28/04/25

Os sons da língua, os sons da fala e os sons das letras

 

Acontece algumas vezes, na discussão de sistemas ortográficos, e, nomeadamente, na discussão da última reforma ortográfica do português, referir-se os conceitos de fonética e fonologia ou de elementos fonéticos e elementos fonológicos. Estes conceitos são desconhecidos da maior parte das pessoas, o que é perfeitamente natural, já que são conceitos técnicos, mas podem ser importantes em certas discussões. Por isso, decidi escrever um pequeno texto a descrevê-los muito sumariamente, para poder remeter para este texto quando/se, de futuro, o achar necessário. Já fiz isto antes: deixar aqui um texto a esclarecer conceitos que possa referir noutros textos do blogue. Note-se então: não é de modo nenhum de uma introdução à fonologia que aqui se trata, mas apenas de tentar esclarecer o que se quer dizer quando se diz que a escrita do português é, desde a reforma de 1911, uma escrita tendencialmente fonológica – e não fonética: uma escrita que tende a dar conta das unidades do sistema e não forçosamente dos sons pronunciados.

O que se segue é uma descrição muito simplificada e forçosamente pouco rigorosa de alguns conceitos, que eu creio que é suficiente para a discussão da ortografia e que espero que possa ser entendida por qualquer pessoa sem formação na área — embora não espere, claro, que uma pessoa que leia isto seja capaz de aplicar confortavelmente os conceitos no seu dia-a-dia. Os sons do português referidos neste texto são os do português europeu padrão. Quando falo de letras, refiro-as com maiúscula (A, B, C…); os sons efetivamente pronunciados são representados entre parênteses retos ([a], [b], [s]); as unidades do sistema (os fonemas, que podem corresponder a vários sons, como verão) são representadas entre barras oblíquas (/a/, /b/,/s/); e as pronúncias das palavras são apresentadas em negrito itálico. Para tudo isto, não recorro ao alfabético fonético, mas uso antes uma transcrição dos sons baseada na grafia do português ([j] para o primeiro som de giro, [ch] para o primeiro som de chácómudu para o som da palavra cómodo, etc.).

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Mas de que falo eu então quando falo de unidades do sistema – ou fonemas, como se costumam chamar? Dizemos que o som [f] de faca é um fonema, como o som [v] de vaca, porque estes sons distinguem estas palavras, entre muitas outras. Dizemos que os fonemas são unidades distintivas. Isto é uma definição simplificada, até porque [f] e [v] continuam a ser fonemas diferentes mesmo quando as palavras em que existem não têm nenhuma «parente próxima» que se distinga dela apenas por um som. Convém, pois, acrescentar que não se deve entender distintivas como «que distinguem de facto», mas antes como «que têm a capacidade de distinguir». 

Os sons [s] e [z] correspondem, portanto, a diferentes fonemas e distinguem, por exemplo, caçar de casar. Os sons [ch] e [j] também correspondem a fonemas diferentes, que distinguem, por exemplo, chá e , etc. Mas agora, vejamos qual é a relação entre letras e sons – e fonemas... Podemos constatar, por exemplo, que a letra S corresponde em português a quatro sons: 

[s], por exemplo em saber (em que tem o mesmo som que os dois SS em passo ou o Ç de loiça[1]); 

[z], por exemplo em casar (em que tem o mesmo som que o Z de zero ou fazer

[ch], por exemplo em rosto e nós (em que tem o mesmo som que o CH de chorar ou do X de lixo); e 

[j], por exemplo em pasmar (em que tem o mesmo som que o J de hoje ou do G de giro

Usamos então a mesma letra para representar quatro fonemas diferentes? Bom, nalguns casos usamos a mesma letra para representar fonemas diferentes: por exemplo, o S para o fonema /s/ em saber e para o fonema /z/ em casar. Mas, nalguns casos, os quatro possíveis sons do S são apenas variantes de uma mesma unidade. São os casos em que um som é determinado pelo som que se lhe segue e não se pode fugir a isso. O S de rosto, por muito que represente o mesmo som que o CH de chorar ou do X de lixo[1], não representa a mesma unidade do sistema que encontramos naquelas palavras, é apenas uma variante do fonema /s/, que se pronuncia forçosamente [ch] antes de uma consoante surda, isto é, uma consoante em que não vibram as cordas vocais, como [f], [k], [p], [t], [s]. Também o S de pasmar, por muito que se pronuncie [j], como o J de hoje ou o G de giro, não representa um fonema — o som é apenas uma variação obrigatória de /s/ antes de consoantes sonoras, isto é, as consoantes que se pronunciam com vibração das cordas vogais [b], [d], [g], [l], [m], [n], [r], [v], [z]. Então, neste caso, a letra S tem uma relação mais direta, se se pode dizer assim, com a unidade do sistema que representa em rosto e pasmar, que é a mesma, que os sons que correspondem a esses SS, que são diferentes entre si. Curioso é também o caso do S pronunciado [z]. Se, nalgumas situações, representa claramente um fonema /z/ distinto de /s/, como em casar, que se opõe a caçar, quando está no fim de uma palavra antes de outra palavra começada por vogal, é também só uma variante obrigatória de /s/, que naquela situação tem de ser pronunciado [z]: tens os olhos azuis diz-se tenzuzólhuzazuich [2]

