18/06/25

Andar

 

Antes de nos sedentarizarmos, passávamos a vida a andar. Os humanos, quero eu dizer. E andar faz bem. Não se preocupem, não vos vou tentar impingir, à maneira de quem propõe dietas paleolíticas e sacrifícios afins, que haja em nós algo essencial perdido com a vida moderna e que é necessário retornar a uma primitiva perfeição. Quando digo que andar faz bem, é só isso que quero dizer, sem mais. Pelo menos, mal não faz de certeza.

Sonny Terry  & Brownie MacGee: "Walk on", ao vivo em 1965

Well, when your mind gets worried, when your shoes get thin
You don't know where you goin', but you do know where you been
Walk on, walk on, walk on, I walk on
I'm gonna keep on walkin' 'til I find my way back home

 

Sempre gostei de andar. Em rapaz, muitas vezes fazia vários quilómetros a pé, em vez de apanhar transportes. Nos cerca de 11.000 km que fiz à boleia entre os 15 e os 22 anos*, quando não apanhava boleia ao fim de uma meia horita, punha-me muitas vezes a andar, em vez de ficar especado no mesmo sítio de polegar estendido. O que resultou em boas caminhadas, sozinho ou acompanhado. É claro, esqueci já muitas delas, mas há algumas que recordo ainda com prazer: de Leiria a Tomar, com pernoite num bosque a meio caminho, de Loulé a Barranco do Velho, com muito calor e a barriga vazia; de St. Jean-de-Luz a Bayonne, da primeira vez que fui a França; por exemplo... Lembro-me de que uma vez, algures no Maciço Central francês, fiz mais de quarenta quilómetros de seguida, a caminhar desde a tardinha ao amanhecer, até que, já dia, parou um médico do SAMU que ia com muita pressa. É bem capaz de ter sido, de uma vez só, a mais longa caminhada da minha vida.

Agora, sempre fiz só distâncias relativamente curtas de cada vez. Nunca andei centenas de quilómetros, como conheço quem tenha feito ou esteja a fazer. Nunca fiz nenhum troço do caminho de Santiago de Compostela, por exemplo. Mas, por acaso, é coisa que ainda gostava de fazer. Não como peregrino, só como incréu caminhante. A ver se me meto ao caminho antes que me falte a força nas pernas.

A minha maior companheira de caminhadas é a minha mulher. Aliás, o primeiro fim de semana que ela e eu passámos juntos, quando nos conhecemos faz em breve 29 anos, passámo-lo a andar. Lembro-me bem da primeira caminhada grande que fizemos, do topo da Serra da Estrela até Manteigas. E andar continua a ser das coisas que mais fazemos juntos. Ter assim um interesse em comum com outra pessoa é bom cimento de uma relação. Tudo não será, mas é meio caminho andado.

Joan Manuel Serrat: "Cantares", 1969

Antonio Machado, "Proverbios y cantares (XXIX)", 1912

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

Ponho-me a passear pela memória das caminhadas que fiz e não sei escolher as mais bonitas. Nem as mais interessantes. Pergunto à minha mulher, a ver o que ele acha. Das caminhadas que fez sozinha, escolhe três semanas no Nepal, mais de vinte anos antes de me conhecer. Juntos, assentamos que talvez os três dias a caminhar na selva amazónica no natal de 2000, a que se aplicavam bem, literalizando-os, os versos famosos de Machado, «faz-se caminho ao andar»; ou os quatro dias de Mestia a Ushguli no Cáucaso georgiano; ou as caminhadas nos irreais bosques de fetos arbóreos da Reunião ou, também na Reunião, a deslumbrante subida ao Piton de la Fournaise. Mas é difícil dizer… Uma minúscula parte dos caminhos do mundo. Por mais que caminhemos, o que nos falta sempre andar!...

A ideia de publicar um pequeno texto sobre caminhadas surgiu de uma nota que tomei em março deste ano, a propósito de um passeio nas montanhas de Ella, no Seri Lanca. Nós lá íamos, a caminhar à beira da estrada, porque não havia outro caminho. (Tínhamos feito, no dia anterior, uma agradável caminhada pelas plantações de chá, fora das rotas turísticas, e eu tinha sido atacado por sanguessugas terrestres que, rai’s as partam!, injetam anticoagulante na vítima, para poderem chupar o sangue à vontade, de maneira que as feridas demoram umas duas horas a parar de sangrar.) Íamos em direção a um conhecido pagode budista, mas não era o pagode em si o nosso destino, íamos só a andar, sem mais, como é nosso costume. E estavam sempre a parar tuquetuques a oferecer os seus serviços para nos levarem ao templo. Que era muito longe para se ir a pé, diziam os tuquetuqueiros. E eu dizia que que não precisávamos, que íamos a passear. E não eram só os homens dos tuquetuques que achavam longa a distância, também os peregrinos. Os que não iam de autocarro de excursão, iam em táxis ou de tuquetuques que apanhavam na cidade.

