Ele era um bom rapaz, trabalhador,Um operário leal cumprindo o bem.Vint'anos de ilusões brotando em florE uma terna afeição por sua mãe.Mas um dia fatal, os companheirosLevaram-no à taberna onde paravaA malta dos vadios e desordeiros,Dos quais um à guitarra assim cantava:Um fadinho a soluçarFaz de nós afugentarA ideia da própria morte;Mata a dor, mata a tristeza,O fado é bendita reza
Jacques Alfred Van Muyden (1918–1998): Três músicos romanos numa taberna, s. d. Dos desgraçados sem sorte,Tem tal dor e mágoa tanta,Quando canta uma gargantaDe quem vive amargurado,Que o refúgio preferidoP’ra quem viver doloridoEstá na doçura do fadoEsta triste canção foi mau agoiroQue a vida lhe viesse transtornarTomou gosto à taberna, o matadoiro,E em breve deixou de trabalhar (…)
Parecerá normal a equivalência que se estabelece neste «Fado maldito[1]» entre ser «um bom rapaz» e «cumprir o bem» e ser «trabalhador» e «um operário leal». O louvor — quando não o culto — do trabalho é transversal a quase todas as camadas e grupos sociais, e, pelo menos no mundo em que cresci, só nos estratos sociais mais baixas é que o louvor do trabalho convivia com a apologia da recusa de se deixar aprisionar no mercado laboral e tentar sobreviver doutra maneira, o mais das vezes dedicando-se a alguma atividade ilegal.
A questão dá pano para mangas. Mas, se não se pode —pelo menos na praça pública — aceitar o elogio do não fazer nada como modo de vida, que vergonha!, pode-se certamente aceitá-lo como tema humorístico — até porque o humor resulta, em geral, de uma perturbação na normalidade das coisas, não é verdade? E então, se há fados como o que cito acima, que fazem corresponder à perdição a vida de boémia e o não querer trabalhar, também há outros em que desfilam simpáticos mandriões que suscitam no ouvinte mais simpatia que reprovação.
Preguiça é a palavra que costuma definir este topos humorístico. Evidentemente, nestes fados, não há nunca uma tomada de posição política[2]: a recusa do trabalho é sempre apresentada como um (simpático) defeito de carácter. Um traço de personalidade, enfim. Pelo que nos canta Joaquim Cordeiro, em «Trabalho, vai-te embora[3]», a preguiça é até hereditária. Mas o mais curioso neste fado é que sugere que a profissão ideal para quem não quer fazer nada é a de ator — uma profissão, ainda assim, demasiado trabalhosa para um mandrião que se preze, como a personagem da canção.
Vejo pás e picaretasNos buracos da Avenida;E vejo a Rua das PretasCada vez mais encardida;Vejo a malta a protestar,Porque o Benfica perdeu;Vejo tudo a trabalhar,Quem não trabalha sou euTrabalho, vai-te embora,Ai de mim, estou tão cansado.Isto de ser calão já é meu fadoFicou escrito no vento este dilema:Nem que me levem para o cinemaP’ra ser galã dos mais catitas,Ser um bijou bonito e fazer fitas...Ai de mim que não consigo fazer coisas tão esquisitas!Oiço gritos, correrias,Quando aparece um emprego.Acordo todos os diasE ainda não fui ao prego.Já dizia a minha mãe:«Filho, não te dê cuidado,Que o teu paizinho tambémTinha nascido cansado».
Outro fado de Joaquim Cordeiro sobre este tema da preguiça é «Bendito seja o descanso[4]». Trata-se aqui de uma anedota em verso, com um desfecho bem achado. Acho curioso que o Chico Malhado ponha a questão do trabalho em termos de gosto. Quase se pode descortinar nos dois patuscos mandriões uma postura aristocrática.
De corpinho estiraçado,À sombra de uma figueira,Estava o Chico MalhadoMais o Baltazar PintadoDois campeões da lazeira,O Malhado a bocejar,Passando as mãos pelo rosto.Perguntou. «Ó Baltazar,Quem gosta de trabalhar,Não achas que tem mau gosto?»«Camarada mandrião»,Diz-lhe o outro com ripanço,«Tens muita e muita razão,Sou da tua opinião,Bendito seja o descanso!!...Trago um projecto na menteCarrega-se unicamenteNum botão e, de repente,Aparece tudo feito.»Diz o Malhado: «Isso, amigo,É uma grande invenção,Mas escuta o que te digo:Não deves contar comigoP'ra carregar no botão!»