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Um espetrograma: o som da palavra «é»
Não é só a letra S que pode representar vários sons que são variantes de um mesmo fonema. As letras B, D e G também correspondem, cada uma, a dois sons diferentes, mas a um único fonema. Isto é mais difícil de entender para a maioria dos falantes do português europeu, porque não têm consciência da diferença entre as duas maneiras de pronunciar cada uma destas letras, mas, se tomarem atenção (ou se virem um espetrograma do som pronunciado ou ouvirem uma gravação em velocidade mais lenta), verão que B, D e G entre vogais são pronunciados de forma mais «ligeira» (poupo-vos a descrição técnica, que é complicada, mas que podem encontrar aqui, aqui e aqui, respetivamente), de tal forma que podem corresponder a dois sons diferentes de outras línguas. É por não os considerarem sons diferentes que a grande maioria dos portugueses não distingue o D de day do TH de they em inglês padrão, embora eles correspondam respetivamente aos dois sons que se encontram na palavra dado em português falado normalmente. E digo falado normalmente, porque, se disserem as sílabas isoladas (por exemplo, para ver como as pronunciam, depois de lerem isto…), vão ter «dá… do», em que os dois DD têm o mesmo som. 

Agora, este fenómeno não se verifica só com consoantes. Também cada uma das letras A, E e O pode, às vezes, representar vários sons que correspondem a uma única unidade do sistema, porque naquela situação não pode ocorrer mais nenhuma. Uma maneira fácil de ver isto são as conjugações verbais. Se tomarmos o presente do verbo comer, por exemplo, estamos perante unidades do sistema, cuja pronúncia varia conforme estejam ou não na sílaba tónica. O O de comer pode pronunciar-se [ó], [ô] ou [u] e o E pode pronunciar-se [ê] ou [e] (E dito «fechado», às vezes não pronunciado), conforme estejam ou não na silaba tónica: eu cômu, tu cóm(e)s, ela cóm(e), nós cumêmus[3]

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Uma escrita fonológica ideal reduz a uma única letra todas as variantes de uma unidade do sistema, independentemente dos sons em que se manifeste e das diversas maneiras de falar essa língua. Isto não acontece numa escrita fonética, que é muito menos prática, porque, em princípio, um mesmo fonema se pode representar de várias formas e a representação direta da variação regional é forçosamente muito maior. É claro, a variação regional pode ser também fonológica, isto é, uma determinada palavra pode ter, num determinando dialeto, um fonema que não existe no outro. Por exemplo, facto tem, no português europeu, um fonema /k/ que não existe no português americano. Também é muitas vezes difícil, se não impossível, decidir o que tem relevância fonológica, especialmente quando se trata da oposição entre vogais, por exemplo, [ê] e [é] mas isso é uma discussão muito longa que não cabe aqui. 

O que me parece importante salientar é que, ao contrário do que muitas vezes se diz, a escrita atual do português é essencialmente fonológica e abarca, por isso, a grande maioria das variações de pronúncia dos seus falantes – porque as letras não tendem a representar os sons efetivamente ditos, mas sim as unidades que lhes subjazem, que podem ter várias pronúncias, também consoante a variante regional. E as reformas que tem havido, desde a de 1911, em que se inaugurou esse padrão, têm sido coerentes nesse sentido. Agora, digo «essencialmente fonológica», porque há ainda algumas coisas (o uso de H inicial é o mais óbvio, mas há muitas outras) que não têm nada nem de fonético nem de fonológico — e que, aliás, nem sequer seguem sempre uma lógica etimológica… Até à escrita completamente fonológica, há ainda algum caminho a percorrer... 


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[1] Isto não é verdade em todos as variantes do português, porque, no nordeste de Portugal, há ainda algumas (muito poucas) pessoas que pronunciam os CC sibilantes de forma diferente dos SS, mas esta oposição, que tem vindo a desparecer ao longo dos séculos, vai muito em breve desaparecer de vez. Em fases anteriores da língua, porém, esta distinção existia numa grande área do romance ibérico: distinguia-se uma pronúncia do S com a língua a tocar os alvéolos (o chamado «s beirão») e a pronúncia do Ç/CE, CI, igual à nossa pronúncia atual de todos estes sons, com a língua a tocar nos dentes (ver aqui).

[2] Há exceções dialetais a esta regra: em certos falares regionais portugueses e nalgum português moçambicano, ocorre nesta situação não o som [z], mas antes o som [j]: ‘tájaver?

[3] Esta regra está apresentada de uma forma simplificada. Por exemplo, em português europeu, o fonema /o/ (escrito O), quando não faz parte de um ditongo, pronuncia-se [u] quando é átono, ou seja, não está na sílaba tónica: culurídu, cómudu, pud(e)rôsu, etc. Ora esta regra aplica-se numa grande maioria dos casos, mas não sempre. 

Outra regra que a complementa é que, no início de uma palavra, quando /o/ é uma sílaba sozinho ou é início de sílaba seguido de uma consoante, se pronuncia sempre [ó]: obrigado, ostentação, organização, obtuso, etc. Outra regra complementar desta última é que o /o/ mantém essa abertura de [ó] em compostos por prefixação dessas palavras: desorganização, inoperante, etc. 

Muitos prefixos relativamente autónomos, como mono-, poli-, etc. mantém também o som [ó] quando formam compostos: monomania, polivalente, etc. Além disso, há exceções avulsas, em princípio por razões históricas que não vou aqui descrever: ecònomia, sòmente, etc.

Outra questão interessante é que, quando um O final nunca aparece em posição tónica na flexão de uma palavra, não haveria razão para o considerar uma variante de um /o/. Por exemplo, não há nenhuma palavra com a mesma raiz que político em que o O final se pronuncie [ô] ou [ó], mas a prova de que é um /o/ que está por baixo do [u] surge quando se liga o termo a outro termo: político-militar, etc.



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