«Será que esperam ganhar assim melhor carma?», diverti-me eu a pensar. «Nós, que não somos peregrinos, vamos a pé. Não é também a pé que deviam ir eles que o são?»

Félix Leclerc, "Moi mes souliers", 1951

Moi, mes souliers ont beaucoup voyagé
Ils m'ont porté de l'école à la guerre
J'ai traversé sur mes souliers ferrés
Le monde et sa misère […]

S'ils ont marché pour trouver le débouché
S'ils ont traîné de village en village
J'suis pas rendu plus loin qu'à mon lever
Mais devenu plus sage 
[…]

Au paradis, paraît-il, mes amis
C'est pas la place pour les souliers vernis
Dépêchez-vous de salir vos souliers
Si vous voulez être pardonnés

________________

* Dei-me ao trabalho de fazer contas, de uma vez que estava num estado de espírito retrospetivo. E contei só viagens grandes, não boleias curtas (de que, claro, não me conseguia lembrar).










14/06/25

Numerações e preconceito


A notícia já tem uma meia dúzia de anos, mas não faz mal, porque isto não é um blogue de atualidades — e porque as coisas provavelmente não se alteraram nada em seis anos: vi em vários sítios que, segundo um inquérito feito nos EUA, a maioria das pessoas acha que não se deve ensinar numeração árabe nas escolas. De transparentes que são, escuso-me a comentar os resultados do inquérito. E creio que, muito provavelmente, eles seriam semelhantes se o inquérito fosse realizado em países europeus. 

Divirto-me a pensar que quem recusa a numeração árabe talvez prefira a numeração romana, a fazer pandã com as letras, do tipo

Se um gato tem VII vidas
como muitos dizem ter
ao meu já vi VI vividas 
e vej’I por viver. 

E também me divirto a pensar que a única posição radicalmente nacionalista é ser não só contra a numeração romana e os algarismos árabes, mas também contra o + e contra o x e contra quaisquer sinais que representam conceitos em vez de palavras, porque, quando se vê, por exemplo, “2+3=5”, o que lá está escrito é tanto “dois mais três igual a cinco” como “two plus three equals five”, “twee plus drie is vijf” ou “два плюс три равно пяти”.


11/06/25

Duas notas sobre tradução, mais ou menos a propósito do conto «Guayaquil», de Jorge Luis Borges

 

Mais ou menos a propósito do conto de Borges, digo eu. Bom, na realidade, nestas duas notas falo sobretudo da tradução de duas passagens do conto: um excerto de um verso de António Machado citado pelo narrador do conto e uma expressão francesa que aparece duas vezes. 

free-photo-of-statues-at-hemicycle-de-la-rotonda-in-guayaquil

Guayaquil é a maior cidade do Equador e foi lá que, a 26 e 27 de julho de 1822, se deu, entre José de San Martín e Simón Bolívar, um encontro tão famoso como misterioso (já que dele não se conhecem pormenores) em que (diz Borges no conto) «o general San Martín renunciou à mera ambição e deixou o destino da América nas mãos de Bolívar».

O conto é sobre outro encontro, este entre dois historiadores: o narrador, argentino e não nomeado, e Eduardo Zimmermann, judeu checo fugido do Terceiro Reich e naturalizado argentino. O enredo, se é que de enredo se pode falar, é que teriam sido descobertas algumas cartas de Simón Bolívar, numa das quais «o Libertador dá detalhes sobre a sua entrevista com o general San Martín», e Zimmermann convence o narrador, que fora encarregado de transcrever e prologar a edição das cartas na Argentina, que é ele, Zimmerman, que o deve fazer. 

Se qualquer resumo de um conto é crime, este ainda mais, por omitir tudo o que de facto nele interessa. Espero, pelo menos, que, se não o conhecem, fiquem com vontade de o ler. Aconselho-vos a leitura do original em castelhano (aqui ou aqui), que não vos deve ser difícil — de preferência, antes de lerem o resto deste texto. É um conto breve, não chega a 2.500 palavras.  


