30/01/15

Paisagem desabitada e paisagem com gente a mais

Apesar das (boas) intenções de muita gente de promover, em várias partes do mundo, um desenvolvimento assente na agricultura e na pecuária, a verdade é que desenvolvimento, pelo menos no sentido mais comum da palavra, implicou sempre e continua a implicar migrações de uma grande parte da população do campo para a cidade. Em todo o mundo houve e continua a haver quem, mitificando ou não as vantagens de um estilo de vida urbano, se disponha a abandonar o campo e a vida do campo, sem saber ao certo o que a espera na cidade. Um dos resultados de uma fase inicial desse movimento é sempre a criação de enormes bairros da lata nos subúrbios das cidades, que, em vários aspetos, contrastam tanto com os centros urbanos como com as zonas rurais. Se a escolha dos migrantes tem ou não alguma base de racionalidade é algo que se discute: enquanto muitos chamam a atenção para os perigos dos subúrbios pobres, insalubres e desorganizados das grandes metrópoles e apelam à necessidade de travar o êxito rural, outros afirmam que, contra a impressão maioritária, mesmo nos caóticos bairros da lata das cidades do terceiro mundo, as pessoas têm melhores condições de vida que nas zonas rurais e que trocar a aldeia pelo bairro da lata é, pois, uma decisão mais razoável do que muitas vezes se pensa.

A tendência para o êxodo rural não parece inverter-se em lado nenhum do mundo. Nos países europeus do século XXI, porém, tem características diferentes do de outros tempos e lugares, porque, em princípio, os habitantes das zonas rurais dos países ricos têm um nível de vida que lhes permite (ou devia permitir) viver no campo com condições de vida semelhantes às da cidade. Mas não ficam nas zonas rurais. Algumas delas estão a ser rapidamente abandonadas.


Parte sul de Ærø, foto de Aconcagua, 2011, de Wikimedia Commons
A motivação imediata deste texto foi a ilha de Ærø, aqui perto de onde moro, na Dinamarca, mas fiz depois uma viagem mental a algum Portugal do interior que conheço de povoações semiabandonadas e população envelhecida. Em Ærø, a tendência há muito constante de abandonar a ilha está a agravar-se: soube que, do decréscimo anual de cerca de 75 habitantes que se verificava há vários anos, passou a haver este ano menos 150 pessoas com domicílio na ilha. “Éramos 12 mil quando a minha família para lá se mudou, era eu rapariga. Agora, somos só 6 mil”, disse-me uma senhora que conheci no comboio de Odense para Svendborg.

É igual em todo o lado, apenas mais visível em ilhas pequenas como Ærø, o ciclo vicioso dos efeitos do êxodo rural nos serviços existentes, cuja deterioração leva a mais êxodo rural: as escolas fecham, porque o preço por aluno é inaceitável – e isso obriga as famílias com crianças a abandonar a ilha; os serviços vão desaparecendo um a um – e, com eles, os poucos postos de trabalho locais; a assistência médica passa a estar disponível apenas nos centros urbano mais próximos – o que motiva os mais velhos a mudarem-se para lá…

Não analisei o assunto em pormenor. É só um esboço de reflexão que proponho – partilha de apontamentos mentais, se quiserem, de questões para que não tenho resposta satisfatória. Por exemplo: A tendência tem sido interrogar-se sobre como fazer chegar aos cada vez menos habitantes das zonas rurais os serviços disponíveis nas zonas urbanas, mas é ou não possível e desejável tomar medidas para travar e – sobretudo – inverter a tendência de êxodo rural nos países ricos? Muitos jovens deixam voluntariamente o campo, mas há também muita gente que só o faz por falta de condições para aí continuar a viver – deve obrigar-se essas pessoas a mudarem-se contra a sua vontade? Satisfaz-nos uma distribuição da população em que a grande maioria dos habitantes se concentre nas capitais e o resto do país fique deserto de gente ou queremos ver vida humana em todas as regiões? E porquê? Traz ou não problemas a concentração maciça de pessoas?

