Antes de nos sedentarizarmos, passávamos a vida a andar. Os humanos, quero eu dizer. E andar faz bem. Não se preocupem, não vos vou tentar impingir, à maneira de quem propõe dietas paleolíticas e sacrifícios afins, que haja em nós algo essencial perdido com a vida moderna e que é necessário retornar a uma primitiva perfeição. Quando digo que andar faz bem, é só isso que quero dizer, sem mais. Pelo menos, mal não faz de certeza.
Sonny Terry & Brownie MacGee: "Walk on", ao vivo em 1965
Well, when your mind gets worried, when your shoes get thin
You don't know where you goin', but you do know where you been
Walk on, walk on, walk on, I walk on
I'm gonna keep on walkin' 'til I find my way back home
Sempre gostei de andar. Em rapaz, muitas vezes fazia vários quilómetros a pé, em vez de apanhar transportes. Nos cerca de 11.000 km que fiz à boleia entre os 15 e os 22 anos*, quando não apanhava boleia ao fim de uma meia horita, punha-me muitas vezes a andar, em vez de ficar especado no mesmo sítio de polegar estendido. O que resultou em boas caminhadas, sozinho ou acompanhado. É claro, esqueci já muitas delas, mas há algumas que recordo ainda com prazer: de Leiria a Tomar, com pernoite num bosque a meio caminho, de Loulé a Barranco do Velho, com muito calor e a barriga vazia; de St. Jean-de-Luz a Bayonne, da primeira vez que fui a França; por exemplo... Lembro-me de que uma vez, algures no Maciço Central francês, fiz mais de quarenta quilómetros de seguida, a caminhar desde a tardinha ao amanhecer, até que, já dia, parou um médico do SAMU que ia com muita pressa. É bem capaz de ter sido, de uma vez só, a mais longa caminhada da minha vida.
Agora, sempre fiz só distâncias relativamente curtas de cada vez. Nunca andei centenas de quilómetros, como conheço quem tenha feito ou esteja a fazer. Nunca fiz nenhum troço do caminho de Santiago de Compostela, por exemplo. Mas, por acaso, é coisa que ainda gostava de fazer. Não como peregrino, só como incréu caminhante. A ver se me meto ao caminho antes que me falte a força nas pernas.
A minha maior companheira de caminhadas é a minha mulher. Aliás, o primeiro fim de semana que ela e eu passámos juntos, quando nos conhecemos faz em breve 29 anos, passámo-lo a andar. Lembro-me bem da primeira caminhada grande que fizemos, do topo da Serra da Estrela até Manteigas. E andar continua a ser das coisas que mais fazemos juntos. Ter assim um interesse em comum com outra pessoa é bom cimento de uma relação. Tudo não será, mas é meio caminho andado.
Joan Manuel Serrat: "Cantares", 1969
Antonio Machado, "Proverbios y cantares (XXIX)", 1912
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.
Ponho-me a passear pela memória das caminhadas que fiz e não sei escolher as mais bonitas. Nem as mais interessantes. Pergunto à minha mulher, a ver o que ele acha. Das caminhadas que fez sozinha, escolhe três semanas no Nepal, mais de vinte anos antes de me conhecer. Juntos, assentamos que talvez os três dias a caminhar na selva amazónica no natal de 2000, a que se aplicavam bem, literalizando-os, os versos famosos de Machado, «faz-se caminho ao andar»; ou os quatro dias de Mestia a Ushguli no Cáucaso georgiano; ou as caminhadas nos irreais bosques de fetos arbóreos da Reunião ou, também na Reunião, a deslumbrante subida ao Piton de la Fournaise. Mas é difícil dizer… Uma minúscula parte dos caminhos do mundo. Por mais que caminhemos, o que nos falta sempre andar!...
A ideia de publicar um pequeno texto sobre caminhadas surgiu de uma nota que tomei em março deste ano, a propósito de um passeio nas montanhas de Ella, no Seri Lanca. Nós lá íamos, a caminhar à beira da estrada, porque não havia outro caminho. (Tínhamos feito, no dia anterior, uma agradável caminhada pelas plantações de chá, fora das rotas turísticas, e eu tinha sido atacado por sanguessugas terrestres que, rai’s as partam!, injetam anticoagulante na vítima, para poderem chupar o sangue à vontade, de maneira que as feridas demoram umas duas horas a parar de sangrar.) Íamos em direção a um conhecido pagode budista, mas não era o pagode em si o nosso destino, íamos só a andar, sem mais, como é nosso costume. E estavam sempre a parar tuquetuques a oferecer os seus serviços para nos levarem ao templo. Que era muito longe para se ir a pé, diziam os tuquetuqueiros. E eu dizia que que não precisávamos, que íamos a passear. E não eram só os homens dos tuquetuques que achavam longa a distância, também os peregrinos. Os que não iam de autocarro de excursão, iam em táxis ou de tuquetuques que apanhavam na cidade.
«Será que esperam ganhar assim melhor carma?», diverti-me eu a pensar. «Nós, que não somos peregrinos, vamos a pé. Não é também a pé que deviam ir eles que o são?»
Félix Leclerc, "Moi mes souliers", 1951
Moi, mes souliers ont beaucoup voyagé
Ils m'ont porté de l'école à la guerre
J'ai traversé sur mes souliers ferrés
Le monde et sa misère […]
S'ils ont marché pour trouver le débouché
S'ils ont traîné de village en village
J'suis pas rendu plus loin qu'à mon lever
Mais devenu plus sage […]
Au paradis, paraît-il, mes amis
C'est pas la place pour les souliers vernis
Dépêchez-vous de salir vos souliers
Si vous voulez être pardonnés
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* Dei-me ao trabalho de fazer contas, de uma vez que estava num estado de espírito retrospetivo. E contei só viagens grandes, não boleias curtas (de que, claro, não me conseguia lembrar).
