Flak apresentou anteontem [28.05.2015] o seu segundo álbum a solo,
Nada escrito, que aconselho. Não é bem para fazer publicidade ao disco, porém, que aqui o refiro
[1], mas para, a propósito da letra de uma das canções, vos falar um pouco da minha experiência de um período muito difícil da vida do Zimbábuè
[2].
O texto original do que veio a ser a letra de “Vi escrito a fogo”
[3] é o seguinte:
Vi escrito a fogo na água: / Vê a mágoa à tua volta! / Que ela seja mais que mágoa,
Que seja fé e revolta. // Nunca a gente desespera, / Chora só, e ri e espera / Que nos pague quem nos deve / Que a vida seja mais leve / E que haja quem que nos leve / A uma terra prometida,
/ Babilónia, cativeiro, / Sempre assim foi toda a vida! // Vi escrito a fogo na terra: / Olha bem ao teu redor, / Faz por ti a tua guerra, / Nunca por nenhum Senhor // Nunca a gente desespera / Chora só, e ri e espera / Que a dor que sempre teve / Seja algum dia mais leve, / E que haja quem que nos leve / A uma terra prometida, / Babilónia, cativeiro, / Sempre assim foi toda a vida! // Vi escrito a fogo no ar: / Vem, irmão, vamos embora / Vamos abrir este mar, / P’ra passar, chegou a hora!
No documento original, o texto chama-se “Espiritual negro”, tem a data de 13 de novembro de 2008 e foi escrito em Chinhoyi, no Zimbábuè. Isto ajuda a compreender o texto. Ou a intenção com que o escrevi.
Lembro-me de que, da primeira vez que fui ao Zimbábuè, em 1997, vi um artigo num jornal cujo título era “Estradas apresentam sinais de deterioração”. «É ao contrário de Moçambique», comentei eu, «lá a deterioração apresenta sinais de estrada.»
Cinco anos depois do acordo de paz, uma grande parte das infraestruturas continuava por reabilitar e faltavam, aqui e ali, pontes e troços de estrada. Lembro-me de demorar quatro horas para fazer 32 quilómetros de Nicoadala a Quelimane, num camião. A rede comercial também estava ainda por restabelecer, em parte devido ao mau estado das estradas. Fora das maiores cidades, continuava a haver escassez da maior parte dos produtos. As viagens eram difíceis. Era preciso ter algum espírito de aventura para ir a certos sítios, até porque às vezes não se sabia se se ia encontrar onde dormir ou comer.
Por isso, entrar no Zimbábuè, nessa altura, era como entrar noutro mundo. Tudo funcionava bem, havia de tudo – pelo menos para quem tivesse dinheiro.
É claro, havia também coisas que nos impressionaram muito negativamente. Escrevi, numa carta de novembro desse ano, que, muitas vezes, o Zimbábuè se parecia estranhamente com a Rodésia
[4]:
Nas livrarias de Harare, ao lado da biografia do Mandela, A road to freedom, via se um outro livro, cujo tema posso apenas adivinhar: Rhodesians never die. E deve ser verdade. O país ainda é dos brancos e ainda é um país de apartheid. Há restaurantes para brancos e turistas e restaurantes para “indígenas”. A expressão indigenous é comummente usada pelos zimbabueanos. Em Moçambique, se se pergunta por um restaurante, ou há ou não há. No Zimbábuè, às vezes há, mas não é para brancos, porque só tem comida “indígena”. (…)
Não há terra que chegue para as pessoas cultivarem, porque a terra é toda dos farmeiros brancos. Bem, quase toda. O governo começou agora um programa de redistribuição da terra, que tem dado broncas atrás de broncas: os brancos estão descontentes, obviamente, por estarem a ser expropriados, e a população e a comunidade internacional também, porque a terra expropriada está a ser entregue a ministros e generais do Sr. Mugabe...
E acrescentava mais algumas impressões de turista, num texto de outubro do ano seguinte, escrito numas férias em Bvumba:
A população negra trabalha aqui invariavelmente nas quintas dos brancos. O sistema é de tipo feudal: as aldeias dos trabalhadores são dentro da propriedade do senhor, bem como as suas machambas, normalmente terrenos pequenos, na periferia das plantações (...). Uma parte das infraestruturas para os trabalhadores, incluindo, sempre, as suas casas, poços e lavadouros, e, às vezes, escolas e postos de saúde, são fornecidos pelo “senhor”. Mas, como estas infraestruturas nem são piores que as infra-estruturas públicas das chamadas zonas comunais, não é amanhã a véspera do dia em que rebente aqui uma jacquerie ou outra revolução qualquer. E os zimbabueanos brancos lá vão jogando o seu ténis ou o seu senúcar ao fim da tarde, no clube local, que tem um empregado de libré vermelho e tudo, e uma vista maravilhosa sobre a montanha...