Quem acha que a economia não se deve regular e que deve ser a economia desregulada a determinar os movimentos de populações achará que tudo isto é, quando muito, uma evolução triste – mas inevitável. Quem pensa que compete à política ajudar a modelar o futuro de um país, empurrando na direção que a maioria das pessoas acha correta, e tendo em conta mais que apenas o custo imediato das diversas opções, pode tentar tomar medidas para contrariar a tendência de êxodo rural. Que haja muito mais gente a viver da terra, mesmo que se incentive e se desenvolva a produção biológica, é impensável hoje em dia. Para alterar esta tendência,  é preciso, no fundo,  ponderar, calcular e propor uma forma de manter fora dos grandes centros urbanos uma vida com as características associadas durante muito tempo à vida urbana, mas sem a concentração de prédios e pessoas. As regalias fiscais, quer para as empresas que criem postos de trabalho no campo, quer para as pessoas que aí comprem propriedade e aí se instalem, parecem uma das medidas mais óbvias. Mas é uma questão complexa, parece-me a mim, e, a menos que se gaste muito dinheiro – que literalmente de alguma forma se pague às pessoas para ficar ou investir onde os outros não ficam nem investem –, ninguém vai querer viver nem investir onde os impostos são baixos e o imobiliário barato, se não houver escolas, clínicas médicas e outros serviços básicos. E estes têm de existir à partida para atrair as pessoas; não acredito que possam ser criados numa segunda fase em que, depois de as pessoas terem sido atraídas sem eles, se justifique a sua criação.

Como disse, são sobretudo dúvidas que tenho. Também pode ser que se esteja a empolar o problema de ficar com países inteiros de paisagem humanizada por séculos de vida rural e agora desabitada de humanos, e com a população toda – ou quase – reunida nas grandes metrópoles. Mas, insisto na pergunta inicial, é isso que queremos? Ou é isso que devemos aceitar?, se preferirem. No caso de Portugal, por exemplo, o que pensamos da ideia de tornar literal o velho rifão localista que diz que Portugal é Lisboa – ou o Porto – e o resto é paisagem?

19/01/15

Criação humana e criação divina

Eis dois excertos de um conto que escrevi há quase 15 anos. São partes de uma conversa sobre criação que os protagonistas retomam de cada vez que se encontram.


Artista anónimo, cerca de 1220-1230.
Codex Vindobonensis, Biblioteca Nacional da Áustria.
“Aqui cria Deus céu e terra, sol e lua e todos os elementos”
(Wikimedia Commons)
– Você acha que para criar é preciso ter algumas qualidades especiais além de ser escritor ou músico ou dominar, enfim, uma determinada forma de expressão artístico?
– Explique-se lá, que eu não sei se o percebo... Que tipo de qualidades especiais?
– Não sei, mas há muito quem apregoe que os artistas têm mais qualquer coisa que os outros... Mais sensibilidade, mais sentimento, um olhar mais acutilante...
– Isso é tudo mentira, meu amigo, é uma grande mentira em que, infelizmente – você tem toda a razão nisso –, há muito quem acredite... Então, mas se há tanta gente tão sensível, tão inteligente, tão tudo, que é incapaz de arte!... E tão grandes artista – mas grandes artistas de verdade, em todos os domínios – que não passam de uns burgessos, de uns alarves, umas bestas! Eu conheço alguns, se quer saber...
– Bom, se o criador, para o ser, não precisa de maior sensibilidade que as outras pessoas, menos precisa então de maior sabedoria, de maior inteligência ou de maior sentido de justiça.
– Exatamente, não poderia estar mais de acordo consigo. Não tenho dúvidas que há personagens que têm em triplicado as qualidades morais e intelectuais do seu autor. O criador – como já disse, mas repito –, do que precisa é de alguma coisa que se pode definir de uma forma vaga como “espírito criativo”, ou “capacidade criativa”, e que tem a ver muito diretamente com o domínio em que cria.
– Então, diga-me lá, porque é que não há de ser assim com toda a criação?
– Com toda a criação?
– Sim, com toda a criação. Mesmo que admitamos que o universo tem de ter um criador, isso não implica que esse criador tenha de ter mais nenhuma qualidade especial a não ser essa competência criativa de que você falava – não é por ter criado os mundos que existem que Deus tem de ser mais justo, sabedor ou inteligente que as suas criaturas!


