entrar no quadro, fazer parte dele –, a reação
das três personagens faz sempre sentido. Há muitas histórias disponíveis,
passa-se sempre ali qualquer coisa.
Mas, claro, nada disto é para ser levado muito a sério, isto sou só eu a delirar: é o
que me veio à cabeça quando conheci o quadro de Bloch.
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[1] Mas tem cá alguns quadros, por exemplo aqui.
Curiosamente, um dos poucos quadros que aqui há na Travessa tem uma perspetiva semelhante à dos quadros de que falo neste texto.
[2] De facto, o título é ambíguo, porque não se sabe se “a pessoa que
entra” é uma pessoa concreta (ela deu as boas vindas a esta pessoa que entrou) ou
virtual (ela dá sempre as boas-vindas a seja lá quem for que entre e esta é
apenas uma das ocorrências dessa saudação), mas o que digo continua a fazer
sentido mesmo com a segunda leitura.
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