Desde que se inventou a agricultura que os cereais são a base da alimentação humana, mas a maneira de os preparar varia muito de sítio para sítio. Na Europa (e cá estou eu outra vez, sem querer, às voltas com
a identidade europeia...), há muito tempo que é o pão a maneira mais comum de comer cereais. Como temos hoje, nos países ricos, uma alimentação muito variada, esquecemo-nos de que expressões como
ganhar o pão de cada dia ou
faltar a alguém o pão para a boca eram, antigamente, para serem literalmente entendidas. Aliás, há ainda algumas maneiras de designar o dinheiro que revelam bem que o pão era o mais fundamental dos bens de consumo: chama-se-lhe
massa, por exemplo, e não é com certeza do macarrão que termo vem, mas da massa do pão, precisamente, como aliás o inglês
dough, que é também massa (de pão) e também uma maneira normal de referir os carcanhóis. E pronto, para repositório de trivialidades, não está má a introdução. Mas vejam lá agora aonde eu quero chegar:
Lembro-me de ler, era eu rapaz, um livro de Robert M. Pirsig que estava na moda nessa altura e que se chamava
Zen e a arte da manutenção de motocicletas. Não me lembro já bem do que dizia o livro, já lá vão muitos anos, mas lembro-me de o achar cheio de banalidades, exactamente como o meu parágrafo anterior, só que apresentadas como se tratasse da descoberta da pólvora. Há uma ideia forte do livro
[1], porém, que me seduziu muito e que continuo a achar interessante: a ideia de que uma parte do nosso mal-estar quotidiano nos vem da incapacidade de lidarmos com os instrumentos de que nos servimos.
Em comunidades pequenas, não urbanas, sem especialização do trabalho e em que, por isso mesmo, se usa um número limitado de utensílios, toda a gente sabe mais ou menos construir ou reparar os instrumentos de que se serve. Mas nós hoje não. Nem um esquentador, nem um fogão, máquinas primitivas que são, nós sabemos arranjar…
Podemos levar mais longe a reflexão e passar dos instrumentos aos alimentos, que são, em última análise, um aspecto ainda mais fundamental da nossa vida. Continuamos a fazer comida, vá lá, mas no percurso do prado ao prato, como se diz, só lhe começamos a tocar a meio caminho, quando não só já perto da chegada. Vem-nos parar às mãos tudo já pronto, ou quase, a entrar para a panela
[2]. Há muitas coisas que só compramos e que nunca fazemos, que não sabemos fazer nós próprios – conservas, enchidos, queijos, que sei eu?... E pão…
Ora, da mesma forma que é saudável esvaziar a cabeça em frente a um motor a dois tempos desafinado ou a um autoclismo com fuga de água, as chavinhas todas alinhadas, na posição do lótus (as chaves ou nós, tanto faz), também é saudável alinhar facas e recipientes vários de cozinha, na calma de um fim-de-semana, e preparar o seu próprio
pâté de tête (pode ser cabeça de xara, para ser mais à portuguesa), as suas próprias salsichas ou as suas próprias conservas de beterraba. E mais repousante, mais saudável, mais gratificante, mais tudo isso e mais ainda, mais zen, enfim, … é fazer o seu próprio pão!
Zen e a arte de fazer pão, então. O que se pode dizer a isto? O que diz o zen do pão? É difícil dizer com certeza o que o zen diz seja lá do que for, porque o zen diz muita coisa e não diz nada, e nem sempre sabe bem o que diz, senão não seria zen; mas acho que não ofendo nenhum simpatizante de disciplina se disser que, no zen, é sempre individual o caminho que nos leva para além da nossa enganosa individualidade. Pois bem, assim é também com o pão: os mestres, incluindo os mestres padeiros, são sempre e só uma ilusão. Uma ilusão mais. Vou dar-vos uma receita, mas esta receita é uma receita que eu fui desenvolvendo ao longo dos anos e que, por isso mesmo, me serve mais a mim do que a qualquer outra pessoa. Cabe-vos agora a vocês pegar nela (ou noutra qualquer, para o caso tanto faz) e encontrar a receita de pão que seja realmente vossa, o vosso lugar único na panificação, o pão da vossa mais alta e perfeita iluminação…
Agarrem em 6 decilitros de água tépida (não se pode sentir quente, tem de estar abaixo da temperatura do corpo) e despejem-nos num recipiente grande. Deitem lá dentro duas colheres de sopa de sal fino e duas colheres de sopa de mel e, depois, 250 gramas de farinha de trigo. Mexam bem com uma colher de pau grande, grossa e resistente. Agora, juntem-lhe mais 600/700 gramas de ingredientes que vos pareçam que ficam bem no vosso pão. Eu ponho cerca de 350 gramas de grão de trigo cozido
[3], uns 150 gramas de flocos de aveia, um bocado de linhaça, um punhado de gergelim, umas pevides e umas sementes de girassol e um bocado de caju triturado, mas nada vos obriga a seguir esta proposta. Mexam tudo bem e juntem agora a massa azeda.
