Whether 'tis nobler in the mind to suffer (W. S., 1601) |
Este texto é uma versão revista de um texto originalmente publicado aqui a 15/12/10, que deixou de me agradar e que decidi que precisava de ser reescrito. Tentei reescrevê-lo sem usar muitos termos técnicos, mas, quando se fala de língua, nem sempre é possível deixar de usar alguns termos gramaticais e/ou linguísticos — que eu creio, aliás, que a maior parte das pessoas compreende. Também não levo muito longe o rigor linguístico, porque isso não é relevante neste texto.
O que significa ser? Talvez isto vos surpreenda, mas há línguas em que não existe um verbo que corresponda diretamente ao nosso ser. E há outras em que, embora existindo um verbo semelhante ao nosso ser, ele é dispensável em certos tipos de frases. De facto, e no que toca apenas ao significado, o verbo ser às vezes não serve para grande coisa. Por exemplo, se quero dizer «Eu sou português» e dispensar o sou, e disser «Eu português», não deito fora nenhum bocado de significado: toda a gente compreende exatamente o que quero dizer e compreende-o como sendo «Eu sou português», precisamente. O que eu deito fora com essa construção é antes a boa formação da frase em português, que é uma coisa diferente. Em português, essa frase exige um verbo e «Eu português», por muito que se perceba, não é uma frase da língua portuguesa. Nenhuma pessoa de língua portuguesa diz uma coisa assim. Há línguas, porém (como, por exemplo, o russo), em que a omissão de verbo que corresponde a ser é gramatical e omiti-lo é uma maneira normal de construir a frase.Já o mesmo não acontece na frase «Ela tinha sido professora, quando a conheci», porque, sem o tempo verbal expresso pela forma verbo ser, não se distingue esta frase de, por exemplo, «Ela era professora, quando a conheci», que tem um significado muito diferente. Temos aqui, então, um importante significado de verbo ser e dos verbos do mesmo tipo, chamados cópulas ou verbos copulativos: carregar marcas de tempo, modo e outras categorias da língua, por muito que não tenham um significado específico eles próprios, ou sejam, por muito que não contribuam, por si, para dizer alguma coisa de alguém ou de alguma coisa. Nos exemplos dados atrás, o que se diz de mim é <[ser] português> e o que se diz dela é <[ser] professora>. Aliás, muitas vezes, as construções com o verbo ser correspondem diretamente a construções com outros verbos, que, esses, sim, dizem alguma coisa de alguma coisa ou alguém. Por exemplo, «ensino no Barreiro» ou «dou aulas no Barreiro» significam o mesmo e correspondem a «sou professor no Barreiro».
Podemos, então, ser tentados a pensar que, em termos de significado, e deixando de lado as marcas de tempo, modo, etc., o verbo ser é como um sinal de igual apenas (eu=professor; ele=soldado), mas é, de facto, uma maneira pouco rigorosa de o descrever, sobretudo porque x=y ⇒ y=x (xis igual a ípsilon implica ípsilon igual a xis) e é fácil constatar que a frase «o leão é um mamífero» não significa, como toda a gente sabe, que «um mamífero é o leão».Há apenas um tipo de frases, chamadas equativas, que têm a propriedade especial de se poder nelas trocar livremente o que fica dos dois lados do verbo ser sem alterar em nada o sentido: «a Ana é a professora de português da minha irmã» é o mesmo que «a professora de português da minha irmã é a Ana». Só nestas frases, em que ser liga duas expressões com artigo definido é que o verbo ser funciona como um sinal de igual. (A questão é de facto mais complicada, mas não a desenvolvo aqui.)
Nos outros casos, acho que, a ter de escolher um símbolo simples para representar o significado de base do verbo ser preferia uma flecha a um sinal de igual – o que se diz de alguma coisa ou de alguém tem uma direção (eu <= professor; ele <= soldado). Há um sujeito de quem se diz alguma coisa («eu», «ele», «a Ana»…) e um predicativo que diz (predica) alguma sobre o sujeito («professor», «soldado»…) Este predicativo pode ser um nome («professor»), um adjetivo («bom», «alto»…) ou um sintagma preposicional, ou seja, introduzido por uma preposição: «para brincadeiras», em «Ela não é para brincadeiras», ou «de madeira», em «A mesa é de madeira», por exemplo.Aparecem na frase anterior dois daqueles termos gramaticais, sujeito e predicativo, que não são fáceis de evitar num texto destes; e a palavra sujeito, que toda a gente conhece, merece aqui uma breve discussão. Não sei se alguma vez pensaram nisso, mas dizer-se, como me diziam os meus professores da primária, que é «quem pratica a ação» é uma definição de sujeito que funciona muito mal. Sujeito significa «submetido» («Estavam sujeitos às intempéries» ou «Eram sujeitos da coroa»); sujeito é o que subjaz, o está por baixo: de facto, na origem, sujeito significa «quem sofre a ação» e não «quem pratica a ação». Mas, claro, como as palavras da gramática deram muitas voltas até chegar ao seu uso atual e, por causa dessas muitas voltas, são muitas vezes enganosas, também se chama agora sujeito ao agente, aquele que faz alguma coisa. Digamos que há muitos tipos de sujeitos, aqueles que fazem coisas, aqueles a quem acontecem coisas, aqueles em que se passam coisas, aqueles a quem os outros fazem coisas, etc.