A desvalorização do dólar zimbabueno tinha já começado nessa altura, vejo agora ao reler estes textos. E a queda da qualidade de vida:
Além disso, a vida no Zimbábuè, sobretudo com esta desvalorização constante que o dólar zimbabueano tem sofrido ultimamente, é muito barata. Quer dizer, para nós... Os zimbabueanos, que até tinham, em geral, uma vida bastante razoável comparada com a dos outros povos da África Austral, estão cada vez pior...
É claro, era uma desvalorização que não se podia comparar com o que viria depois. Aliás, o que veio depois estava fora do alcance mesmo da mais delirante imaginação. Quando voltámos a Moçambique em 2006, para aí vivermos 5 anos em Chimoio, o Zimbábuè era um país irreconhecível. Escrevi eu nessa altura:
A situação de dois dos países vizinhos, o Zimbábuè e o Maláui, deteriorou-se tão drasticamente que Moçambique, que tinha um nível de vida muito inferior a ambos, lhes passou claramente à frente. Uma das implicações que isso tem é que as correntes de emigração se inverteram: em vez de serem os moçambicanos a emigrar para o Zimbábuè e para o Maláui, são os zimbabueanos e os malauianos a virem procurar a sua sorte em Moçambique. E não só gente pobre – também os farmeiros brancos do Zimbabue se vieram tentar estabelecer do outro lado da fronteira, quase todos nesta província de Manica, que é das que tem mais potencial agrícola.
Entre 2001 e 2004, instalaram-se 42 zimbabueanos (entre particulares e firmas) aqui na província. Falou-se do “milagre de Manica”: de repente, havia aqui montes de gente a fazer agricultura industrial, o que produz forçosamente desenvolvimento: 5000 postos de trabalho assalariado, mesmo mal pago, são ouro numa terra onde o que mais falta é dinheiro. Além disso, abriram unidades de processamento para exportação de rosas e legumes, e para produção de óleo de girassol e produtos lácteos para o mercado local e regional, que criaram centenas mais de postos de trabalho. Mas, a partir do ano passado, os zimbabueanos começaram a abandonar Moçambique. Neste momento, restam aqui em Manica meia dúzia de famílias, as mais teimosas[5].
Mas não tinha ainda ido ao Zimbábuè, quando escrevi isto. Eis um excerto de um texto de março do ano seguinte, depois da nossa primeira viagem ao Zimbábuè:
No Zimbábuè, muito provavelmente, o pior ainda está para vir, por muito que seja difícil imaginar a situação pior do que está. Fomos lá uma vez e nem queríamos acreditar no que víamos. Se há alguém que, com toda a propriedade, pode afirmar que não é deste mundo o seu reino, não há dúvida que esse alguém é Robert Mugabe…
À primeira vista, está tudo igual, ou quase: as estradas e as infraestruturas em geral continuam a parecer muito melhores do que em Moçambique, as enormes propriedades agrícolas à beira da estrada continuam a parecer – e são, com certeza – muito mais desenvolvidas do que as farmas moçambicanas. Bom, tinha-nos chocado um bocado termos de pagar, entre dois adultos, três crianças e um carro, 125 dólares só para entrar no país. Mas, por muito que tivéssemos ouvido dizer vezes sem conta que o país estava muito mal, só nos apercebemos de como o país estava quando chegámos ao fim da tarde ao nosso destino, a pequena cidade de Chinhoyi, uns duzentos quilómetros a oeste de Harare.
A primeira e maior surpresa foi que, como estrangeiros não residentes, não podíamos pagar o hotel com dólares zimbabueanos – tinha de ser em divisas. Agora, ao câmbio oficial, que é, claro está, o único que se pode usar nesta situação, o preço de um quarto chungoso, bastante chungoso até, era de 385 dólares americanos, isto é, para quem não está habituado a dólares, cerca de 295 euros! De longe, o quarto de hotel mais caro que pagámos, tanto eu como a Karen, em toda a nossa vida. E ficámos praticamente sem um tostão. Era preciso trocar com urgência, no mercado negro, o pouco dinheiro que nos restava, para ver se conseguíamos comer qualquer coisa, mas à noite, numa cidade pequena, sem conhecer ninguém, não sabíamos o que fazer. Acabou por ser uma senhora qualquer que passou na rua que nos vendeu os dólares zimbabuenos a metade do preço oficial. E assim, os pratinhos de esparguete que comemos ao jantar, mais a garrafinha de litro e meio de água para os cinco, ficaram-nos em cerca de 17 euros em vez dos 34 que seriam ao câmbio oficial.