Um outro fado que é também uma anedota versificada sobre o mesmo tema é «Os Preguiçosos[5]». Na minha opinião, o fado é notável pela frase «com dotes colossais p’ra descansar», um verdadeiro achado retórico, mas o desfecho da história assenta num jogo de palavras simples e conhecido.
Com dotes colossais p’ra descansar,Se um não gostava nada do trabalho,O outro tinha raiva em trabalhar.E assim andavam neste rodopio,Dois amigos leais da boa vidaE, p’ra não aturarem senhorio,Pernoitavam nos bancos na Avenida.Mas certa noite em que pernoitavam,Um polícia de giro ali passou.Por fim, enquanto os dois se espreguiçavam,O guarda ao Barnabé assim falou:«Diga-me qual a sua profissãoE responda-me já, sem fantasia!»«Pois saiba que trabalho, pois então,Na firma Boavida & Companhia.»«E você?», diz o guarda ao Zé Ramalho,«Diga-me sem mentir, responda já!»«Pois bem, fique sabendo que trabalhoE estou na mesma casa onde este está!»
A expressão boa vida é a chave deste meu breve devaneio. Geralmente, a anteposição do adjetivo ao nome fá-lo perder a sua função qualificativa: um grande homem não é um homem que é grande e por aí adiante. Não vou entrar aqui em pormenores — mais por preguiça que por outra razão qualquer. Uma vida boa pode significar uma vida sem problemas de saúde ou de dinheiro, uma vida interessante, folgada, com boas condições… de vida, precisamente, uma vida… boa, enfim; e uma vida má é o contrário disso: doença, miséria, problemas de toda a sorte. Já a boa vida não é o contrário da má vida. Muitas vezes, as expressões são quase sinónimas. A má vida é a vida da personagem decaída do primeiro fado deste texto. Mas essa má vida é, afinal — e pelo menos no que diz respeito a não trabalhar – a boa vida. Talvez não seja esse o caso do protagonista do «Fado maldito», não sei, mas, com alguma sorte, esta (má/boa) vida pode ser até ser uma vida boa.
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[1] Raúl Ferrão, sobre versos de Pedro Bandeira e Álvaro Leal. Mais aqui.
[2] Quando digo «tomada de posição política », estou a pensar no célebre «direito à preguiça«, defendido por Paul Lafargue, na obra com esse nome de 1880, em que se defende que o natural da espécie humana é a procura do prazer e não o amor ao trabalho, que ele considera «um dogma desastroso» e uma «estranha loucura», quando vindo da classe trabalhadora, e que é, segundo ele, «a causa de toda a degenerescência intelectual e de toda a deformação orgânica».
Ora, preguiça é uma palavra curiosa, porque não define, em princípio, a recusa de um trabalho formal, apenas o excesso de inércia e de falta de iniciativa. Na realidade, muitas das atividades dos «malandros« que vivem fora do trabalho formal não se prestam em absoluto para preguiçosos, mas isso é outra história.
Note-se, a propósito, que a expressão «mulheres de vida fácil» que antigamente se usava para se designar as trabalhadoras sexuais — e que remete também para a «boa vida» que se discute neste texto — dá-nos conta de que o trabalho sexual estava também incluído no «não (querer) trabalhar».
[3] Uma versão do célebre “Saudade, vai-te embora”, de Júlio de Sousa. Desconheço o autor da letra da versão humorística.
[4] Com versos de Armando Coutinho Dias e música do «Fado Patolas» (de Alcídia Rodrigues, ao que consigo descobrir).
[5] Com letra de Aureliano Lima da Silva e música do «Fado Margaridas», dos irmãos Casimiro e Miguel Ramos
2 comentários:
um primor este exercício de apologia á vida boa
Obrigado, Unha Negra, quanta bondade! Mas podia estar melhor, não fora a preguiça...
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