1. Torpe aliño indumentario: um tipo especial de localização

Palavra puxa palavra, é bem verdade; e mais ainda se se fala de Jorge Luis Borges e das palavras que ele puxa com as suas palavras. Neste caso, as palavras de Antonio Machado. Diz o narrador do conto, ao descrever a personagem Eduardo Zimmermann:  

Soy poco o nada observador, pero recuerdo lo que cierto poeta ha llamado, con fealdad que corresponde a lo que define, su torpe aliño indumentario. 

A passagem citada chamou-me atenção, como me chamou a atenção a maneira como o narrador do conto a qualificava: é elogio dizer que uma descrição feia se adequa ao descrito? Descobri em segundos, na Internet, que era António Machado o citado, e mais concretamente o seu poema «Retrato», de 1912 (que podem ler aqui). É, ao que vejo, um poema conhecido; e eu, vejam lá, que gosto de Machado e o li bastante, não me lembrava dele…  

Na mesma busca, surgiu-me também uma curiosa discussão no fórum da WordReference.com. Perguntava alguém, referindo uma passagem de Un Milagro En Equilibrio, de Lucia Etxebarria, como poderia traduzir para inglês aliño indumentario.  

Lucia Etxebarria, ao contrario de Borges, cita diretamente Machado. A passagem é a seguinte

El tipo en cuestión llevaba una pinta que llamaba la atención incluso en aquel bar donde hasta el más extravagante aliño indumentario (que diría Machado) resultaba poco vistoso habida cuenta de la infinidad de crestas, pelos de colores, piercings, peinados rastas, minifaldas cinturón, maxifaldas jipiosas, pantalones de comando y monos de pintor que por allí se veían.  

Alguns utentes do fórum sugerem traduções para aliño indumentario: «clothing» ou «apparel», por exemplo. E torna o inquiridor:   

Então a minha pregunta é se a expressão aliño indumentario é algo que, para os espanhóis, imediatamente evoca Machado. Se foi ele o único, ou quase o único, a usá-la, não se pode traduzir apenas como «clothing», porque clothing é uma palavra comum, e não se compreende a referência «(que diría Machado)»…  

Tem, evidentemente, toda a razão. Não é uma simples questão de tradução, trata-se antes de tentar dar a entender uma determinada relação cultural com uma expressão. Das vezes que se me deparou esse problema na minha atividade de tradutor, sempre o tentei resolver da forma proposta por outro membro do fórum:  

O que eu faria seria procurar a tradução do poema de Machado «Retrato», conhecido [em inglês] como «Self-portrait».  

Procurando a frase «ya conocéis mi torpe aliño indumentario», vejo que se traduz como «my poor accoutrement» (Juan Ribó Chalmeta e Irina Urumova), «my rough and ready style of dress» (Patrick H. Sheerin), «my slovenly apparel» (A Z Foreman), «my plain, almost monkish dress» (K Dick), etc.  

Depois, é escolher uma das traduções, de preferência de uma edição não muito obscura — e deixar claro algures (há edições que aguentam mal notas de rodapé…) onde se a foi buscar. 

«E então», pensei eu mais tarde, «como traduziria eu isto para português?» A tradução «torpe alinho indumentário», que encontro na internet, tem um problema: torpe não parece ter, em português, a ideia de «tosco, rude, feio», que tem em castelhano. Mas rude e tosco, precisamente, ficam bem ao lado de alinho indumentário; e mantém-se o ritmo e pouco se altera a sonoridade do original. Que vos parece? 


2. «Mon siège est fait»: das camadas de significado do uso de um provérbio já desusado 

A 26 de junho de 2022, o jornal em linha Infobae publicava um artigo de Patricio Zunini sobre o conto de Borges: «Borges y la Historia: el cuento sobre Guayaquil que tardó 17 años en escribir», que vos aconselho. O artigo, de resto muito interessante, na minha opinião, sofre de um pequeno deslize. Em «Guayaquil», aparece uma vez a frase Votre siège est fait, dita por Zimmerman ao narrador, e como última frase do conto, Mon siège est fait, pensada pelo narrador. E esta última frase é traduzida no artigo como «Mi asedio está hecho». É uma tradução que encaixa muito bem na sensata interpretação do conto que Zunini faz e que, por isso, não se pode dizer que esteja errada... Mas não é isso que a frase quer dizer.  

Qualquer dicionário razoável vos confirmará que asedio é uma das muitas palavras que podem traduzir siège para o castelhano. Em português, siège, com o significado militar de asedio em espanhol, diz-se «cerco». Mas siège também pode ser «assento; banco» (por exemplo, de um carro ou de um comboio, mas não só), pode ser «sede» (de uma instituição ou empresa, etc.), pode ser «lugar; mandato» (por exemplo, de um partido num parlamento), pode ser «centro» (por exemplo, se se diz algo como «o cerebelo é o centro da coordenação do movimento»), pode às vezes ser «Sé» (em, por exemplo, a Sé Episcopal ou a Santa Sé), e pode até ser «nádegas», em contextos muito formais... Pelo menos! — porque siège ainda tem mais significados...  

