30/01/22

Silêncio

 

No meu conto «Silêncio» (que apresentei aqui), um músico do sul da Índia chamado Venmani Tirunal Patire conclui que a música de Deus, que ele tinha procurado em vão em várias formas de música religiosa, só pode, afinal, ser o silêncio, porque «[a] única matriz absoluta é uma matriz vazia, a que tudo pode conter». Decidido a «ouvir» o silêncio, Venmani Tirunal Patire suicida-se por inanição numa redoma de pedra o mais insonorizada possível, construída com ele lá dentro.

E então aqui fica um spoiler (mas não faz mal, porque vocês nunca hão de ler os meus contos…) – a história termina assim:

Mais versado nas ciências humanas do que nas ciências da natureza, Venmani Tirunal Patire não sabia que os processos mentais morrem antes das outras funções vitais. Não se consegue, por isso, deixar de ouvir o corpo no minuto ínfimo e extático que antecede a morte. E Venmani Tirunal Patire, tenho a certeza, morreu sem nunca ter ouvido a matriz sonora de Tudo – o mais perfeito de todos os sons, a sinfonia de todas as sinfonias, a música de Deus.
***

No outro dia, encontrei uma entrevista que o compositor e teórico da música John Cage deu em 1963 a Jack Hirschman na estação de rádio KPFK (podem descarregá-la aqui). Nessa entrevista, Cage conta como descobriu que o silêncio não existe, numa câmara anecoica da Universidade de Harvard, um espaço que é, em princípio, completamente insonorizado — como a redoma de Venmani Tirunal Patire (traduzo eu):

Nessa câmara, embora esperasse não ouvir nada, ouvi dois sons. Por isso, quando saí, perguntei ao engenheiro responsável que sons eram aqueles. Pensei que a câmara não devia estar a funcionar bem. E ele disse: «Descreva-os». E eu descrevi: um era agudo e o outro era grave. E ele disse: «Bem, o agudo era o seu sistema nervoso em funcionamento; e o grave era a circulação do seu sangue». Percebi então que, sem querer, eu produzia constantemente dois sons. Portanto, mesmo permanecendo em silêncio, eu era, em certas circunstâncias, musical.



29/01/22

Vista de uma janela

1. 

Na sua recensão do álbum Music for Nine Postcards (1982), de Hiroshi Yoshimura (revista Pitchfork, 15.11.2017), diz Thea Ballard:

Associa-se muitas vezes a música ambiente a uma espécie de interioridade psíquica, mas Yoshimura (…) fez música inspirada em lugares físicos e concebida para existir nesses espaços: para estações de comboio, desfiles de moda, etc.
Em 1982, Music for Nine Postcards foi o primeiro lançamento da série Wave Notation, de Satoshi Ashikawa; Ashikawa e Yoshimura definiram e defenderam aquilo a que chamaram «música ambiental», música que, segundo Ashikawa, «muda o caráter e o significado do espaço, das coisas e das pessoas». «A música», defende ele, «não se destina apenas a ser algo que existe sozinho.»

Por invulgar que possa parecer, a ideia aceita-se com naturalidade: em vez de exprimir uma maneira de sentir o mundo (um mundo interior, digamos assim) ou de constituir ela própria um mundo à parte, sem relação direta com nenhuma realidade, porque não há de a música fazer parte de um pedaço de mundo — imiscuir‑se no meio, ser ambiente?

2. 

Segundo Thea Ballard, o álbum «inspirou-se numa série de vistas de janelas». Não consigo, noutras recensões do álbum, confirmar a fenestral inspiração, mas há no álbum um tema chamado «View from my window»:
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Vista da janela do meu escritório
Publiquei uma vez no Facebook uma foto da janela do meu escritório e pedi aos meus amigos que publicassem nos comentários uma foto de uma das suas janelas. 

Não houve muita gente disposta a colaborar, mas ofereceram-me, ainda assim, três bonitas janelas.

Tamara Barile mandou‑me uma janela de S. Paulo.

Teresa Silva mandou-me uma janela do Dafundo/Cruz Quebrada.

Fernando Ramalho (Berlau) mandou-me uma janela sonora de Verderena, Barreiro, incluída numa compilação de janelas sonoras.

Maria Serrano mandou-me uma janela de Montreuil.

E J. J. Amarante Mandou-me uma janela dos Olivais, e eplica que a «casa amarela com uma pequena torre encimada por um telhado de 4 águas é a Bedeteca Municipal, adjacente à Quinta Pedagógica, da qual se vê o arvoredo e onde as crianças podem fazer pão, ver vários vegetais a sair da terra em vez de nas prateleiras dos supermercados e animais de quinta, ovelhas, vacas, cavalos, porcos, aves de capoeira, etc. A Bedeteca e a Quinta Pedagógica estão na antiga Quinta do Contador-Mor onde alegadamente o Eça de Queiroz escreveu Os Maias, no que seria um local de vilegiatura e agora é o Bairro dos Olivais.»

Recolher vistas de janelas não é uma coisa muito original. Há um grupo no Facebook, um site que deu dois livros e um site de repousantes filmes de 10 minutos. Mas não faz mal. Não têm uma vista de uma janela que queiram aqui pôr, por baixo das quatro iniciais? Se sim, mandem-ma por e-mail.

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São Paulo

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Dafundo/Cruz Quebrada

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Montreuil





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Olivais