Há muito tempo que existe a proposta de que as nossas pretensas decisões sejam de facto posteriores às ações a que dizem respeito. São célebres as experiências de Benjamin Libet, embora não haja nenhum consenso sobre que conclusões delas se podem tirar. Mas a experiência de Llinás vem dar uma nova dimensão à questão: mesmo a perfeita consciência de que uma determinada decisão não está a ser tomada por mim na altura, mas foi antes previamente planeada – por mim ou outra pessoa –, não impede que, se quando a ponho em prática, eu sinta forçosamente que foi aquilo que quis fazer. Traduzo eu, de uma conversa entre Rodolfo Llinás e Roger Bingham num filme da TSN em 2007 (transcrição disponível). Llinás não é muito eloquente, pelo menos em inglês, mas creio que, apesar do registo hesitante e, por vezes, confuso, se percebe bem a descrição desta fascinante experiência:
Llinás: ... O que eu quero eu dizer com “mente”? Quero dizer “estado interno do cérebro”. Definível. Há quem me diga que não se pode definir a mente. E a resposta é: que disparate! Agora, se disser “livre-arbítrio” – como se define o livre-arbítrio? Mas posso dizer-lhe que defino livre-arbítrio como as atividades que acontecem que o cérebro sabe que estão prestes a acontecer. (...) Entendo que o livre-arbítrio não existe; entendo que a única maneira racional de nos relacionarmos uns com os outros é assumir que existe, embora no fundo saibamos que não é assim. Agora, a pergunta que você pode fazer-me é: “Como sabe?” E a resposta é que, bem, eu fiz uma experiência muito bonita comigo mesmo. Foi de facto extraordinário.
Há um instrumento usado em neurologia chamado estimulador magnético (...). É um instrumento que tem uma bobina que se põe junto à cabeça e onde passa corrente de forma a gerar um grande campo magnético que ativa diretamente o cérebro, sem necessidade de se abrir nada. Portanto, se se pega numa bobina dessas e se a põe junto à cabeça, pode gerar-se um movimento. (…) Então, pode estimular-se diretamente diversas partes do cérebro e ter uma sensação do que acontece quando ativamos o cérebro, sem, entre aspas, sermos nós a fazê-lo. (…) Então, decidi pô-la no alto da cabeça, onde considero ser o córtex motor, e estimulá-lo, e encontrar um sítio bom que fizesse o meu pé direito mexer-se para dentro. E zás, não foi difícil. Fizemos isso várias vezes e tive de dizer ao meu colega: “Sei anatomia, sei fisiologia, posso dizer que estou a fazer batota. Dê o estímulo e eu mexo, sinto que estou a mexê-lo”. E ele disse: “Bem, sabe, não há maneira nenhuma de saber mesmo.” Eu disse: “Eu digo-lhe como sei. Eu sinto, mas dê o estímulo e eu vou mexer o pé para fora. Vou fazer isso.” Então, dou o estímulo e o pé mexe-se para dentro outra vez. E eu disse: “Então, que se passa?” E disse: “Mudei de ideias”. E repeti. Repeti meia dúzia de vezes.
Bingham: E mexeu-se sempre para dentro?
Llinás: Sempre. E eu então disse: “Deus meu, não consigo distinguir a diferença entre a atividade exterior e o que considero ser um movimento voluntário. Se sei que vai acontecer, penso que o fiz (…). Agora entendo essa coisa do livre-arbítrio e da volição. Volição é o que está a acontecer noutro lugar no cérebro, de que eu sei e, portanto, decido que fui eu que fiz. (…)
Bingham: (…) Então, está a dizer que, como há essa ligação direta entre o estímulo e o pé mexer-se para dentro e que isso acontece sempre, mesmo que queira mexê-lo para fora, ele continua a mexer-se para dentro… Está a dizer que, ainda assim, pensou que a sua sensação era tê-lo mexido para fora?
Llinás: Não! A sensação foi outra: fui eu que fiz aquilo.
Bingham: Embora estivesse a mexer-se para dentro.
Llinás: Mexeu-se para dentro e a sensação é: “Bom, mexi-o para dentro”. Não podia, o meu sistema, não podia ter uma sensação diferente da que teria se o tivesse mexido para dentro. (…) «Sentiu que havia algum problema?» «Não, não senti que houvesse problema nenhum. Mexi-o para dentro.» «Mas pensou, decidiu, que ia movê-lo para fora!» «Sim, mas mexi-o para dentro.» E depois, uma pessoa pensa e dá-se conta de que está a dizer isso depois de o ter mexido para dentro, porque ele se mexeu para dentro e sabia que isso ia acontecer, portanto apropria-se disso. Por outras palavras, o livre arbítrio é saber o que vai fazer, é só isso. Não forçosamente desejá-lo. Lamento imenso.
4 comentários:
Essa experiência parece interessante, em tempos comprei o livro do Daniel C.Dennett "Freedom Evolves" que não me convenceu totalmente e que não recomendo, nem deixo de recomendar, apenas refiro. Mas é uma questão central da existência humana, de vez em quando volto a ela, por esta altura ao fazer busca de (livre arbítrio) no meu blogue apareceram-me 6 posts (http://imagenscomtexto.blogspot.pt/search?q=livre+arb%C3%ADtrio) que se calhar
Tirando a real possibilidade de uma estimulação externa( no caso a tal da bobina) realmente influenciar em um cérebro, o conceito é fantástico.Texto maravilhoso,aliás como todo o blog.
Muito obrigado pelos textos, José Júlio, que li com muito interesse, como sempre (já conhecia o post "Inumeracia", os outros não). Relativamente ao post "O stress não é de hoje", tenho um texto sobre "uma velha nota encontrada no sótão" em que defendo que "somos máquinas programadas para escolher". Estou agora a ler Douglas Hofstadter, precisamente, e, chegado à página 500 de Gödel, Escher, Bach, acho que começo finalmente a perceber... mais ou menos... onde ele quer chegar :)
Caro Dilamar, obrigado pelo comentário. Fiquei a conhecer o Blog do Dila, que passarei a acompanhar.
Enviar um comentário