Vivemos numa época em que prevalece um perspetiva de civilidade igualitarista, não só quanto à forma como se tratam os outros no espaço público, mas, mais essencialmente, a como os concebemos e os representamos no nosso imaginário; e penso que é precisamente assim que deve ser, que é precisamente essa perspetiva que deve prevalecer. Segundo a moral que defendo, ninguém tem o direito de criticar nos outros características ou crenças – o que se pode discutir e criticar são ações – ações controladas, isto é, as que se possa escolher não realizar. Continua a haver uma característica, porém, pela qual ninguém parece ter pejo em criticar os outros: a estupidez. Ou burrice, ou chamem-lhe como quiserem – não ser muito inteligente, enfim.
Pode ser-se olhado de lado por acusar alguém de ser gordo, coxo, velho ou suábio, mas ninguém se impressiona se se disser, sobretudo se for verdade, que uma pessoa é mesmo estúpida – a não ser a pessoa visada, claro, e as que estiverem do seu lado. É claro, eu sei que, normalmente, quando se diz de alguém que é estúpido não se quer mesmo dizer que é estúpido; é uma expressão apenas, uma maneira de exprimir desacordo de forma veemente. Mas é o mesmo que acontece com outras palavras que se usam para ofender, não é verdade?, e isso não as torna aceitáveis. Devo dizer, porém, que essa utilização do termo e dos seus sinónimos não me preocupa. O problema, para mim, é que as pessoas realmente sentem e pensam que a burrice é uma característica criticável*. Oiço, mesmo de quem está atento a muitas discriminações, coisas como “Se há coisa que não suporto é gente estúpida”. Porque será?
Conhecem a tristeza profunda – ou o horror, mesmo – de uma pessoa que ouve as outras a seu lado delirarem à gargalhada sobre as incapacidades da gente burra que conhecem e tenta desesperadamente esconder que é assim como essa gente com quem gozam, que é dela que falam?
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* Como a cobardia, aliás, de que falei aqui uma vez, num texto que este vem agora comple(men)tar.
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 2 dias
3 comentários:
Concordo contigo quando dizes que a estupidez não é criticáveis, quando se trata de uma limitação de raciocínio, e, portanto uma caraterística da qual não se pode fugir, digamos assim. Alguém cuja capacidade mental é, pelos mais variados motivos, inferior á média. Por exemplo: se calhar a ti não te acontece, mas é frequente receberem-se ordens cretinas de pessoas que se têm a si próprias na mais alta conta, e, pior que isso, detêm o poder suficiente para que as mesmas tenham de ser cumpridas. A este tipo de estupidez também sou alérgica, sendo que isto é apenas um exemplo, dos muitos que se podem dar de cretinice. Outro:Uma vez atropelei um cão que andava a ser passeado pelo dono, no passeio, sem trela, e que resolveu atravessar a estrada a correr. Veio logo uma lambisgoía que me disse:a senhora é responsável! _Eu, minha senhora? O dono é que seria rsponsável, se eu tivesse um acidente!_ Estupidez? Cretinice? Ignorância? Mas porque opinam sobre tudo sem saber de nada? É desta estupidez que falo, e não de outro tipo de limitações, que, aliás, duma forma ou doutra,
todos temos. Um abraço
As minhas desculpas pelo português macarrónico.
Obrigado, Edite, de te dares ao trabalho de comentares os meus textos. Fico sempre muito contente por haver quem queira conversar comigo. A sério. O português macarrónico desculpa-se completamente nestas circunstância. Nem reparo nisso.
Que se critiquem ações estúpidas é não só aceitável como desejável. Mas toda a gente faz muitas coisas estúpidas - mesmo as pessoas muitos inteligentes. Que se use "estúpido" para criticar aquilo de que se discorda, também aceito sem problema. Nos casos que referes, a estupidez de que falas é atributo de ações e não de pessoas, e nem sei se é mesmo de estupidez que se trata, embora sim, possa com certeza designar-se como estupidez no uso mais corrente da palavra.
No primeiro caso, não posso avaliar a qualidade das ordens, mas quero sublinhar que discordarmos de uma coisa não faz dela estúpida. É, aliás, difícil avaliar o grau de inteligência de ordens ou medidas de que discordamos ou não gostamos. Um exemplo simples e atual: a mim, a maior parte das críticas ao AO90 não me parecem muito inteligentes, mas tenho a certeza de que, para os antiacordistas, é a minha crítica aos ataques deles que é estúpida. De facto, estupidez é mau conceito para aplicar quando há conflitos de opiniões ou interesses - em que participam, normalmente, pessoas com o mesmo grau de inteligência :)
No segundo caso, parece ser uma reação emotiva mais que outra coisa qualquer. A emotividade é, muitas vezes, uma reação não muito inteligente, embora duvide que, no seu todo, se possa considerar a emotividade como pouco inteligente. Não sei.
O que eu quero sublinhar com este texto é que vejo as pessoas considerarem que há pessoas menos inteligentes que elas e terem uma reação discriminatória ao que consideram falta de inteligência. Se muitas vezes a flata de inteligência é só uma impressão, às vezes pode mesmo ser um facto. E a vida das pessoas pouco inteligentes, que é, posso garantir-te, já naturalmente mais complicada que a das outras pessoas, não precisa nada dessa complicação extra.
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