Ah, pois, tinha-me esquecido de dizer no início: é preciso ter massa azeda. Eu tenho a minha há tanto tempo, que já nem me lembro de a ter feito, mas sei que fui eu que a fiz e sei como se faz: junta-se 1,5 decilitros de iogurte, 2,5 dl de farinha de centeio e 1 colher de chá de sal numa tigela, mexe-se, tapa-se e deixa-se ficar assim uns dias à temperatura ambiente (o mais quente possível), até começar a borbulhar. A massa azeda está então pronta para usar. Guarda-se no frigorífico e quanto mais se a usa melhor vai ficando. E agora que já temos massa azeda, voltemos ao nosso pão:
Junta-se então a massa azeda à massa e mexe-se. Junta-se mais 3 decilitros de água tépida e mexe-se tudo bem outra vez. Agora, é juntar mais farinha – meio quilo para começar e depois logo se vê. Se gostarem de centeio e tiverem farinha de centeio, muito bem. Se não, podem usar farinha de trigo, que é o que faço, e também fica bom. Depois de mexer muito bem, tirem uns 300 gramas de massa e guardem no frigorífico – é a vossa massa azeda para a próxima vez.
Em seguida, há que verificar a consistência. Conforme o que lá tenham posto dentro e o tipo de farinha que utilizarem, a massa pode estar agora mais ou menos líquida. Devem ir acrescentando farinha até ela ser difícil de mexer com a colher de pau, até começarem a pensar que «isto de não fazer exercício nenhum não pode continuar…». Ou, dito de outra maneira, talvez mais zen, até a massa olhar assim para vocês mesmo com cara de massa de pão. Pronto.
Pega-se depois numa forma daquelas a que acho que se chama “de bolo inglês”
[4] (vale a pena investir numa boa, que o barato sai caro…), barra-se a dita com manteiga abundante e despeja-se lá dentro a massa. Se a massa escorrer bem do recipiente onde a tinham para a forma, é porque está líquida demais: a massa deve ser renitente, cair muito devagarinho e pedir, no fim, para se lhe puxar o resto com a colher de pau...
Tapem o futuro pão com um pano e deixem ficar a levedar entre 10 e 12 horas, talvez até um bocadinho mais, conforme a temperatura do sítio onde o deixam, e conforme gostem do pão com um travo mais ou menos azedo: quanto mais tempo estiver a levedar e quanto mais alta for a temperatura, mais azedo fica, claro está.
Passado esse meio dia, forno com ele. Ponham-no no forno a 200 graus durante 70 minutos (a contar do momento em que ligam o forno já com a forma lá dentro) e depois subam para 250 graus durante 25 minutos. Tirem o pão do forno e barrem com a manteiga a parte de cima do pão (e as paredes laterais, se quiserem, mas sem desenformar, só espalhando a manteiga com uma faca entre a forma e o pão), que é para ficar a crosta tostada . Se não gostarem da crosta tostada, escusado será dizer, saltem esta etapa.
Só faltam agora mais uns 10 minutinhos no forno, ainda a 250 graus. Não se esqueçam de desenformar o pão mal o tirem do forno e de o deixar em cima de uma grelha (a grelha do fogão, por exemplo), de maneira a que apanhe ar de todos os lados. E bom proveito!
[P. S.: Música e pão são duas coisas que ligam sempre bem, e é quase certo que o pão fica melhor se o fizerem ao som de uma música que vos agrade e que achem adequada à panificação. Como se trata de um exercício zen, porém, não se aconselha nada de muito espiritual, porque a espiritualidade (penso que nisso também todos os simpatizante desta disciplina estarão de acordo comigo…) é mais uma armadilha da mente, uma das muitas formas que toma a ilusão que nos aprisiona. Como se trata de desfazer o espírito em massa, em vez de o elevar, talvez seja mais apropriada música com os pés solidamente assentes na terra, como, sei lá..., Béla Bartók, Digable Planets, Carlos Paredes ou Art Blakey & The Jazz Messengers.]
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[1] De facto, como já não me lembro bem do livro, não posso garantir que isto lá seja dito assim. É capaz de ser um truque da minha memória, a impingir-me como sendo ideia do Pirsig uma fantasista interpretação minha de outra coisa que ele diga, mas isso agora não importa muito…
[2] Eu não podia dizer isto ali onde apareceu a chamada para esta nota de rodapé, porque estragava o texto todo, mas digo agora aqui (…muito baixinho…): Se, por um lado, perdemos a noção do trabalhão que dá cultivar cenouras e batatas e, sobretudo, da nossa própria animalidade (deixámos de matar), por outro, ainda bem que se compra a carninha já lavada e embalada. Contra calçar umas socas e meter os pés à lama para ir buscar uns legumes ao quintal, não tenho absolutamente nada, pelo contrário; mas sei bem o que é ter de tratar da carne de porcos e vacas desde o abate até à panela e há uma altura, digo-vos eu, em que aquele cheiro nauseabundo a carne morta não nos larga, nem nos sonhos, e começamos muito seriamente a considerar a possibilidade de nos tornarmos vegetarianos…
[3] Tem de se cozer primeiro o grão de trigo, senão, mesmo que se deixe de molho muito tempo, fica sempre duro demais. Uma pessoa arrisca-se depois a estalar um dente ao comer o pão.
[4] Eu nunca lavo a forma, porque aprendi o preceito clássico que formas de pão não se lavam, limpam-se só com papel ou com um pano, mas é mais mania do que outra coisa qualquer, porque eu conheço gente que faz pão excelente e lava as formas…