Descobrimos no dia seguinte que, ao câmbio real, o dólar zimbabueano é entre 10 e 15 vezes mais barato do que ao câmbio oficial. Quer dizer, se nós fôssemos residentes no Zimbábuè e pudéssemos pagar em zim dollars, o preço real da nossa dormida teria sido entre 20 e 30 euros, o que já era mais aceitável… Mesmo assim, ao preço real, a vida é impossível para os zimbabueanos. Segundo eles dizem, o salário mínimo dá para uma família comer um dia. Mas também, que interessa isso num país onde há mais de 80% de desempregados? A inflação, oficialmente, foi de 1600 por cento no ano passado (a mais alta do mundo, claro está), mas há produtos que duplicam de preço de semana em semana. Os restaurantes já não têm preços fixos, porque o preço dos pratos aumenta de refeição para refeição. Harare é, segundo o Economist, a cidade mais cara do mundo, embora seja a capital de um dos países mais pobres!
Evidentemente, o turismo desapareceu, como vão desaparecendo os zimbabueanos que têm alguma possibilidade de sair do reino de Mugabe para fora. E Mugabe e os seus generais mantêm-se firmes no poleiro – com boicote internacional ou sem ele, com um país a apodrecer-lhes nas mãos, com a indústria e a agricultura, que eram poderosas na região, a esboroarem-se completamente, o que é que isso lhes interessa? Eles estão bem, porque o reino deles é dum mundo diferente do dos desgraçados dos seus compatriotas que não sabem o que fazer à vida. É dum mundo só deles…
Meses depois, uma descrição atualizada da situação:
O país tornou-se surrealista: o valor do dólar zimbabueano no mercado negro era, até 6 de Setembro [de 2007], mil (mil!) vezes mais baixo do que no mercado oficial: no banco um dólar americano valia 250 dólares zimbabueanos; no mercado negro valia 250 000. Depois, o dólar zimbabueano foi repentinamente desvalorizado de tal forma que um dólar americano passou a valer 30.000, mas, como esse pseudoajuste fez disparar para mais do dobro o dólar americano no mercado negro, agora o valor oficial do dólar americano é só (!) 20 vezes menos do que o câmbio real. Conseguem imaginar uma coisa assim?
Desta última vez, vimos já as lojas e as bombas de gasolina todas vazias. Para quando a rutura? «Bom, isso em África, não existe, não é?», dizia-nos alguém. «A situação pode piorar sempre mais, que a malta vai-se sempre desenrascando – cada vez pior, é certo, mas sem chegar a nada que se possa chamar uma situação de rutura…» Pode ser que sim, pode ser que não.
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Nunca tive uma nota destas, mas tive algumas com muit000000000s zeros (Imagem: Wikimedia Commons) |
Imaginem o que é fazer 800 quilómetros de estrada sem ver ninguém na rua, sem ver uma loja aberta. Meia dúzia de pessoas em Harare, uma outra loja, mas literalmente nada no resto do caminho. Um cenário mesmo daqueles filmes de ficção científica em cenários pós-apocalípticos. Ninguém. Faz medo. Faz mesmo medo.
Em finais de 2008, veio visitar-nos a Chimoio um amigo inglês, que aproveitou para dar um saltinho a Harare, para visitar uns amigos que não via há muito tempo, uma senhora inglesa casada com um senhor zimbabueano. A senhora era professora universitária e o senhor, ex-combatente do
ZANU, ocupava-se da farma onde viviam. O meu amigo veio de lá descorçoado. O salário mensal de um professor universitário, disse-me ele, dava para comprar três quilos de arroz.
«E a cabeça daquele homem», indignava-se ele, «ele não compreende, não compreende.»
Nas discussões que tinha tido com o amigo, com muito cuidado para não ofender o hóspede, o ex-combatente insistia que era óbvio que Mugabe não podia entregar o poder à oposição:
«Eles não fizeram nada, como é vão agora mandar no país? Fomos nós que acabámos com a Rodésia, não eles. Fomos nós que fizemos o Zimbábuè, vamos agora entregar-lhes o país?»
Costumo usar ironicamente a expressão «A revolução a quem a trabalha!» para designar esta atitude, que não existe apenas no Zimbábuè, infelizmente.
Depois de
um processo eleitoral longo e violento e de
muitas pressões e negociações, acabou o ZANU por ter mesmo de partilhar o poder com a oposição, cujo dirigente foi nomeado primeiro-ministro em fevereiro de 2009; mas não parece ter havido mudanças políticas significativas.
