No meu conto «Silêncio» (que apresentei aqui), um músico do sul da Índia chamado Venmani Tirunal Patire conclui que a música de Deus, que ele tinha procurado em vão em várias formas de música religiosa, só pode, afinal, ser o silêncio, porque «[a] única matriz absoluta é uma matriz vazia, a que tudo pode conter». Decidido a «ouvir» o silêncio, Venmani Tirunal Patire suicida-se por inanição numa redoma de pedra o mais insonorizada possível, construída com ele lá dentro.
E então aqui fica um spoiler (mas não faz mal, porque vocês nunca hão de ler os meus contos…) – a história termina assim:
Mais versado nas ciências humanas do que nas ciências da natureza, Venmani Tirunal Patire não sabia que os processos mentais morrem antes das outras funções vitais. Não se consegue, por isso, deixar de ouvir o corpo no minuto ínfimo e extático que antecede a morte. E Venmani Tirunal Patire, tenho a certeza, morreu sem nunca ter ouvido a matriz sonora de Tudo – o mais perfeito de todos os sons, a sinfonia de todas as sinfonias, a música de Deus.
No outro dia, encontrei uma entrevista que o compositor e teórico da música John Cage deu em 1963 a Jack Hirschman na estação de rádio KPFK (podem descarregá-la aqui). Nessa entrevista, Cage conta como descobriu que o silêncio não existe, numa câmara anecoica da Universidade de Harvard, um espaço que é, em princípio, completamente insonorizado — como a redoma de Venmani Tirunal Patire (traduzo eu):
Nessa câmara, embora esperasse não ouvir nada, ouvi dois sons. Por isso, quando saí, perguntei ao engenheiro responsável que sons eram aqueles. Pensei que a câmara não devia estar a funcionar bem. E ele disse: «Descreva-os». E eu descrevi: um era agudo e o outro era grave. E ele disse: «Bem, o agudo era o seu sistema nervoso em funcionamento; e o grave era a circulação do seu sangue». Percebi então que, sem querer, eu produzia constantemente dois sons. Portanto, mesmo permanecendo em silêncio, eu era, em certas circunstâncias, musical.