É bom ter isto em mente quando se fala do verbo ser, porque os sujeitos do verbo ser nunca fazem nada. Às vezes, até parece que fazem, mas não fazem. «Mas ser professor não é fazer alguma coisa?». Sem dúvida que dar aulas é uma atividade — meritória, importante e cansativa —, mas é preciso ver que uma professora é professora mesmo quando está a dormir. O verbo ser usa-se com um predicativo para atribuir qualidade ou características a alguém ou a alguma coisa, não para descrever ações. Quando se quer falar da atividade concreta de dar aulas, não se vai dizer «Ontem, fui professor das 8 às 13».Voltemos um pouco atrás: o sujeito e o seu predicativo não são, como vimos, intersubstituíveis. Além disso, têm casos gramaticais diferentes. Mais um termo gramatical: os nomes de uma frase estão sempre num caso qualquer, conforme a sua função na frase. Há línguas em que isto é óbvio, porque os nomes têm formas diferentes segundo a sua função. Por exemplo, em finlandês (ou em russo ou em muitas outras línguas), na frase «A Paula viu a Maria», Paula e Maria têm formas diferentes das que têm na frase «A Maria viu a Paula», porque no primeiro caso Paula é sujeito e Maria objeto e, no segundo, passa-se o inverso: a primeira frase é Paula näki Marian e a segunda é Maria näki Paulan. Em línguas como o português, os casos são menos visíveis, mas veem-se no pronome. O pronome que corresponde à pessoa que fala é eu quando é sujeito (caso nominativo), mas é me, quando é objeto direto ou indireto (casos acusativo ou dativo) e mim quando vem depois de uma preposição (caso oblíquo). Quando o sujeito é ela ou ele, porém, já há formas diferentes para o acusativo (o/a) e para o dativo (lhe), mas a forma oblíqua é igual à forma de sujeito (ele, ela): «Ela joga badminton», «Conheço-a bem», «Telefonei-lhe ontem» e «Falei com ela». Estes casos são, em português, iguais para todos os verbos. O sujeito é sempre nominativo, seja ele sujeito de que verbo for: o sujeito de «cortei a lenha» é eu, nesta frase que descreve uma ação minha, exatamente como é eu o sujeito de «apanhei muita chuva», em que eu não ajo absolutamente nada.
Porque é que isto aparece aqui no meio da conversa sobre o verbo ser? Porque as frases com o verbo ser têm algumas características especiais. O predicativo do sujeito é sempre acusativo, como os complementos diretos dos verbos que os têm: «ele é professor» porta-se, neste aspeto, como «ele varre a sala todos os dias», e isto vê-se precisamente no caso: «ele é professor e é-o já há muito tempo» e «ele varre a sala todos os dias e varre-a com uma grande minúcia». Tanto o o como o a destas frases são a forma acusativa do pronome da terceira pessoa do singular. Por isso é que até já houve quem propusesse considerar o verbo ser um verbo transitivo, como varrer, ver ou virar. Mas não funciona, porque este predicativo tem características diferentes dos complementos diretos: quando se transforma em pronome, fica sempre no masculino. Dizemos «a Ana é professora da minha irmã e é-o já há muito tempo» e não «*a Ana é professora da minha irmã e é-a já há muito tempo». Além disso, é com o acusativo que se faz a concordância do verbo, que, noutros tipos de frases, é forçosamente com o sujeito. Como toda a gente sabe, «a vida são dois dias e o Carnaval são três» e não «a vida é dois dias e o Carnaval é três» (por muito que os corretores ortográficos nos queiram às vezes para aí puxar). Como se explicam estas anomalias, não sei. Nem sei se alguém sabe, mas é bem possível que haja explicações que desconheço.