Mas mon siège est fait não é uma frase criada por Borges, é uma expressão fixa. De facto, é uma frase célebre que se tornou uma expressão fixa. Atualmente praticamente caída em desuso (ah, as antiguidades de Borges...), a expressão significa de facto «a minha opinião está formada e não a alterarei».  

Não deixa de ser verdade, porém, que o siège de mon siège est fait refere originalmente um cerco a uma cidade. O historiador René Aubert de Vertot, conhecido como Abade de Vertot, escreveu, entre outras obras, uma História dos Cavaleiros Hospitalários de S. João de Jerusalém, depois chamados Cavaleiros de Rodes e hoje Cavaleiros de Malta, que foi publicada em 1726. Conta-se que, quando lhe quiseram apresentar documentos novos sobre o cerco de Rodes pelos Otomanos, se recusou a tê-los em conta e a rever a sua versão desse cerco em função da nova informação. «O meu cerco está feito», teria respondido. E a sua frase passou a significar inflexível teimosia. (No fundo, concordarão, não há nada de muito extraordinário na atitude de Vertot, que é, infelizmente, mais comum que a atitude contrária de predisposição a mudar de opinião perante dados factuais ou bons argumentos…) 

Agora, no caso concreto do conto de Borges, a frase de Vertot ganha uma dimensão especial: não apenas porque é um historiador que a diz de outro historiador que acaba por assumi-la, dizendo-a ele próprio, mas também porque um elemento central do conto é, precisamente, o surgimento de um novo documento sobre um episódio histórico. O melhor, neste caso, é mesmo nunca traduzir mon siège est fait, seja para que língua for. Nos textos de Borges, há muitas vezes um deslumbramento acrescido para quem conhecer — ou estiver disposto a pesquisar — as suas frequentes referências literárias, filosóficas, históricas, etc. Pelos vistos, o significado e a história desta expressão francesa fazem parte dos conhecimentos pressupostos no seu leitor ideal.  



Todas as traduções do castelhano são minhas.
Imagem: Estátua de Bolívar e San Martín no Hemiciclo de la Rotonda, em Guayaquil (foto de iam luisao, de utilização livre, daqui). Curiosamente, a estátua deste dois chefes do movimento independentista sul-americano é de um escultor espanhol, José Antonio Homs.

02/06/25

Canções que referem outras canções #10: “Chambermaid” e “I want you”

 

Na canção “Chambermaid”, incluída no seu último álbum Flying With Angels, de maio de 2025, Suzanne Vega tem uma referência clara a uma conhecida canção de Bob Dylan, “I want you” (1966). Diz ela que imaginou «o que a personagem da criada de quarto da canção “I Want You” de Bob Dylan diria das suas próprias aspirações e a relação dela com o grande homem». E é isto, creio que não há muito mais a dizer... Coisa curiosa, Vega usa a melodia da canção de Dylan nas estrofes, mas acrescenta-lhe outra melodia no refrão.

I'm the great man's chambermaid

I've seen where his hallowed head is laid

I revere the places he has stayed

And clean crumbs from his typewriter

[...]

I finger sentencеs he's made

I follow evеry curving of his brain

[...]

He often gives me sage advice

When I dream of him at night

He slips his pen into my hand

And says, "Don't forget to write"

A canção de Dylan, como muitas canções suas, não é transparente por ai além. Nem sequer se sabe se são imagens soltas, algum tipo de alegoria, ou um desfilar de referências codificadas a pessoas e acontecimentos concretos. E não faz mal nenhum que assim seja – ou ainda bem que assim é.

Ah, outra coisa (dois coelhos de uma só cajadada, como se costuma dizer): a canção de Dylan faz também referência a outra canção: “Time is on my side”, dos Rolling Stones. Há também quem veja em «dancing child with his Chinese suit» uma alusão a Brian Jones, o que a referência à canção dos Stones confirmaria… Vá lá uma pessoa saber...

Well, I return to the Queen of Spades 

And talk with my chambermaid 

She knows that I'm not afraid to look at her 

She is good to me and there's nothing she doesn't see 

She knows where I'd like to be but it doesn't matter

[...]

Now your dancing child with his Chinese suit 

He spoke to me, I took his flute 

No, I wasn't very cute to him, was I? 

But I did it, because he lied

And because he took you for a ride 

And because time was on his side 

And because I want you