A vida começou a melhorar um bocadinho, quando, em janeiro de 2009, começaram as divisas a circular oficialmente e o dólar zimbabueano desapareceu. Pagava-se tudo em dólares americanos ou randes, às vezes pagava-se numa moeda e recebia-se o troco na outra. Como estará agora aquele país?
Li no outro dia que Mugabe quer indemnizar os agricultores expropriados.
O que há de uma pessoa pensar de uma coisa assim?
Quero notar que
houve quem não visse apenas resultados negativos do processo de “redistribuição” de terra. Não sei o suficiente do assunto para tomar posição sobre esta análise, como também não tenho conhecimentos para tentar fazer aqui uma análise política rigorosa de causas e motivações desse processo e da crise. Se não sabem nada sobre o Zimbábuè, também não quero que fiquem com a ideia que a violência do regime de Mugabe se abateu apenas sobre os poderosos farmeiros brancos, ou, como muitas vezes se salienta, sobre o grupo étnico ndebele. Nada disso.
Foram vítimas de repressão todos os que se lhe opunham.
Aquilo que testemunhei foi um país em ruínas e pessoas na miséria, sobretudo as mais pobres. A ideia das imagens bíblicas na letra da canção veio-me do muito contacto que tive com imigrantes zimbueanos em Chimoio – não farmeiros brancos, que, esses, não os conheci, mas gente de todas as classes que tinha fugido a uma vida que já não se aguentava. Fiquei com a ideia – que já tinha, aliás, das minhas viagens ao Zimbábuè – de que é um país muito cristão. De que é gente habituada a sofrer, também não tenho dúvida nenhuma: «Babilónia, cativeiro, sempre assim foi toda a vida.»
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[1] Mas, claro, um bocadinho de publicidade é um efeito secundário positivo...
[2] Enquanto não escrevo um texto que tenho pensado sobre algumas propostas ortográficas que acho mal o AO90 não ter integrado, reitero aqui este desvio: uso a norma consagrada por muitos topónimos moçambicanos, que é a que para mim faz mais sentido (ver
aqui)
[3] A letra que Flak canta é a seguinte:
Nunca a gente desespera, / Chora só, e ri e espera / Que nos pague quem nos deve / Que a vida nos seja leve / E a morte suave e breve (os três versos itálico são substituídos na segunda parte da cantiga por apenas dois: Que a dor que a gente sente / Seja algum dia mais leve) / E que haja quem que nos leve/ A uma terra prometida, / Babilónia, cativeiro, / Sempre assim foi toda a vida! / Vi escrito a fogo na água: / Vê a mágoa à tua volta! / Que ela seja mais que mágoa, / Que seja fé e revolta. / Vi escrito a fogo na terra: / Olha bem a teu redor, / Faz por ti a tua guerra, / Nunca por nenhum Senhor.
Que se modifiquem versos, se altere a estrutura do texto e se omitam partes (uma quadra, neste caso) ou mesmo que se acrescentem versos ou estrofes não é anómalo quando se compõem canções a partir de letras já escritas. Reconhece-se obviamente o esquema – não será o mais comum, mas também
não é tão raro como isso – em que uma estrofe quase-refrão se altera um
pouco de cada vez que aparece. É também óbvio que, assentando o esquema
destes “refrães” nos quatro elementos clássicos, escolhi repetir sempre o
fogo, relacionando-o, de cada vez, com um dos outros elementos, a água,
a terra e o ar. Porque decidi destacar o fogo, não sei, já não me
lembro. Provavelmente, a ideia que me surgiu para o refrão (e para a
letra no seu todo) foi «Vi escrito a fogo…», ainda antes de decidir usar
os quatro elementos.
[4] Todos os excertos de textos meus que aqui incluo são de cartas coletivas, um boletim informativo sobre a minha vida, se se pode dizer assim, que, em certos períodos da minha vida, enviava aos amigos com alguma regularidade, primeiro em papel e depois por correio eletrónico. Chamaram-se
Crónicas do Alto Molócué,
Crónicas de Camargo,
Crónicas de Copenhaga e
Crónicas de Chimoio. Cada carta incluía, além do texto igual para toda a gente, uma parte pessoal.
[5] Foram apontadas várias causas para o fracasso do “milagre de Manica”: a insuficiência do investimento inicial, porque muitos farmeiros zimbabueanos estavam completamente descapitalizados; o peso da legislação moçambicana; a falta de apoios e infraestruturas a que os zimbabueanos estavam habituados, desde combustível subsidiado (como em muitos países, aliás) a estradas e a controlo fitossanitário; a falta de pesquisa sobre espécies adaptadas ao clima e ao solo locais; e o facto de os zimbabueanos não terem contactos entre a elite moçambicana nem falarem português – nem terem aceitado que isso é mesmo necessário em Moçambique…