Diz o Wikcionario que cantautor é um substantivo masculino, que significa “que canta as suas próprias composições poéticas, normalmente críticas”, e que é um “neologismo criado a partir de cantor + autor, certamente por influência do castelhano cantautor”.
Porto Editora online diz mais ou menos o mesmo: cantautor, nome masculino, é um “cantor de música ligeira que interpreta, geralmente a solo, as suas próprias composições” e vem de cant[or]+autor.
É verdade que é convencional considerar a forma masculina singular a forma de base de um nome e que é essa forma que é usada nas entradas dos dicionários, mas talvez já seja tempo de, em vez de considerar cantautor substantivo masculino sem mais (e as outras palavras todas com duas formas flexionais, uma forma masculina referente a seres do sexo masculino e uma forma feminina referente a seres do sexo feminino), fazer antes uma entrada do tipo
cantautor n. m.; cantautora n. f. : pessoa que canta as suas próprias canções
Ou não? Se o feminino e o masculino forem palavras diferentes, por exemplo, cadela e cão, acho devia haver duas entradas, ambas com referência uma para a outra:
cadela n. f.; cão n. m.: mamífero canino doméstico, Canis familiaris
e
cão n. m.; cadela n. f.: mamífero carnívoro doméstico, Canis familiaris
Já agora: sei que houve já propostas, com argumentos mais sólidos do que os que se usam para defender a convenção actual (nenhum, ao que sei...), de propor o feminino singular como forma das entradas de dicionário. De facto, com base no velho mas sempre produtivo conceito de forma marcada e não marcada, parece ser o masculino singular a forma marcada, já que o feminino, singular e plural, e o masculino plural partilham algumas características que o masculino singular não tem: vejam, por exemplo, a pronúncia nóva, nóvas, nóvos por oposição a nôvo. Mas a tradição tem muito peso – e a tradição é masculina…
Mas, voltando a cantautor e à sua definição no Wikcionário, não vejo bem o que é que faz “poéticas” depois de “composições” sem lá estar também “musicais”. Quer dizer que é cantautor quem canta as suas letras com música de outros, mas o contrário não? A definição do Porto Editora é mais correcta: “… as suas próprias composições”, pronto, ponto, chega bem. E por que hão-de ser as composições dos cantautores “normalmente críticas”? E críticas de quê, já agora? J. J. Cale não é um cantautor? E Bobby Lapointe?
Mas enfim, onde eu quero chegar com isto tudo é que foi boa ideia aproveitar (mais uma vez!) uma palavra criada em castelhano. Bom, a palavra existia não só em espanhol, mas também noutras línguas ibéricas e em italiano (cantautore/a) – em qual delas terá sido inventada? Seja como for, a antiga designação do português europeu autor/a-compositor/a-intérprete é bastante pesada. Os franceses, que usam uma designação correspondente palavra a palavra a autor/a-compositor/a-intérprete, abreviam para ACI, mas isso foi sigla que nunca cá pegou...
Agora, a propósito, fiquem lá com um excerto de um maravilhoso sketch do impagável grupo argentino Les Luthiers em que, para referir o grande cantautor Manuel Darío [fictício, não fiquem a pensar...], se introduz o conceito de autocantor…:
Manuel Darío: O professor López Jaime reconheceu que as minhas canções tocam a alma, que, os meus recitais, não há que pensá-los, há que senti-los.
Professor [Openheimmer, e não López Jaime]: De facto, fui a um dos seus recitais... E realmente... Sinto muito.
Manuel Darío: Confessei-lhe que tocava e compunha de ouvido. Mas enfim, muitos inspirados compositores populares não sabem escrever música.
Professor: Mas pelo menos sabem escrever o nome deles…
Manuel Darío: Conforme lhe ia cantando as minhas canções, ia-me apercebendo de que o professor começava a ficar visivelmente emocionado, até me pareceu ver duas lágrimas que queriam escapar-se-lhe dos olhos...
Professor: Bom, as lágrimas… Escapar-se... não… Eu é que me queria escapar!
Manuel Darío: Por fim, perguntei-lhe: “Professor, o que acha de mim como cantautor?” E ele aconselhou-me que continuasse a cantar.
Professor: Ah, sim. Eu disse-lhe: “Você deve cantar... Onde ninguém o oiça. Você deve cantar para si próprio! Porque eu, a si, não o vejo como cantautor, vejo-o mais como autocantor”.
Imagino que o breve excerto vos dê vontade de ver o sketch completo. Pois aqui está ele:
[Texto atualizado a 7 de junho de 2023, sem atualização da grafia]
Sem comentários:
Enviar um comentário