***

– Li uma vez que o poder de destruir é maior que o poder de criar apenas. Nenhum criador pode desfazer o que criou.
– Isso agora depende de você ter uma visão mais ou menos materialista do mundo. Se você acreditar que nada existe sem um suporte material, basta agarrar no suporte material da criação – o caderno manuscrito, o livro impresso, a tela pintada, a pauta ou a gravação, tudo isso –, e queimá-lo, rasgá-lo, dar cabo dele seja lá como for e já não há a criação. Mas se você acreditar que as coisas existem primordialmente enquanto ideias, noções, conceitos apenas, bem, então não, não se pode desfazer a criação...
– Pois olhe, eu considero-me um materialista, mas a postura materialista dura que você acabou de referir não me parece muito defensável. Bom, em última análise, depende também um pouco das características de cada tipo de obra de arte... Aceito que um quadro que já vi e que foi destruído “já não exista”, porque a recordação que tenho dele, por excelente que seja, não me impressionará nunca – e digo impressionar no sentido do estímulo percetivo, da sensação – como vê lo de facto, ali, diante de mim. Aceito que uma música que já foi tocada e que nunca mais volte a ser tocada, porque os registos todos que há dela, escritos como sonoros, foram destruídos, também possa ser considerada como “já não existente”, pelas mesmas razões. Mas não me convenço de que, se forem queimados todos os exemplares existentes de Crime e Castigo, e já não houver o texto, e, por isso mesmo, maneira de o voltar a imprimir, Raskolnikov, para só falar da personagem principal, deixa, de repente, de existir...

18/01/15

Olhos azuis

Ninguém tem pigmento azul no corpo e os olhos azuis são azuis devido a um fenómeno ótico semelhante ao que faz com que o céu seja azul. Há quem afirme com muita certeza que os olhos azuis se devem a uma mutação num único indivíduo, mas não se pode saber ao certo, claro está, nem onde nem quando. O que parece muito consensual é que, ao contrário da cor da pele, a cor dos olhos e do cabelo não dão qualquer vantagem seletiva. É provável, pois, que os olhos azuis se tenham espalhado apenas por seleção sexual (preferência por parceiros de olhos azuis)[1][2], embora não se possa pôr de lado a hipótese de que uma secção de ADN tenha partilhado a disposição para os olhos azuis e para a pele mais clara (essa sim, com vantagem adaptativa às regiões com menos sol) e que, agindo a seleção sobre a cor da pele, os olhos azuis tivessem “apanhado boleia” da pele clara.
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Uma das razões do êxito da famosa fotografia Rapariga afegã de Steve McCurry são talvez os surpreendentes olhos claros da fotografada, Sharbat Gula. Está agora também a ganhar fama a foto de uma menina curda de impressionantes olhos azuis, do fotógrafo Youssef Boudlal. É claro que não (só?) é a cor dos olhos que faz delas grandes fotografias, mas sobretudo, a expressão que captam[3]. Os olhos são o espelho da alma, não é o que se diz?

Pormenor de Meisje met de parel (Rapariga com pérola) de Johannes Vermeer, c. 1665. Mauritshuis, Haia 


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[1] Há quem proponha explicações para a maior diversidade de cores de olhos e cabelo nos europeus. Ver aqui.

[2] Sabe-se que os homens de olhos azuis têm preferência por mulheres de olhos azuis, mas as mulheres de olhos azuis não têm preferência por nenhuma cor de olhos dos parceiros, nem as mulheres e homens de olhos castanhos. Esta preferência dos homens de olhos azuis é às vezes interpretada como “reflexo de estratégias para reduzir a incerteza da paternidade”, uma vez que os olhos azuis são um traço recessivo – só se expressa quando existe em ambos os progenitores. Mas, claro, esta explicação, a não ser que seja herdada de contextos demográficos muitos anteriores e diferentes dos atuais, não se aplica a sociedades como as escandinavas, em que há grande predominância de olhos azuis, ou seja, em que os concorrentes de cada homem têm a mesma cor de olhos que ele.

Não deixa de ser curioso, a propósito (?), que, em dinamarquês, o adjetivo blåøjet, “de olhos azuis”, signifique também “ingénuo”. Parece-me que os sul-europeus têm tendência a considerar ingénuos os nórdicos, pelo que se podia prever uma expressão semelhante nas línguas latinas, mas não deixa de ser curioso que a expressão tenha este significado numa língua falada por pessoas de olhos azuis.

[E eu, que não tenho olhos azuis, o que prefiro? Bom, aos olhos castanhos do Francisco José, prefiro sem dúvida os olhos azuis pálidos dos Velvet Underground...]

[3] Pode pensar-se que, nas duas fotografias que refiro, o que chama a atenção são os olhos claros num tipo de rosto que normalmente não associa a esta cor de olhos, o que o obriga a reconsiderar a tipologia dos humanos que tem interiorizada. Mas não me parece… Se me dissessem que a menina iazídi da fotografia de Youssef Boudlal era croata ou sueca, por exemplo, eu acreditava.

17/01/15

Pequena nota sobre dogmatismo e outras enfermidades do raciocínio

Numa loja de roupa em segunda mão, na semana passada, uma conversa entre duas senhoras idosas:

– …
– O quê?
– Nada, estava a falar sozinha.
– É uma coisa sensata. Assim, ninguém te contradiz.



08/01/15

Je suis Charlie moi aussi

Acompanhei as notícias sobre o ataque ao Charlie Hebdo desde o início e nunca mais me decidia a escrever um texto sobre ele. Como acontece muitas vezes, houve muito quem dissesse mais depressa e melhor que eu o que eu queria dizer: a monstruosidade do ataque, de todos os ataques assassinos; o horror das motivações e os perigos das consequências; a necessidade de distinguir a religião do crime, porque os deuses, por cruéis que possam ser, nunca puxam gatilhos reais, só as pessoas sabem ser desumanas dessa maneira; o circo ridículo das teorias da conspiração; a importância de não sucumbir ao medo, mesmo sabendo que do medo ninguém decide; tudo isso. Vi muita gente que nunca gostou do Charlie Hebdo e que com certeza não se revia na sua sátira, referir agora como heróis os seus jornalistas e caricaturistas; vi outros tentarem desimportantizar o horror, «assassinatos há tantos… de tantos tipos…», como se algum horror se possa desimportantizar por haver outros horrores; e vi a explosão da revolta em centenas de solidários e irreverentes cartunes.

Teria ficado abalado pela morte de Wolinski e Cabu, nem que tivesse sido natural e pacífica. «Se tivesse sido feito por um louco e não por islamistas, não se falava tanto do ataque” é um dos muitas provocações que me puseram à frente. Todos sabemos que a importância de uma morte não depende só da causa, mas também de quem morre e, às vezes, como. As vidas de Wolinski e Cabu valiam exatamente o mesmo que as vidas dos outros assassinados e as de qualquer outro ser humano, mas eles eram, para muitos, também símbolos importantes. Daniel Cohn-Bendit disse numa entrevista ao Libération que foi “uma das últimas formas do espírito de Maio de 68 que foi assassinada.” Também é isso. “O que é aqui atacado”, continuou ele, “é o direito à crítica radical de todas as religiões. Charlie Hebdo é o radicalismo anticlerical, foi por isso que foram mortos.” Conheci muito mal o Charlie Hebdo da nova geração, de 1992 para cá. Aliás, nem posso dizer que conhecia o trabalho de Charb, Tignous e Honoré. Mas a irreverência radical de Wolinski e Cabu (como a de Cavanna, Reiser ou Willem, por exemplo) fizeram sempre parte do meu mundo natural, desde os tempos da revista Hara-Kiri.

Dizia-me ontem um amigo que os cartunistas e os outros assassinados tinham morrido em combate. Uma das coisas que o fanatismo religioso faz, seja ele qual for, é literalizar metáforas. Na interpretação dos textos sagrados, mas não só. Muitos cartunes que surgiram na onda de pesar e solidariedade que se seguiu ao crime assentam na ideia do cartune como arma – a que se opõem as armas reais – e é a literalização dessa ideia que justifica, na mente dos assassinos, o ato criminoso. É muito difícil jogar com o segundo sentido, se tudo for compreendido literalmente”, disse uma vez Charb. “Não tenho a impressão de degolar ninguém com uma caneta de feltro”. A arma do cartune não tira vidas nem se destrói com balas. É ao contrário: neste caso, o terror vem dar novas munições ao humor desenhado. O combate dos que foram ontem assassinados há de continuar nos cartunes, mas é importante que continue cada vez mais fora deles. Não queremos nem este nem nenhum terror, nem este nem nenhum fascismo. E ignoremos, para nos unirmos nesta recusa, a divergência das razões que há para dizer “je suis Charlie”: Je suis Charlie moi aussi.