Mais um texto originalmente publicado a 29 de Outubro de 2008 no extinto blogue Rádio Sim Carolina. Fala dessa letrista singular que é Dory Previn e levanta uma questão que já foi muitas mais vezes levantada do que respondida: a escrita (neste caso, na canção) terá género?
Tenho a sensação de que as canções feministas escritas por homens são, no geral, relativamente previsíveis e panfletárias. É verdade que também há canções feministas previsíveis e panfletárias escritas por mulheres, e canções feministas menos estereotípicas escritas por homens. Mas todas as canções feministas mais directas, mais virulentas, mais provocadoras, mais eficazes que conheço foram escritas por mulheres – e, provavelmente, só poderiam ter sido escritas por mulheres.
Dory Previn, uma cantautora por cujas letras tenho uma admiração especial, é, nesta questão (como em muitas outras!), um caso à parte. Coexistem nela a canção feminista tradicional, a tal que podia ter sido escrita por qualquer pessoa, com a canção do subversivo feminismo feminino. Ou do seu – só dela – único e subversivo feminismo, talvez…
Tomemos a canção “When a Man Wants a Woman”, de Reflections in a Mud Puddle, 1971 (as traduções das canções que aqui aparecem são minhas, que me desculpem os leitores do blogue e sobretudo Dory Previn...):
«Quando um homem quer uma mulher, / diz que é um elogio, / diz que está apenas a tentar / capturá-la, / reclamá-la, / domá-la; / quando quer tudo, tudo dela, / a alma, o amor, / a vida, para sempre, e mais, / diz que a está a persuadir, / diz que anda atrás dela. // Mas quando uma mulher quer um homem, / ele diz que ela o ameaça, / diz que ela está só a montar-lhe uma armadilha, / a aliciá-lo, / a acorrentá-lo, / quando ela quer algo dele, seja lá o que for, / um olhar, um toque, / um bocadinho do seu tempo, / ele diz que ela está a ser exigente, / assegura que ela o está a destruir. // Por que é que / quando um homem quer uma mulher / lhe chamam caçador, / mas quando uma mulher quer um homem / lhe chamam predadora?»
Alguém se surpreenderia se lhe dissessem que a canção tinha sido escrita por um homem? Não sei. Creio que não. Caso bem diferente é o das duas canções que transcrevo a seguir. “Twenty-Mile Zone”, de On my way to where, 1970, e “Starlet Starlet on the Screen Who Will Follow Norma Jean?”, de Reflections in a Mud Puddle, 1971:
«Ia eu a guiar o meu carro, / a gritar à noite, / a gritar à noite, / a gritar ao medo. / Não estava a fazer nada, / só a dar uma volta de carro, / a gritar ao escuro, / a deitar tudo cá para fora. / Era só isso que eu estava a fazer, / só a deitar tudo cá para fora. // Bem, de repente aparece uma mota, / para minha surpresa. / Disse eu: “Sr. Agente, ia em excesso de velocidade?”/ Não lhe via os olhos./ Disse ele: “Não, não ia em excesso de velocidade”. / Pôs a mão na pistola que tinha pendurada / e disse: “Minha senhora, a senhora ia a gritar / a plenos pulmões! / Ia a gritar sozinha! / A senhora ia a gritar no seu carro, / numa zona de velocidade reduzida.” // “E que mal tem gritar? / Vocês não gritam nos vossos jogos, / quando o três-quartos-ponta parte o cotovelo, / quando o pugilista ataca e mutila?»
«Hollywood! / Com quem tem de se foder / para entrar neste filme? / Como se transforma um vício numa virtude? / Com quem tem de se foder / para ser bem tratada? // Levam-nos como se leva um animal para o matadouro, / inspeccionam-nos, classificam-nos, põem-nos um carimbo a dizer se somos de tipo corrente ou de primeira categoria. / Penduram-nos num gancho de carne, e ali ficamos a envelhecer. / Mas a carne de fêmea não melhora com o tempo. / Cortam-nos às peças e tiram a parte mais tenra. / E quando acabam, / o que resta de nós / é rijo, é duro. / Se é essa a ideia que alguém faz do Paraíso, / com quem tem de se foder / para ir para o Inferno? / Viva Hollywood!»
Algum homem escreveria canções assim?
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4 comentários:
Suponho que a letra de "You Suck" das Yeastie Girls, venha corroborar o teu ponto de vista:
http://lyricstrue.net/bandsongtext/Yeastie_Girls/You_Suck.html
aqui fica, para o caso de não conheceres.
Eu cá também gosto da música...
Beijos
Red Hair Punk
Cara amiga mascarada,
É isso que é fascinante neste tema: nunca se chega a conclusão nenhuma. No que respeita à canção “You suck”, após uma pesquisazinha na net, fico sem saber de quem será a letra, mas o que me parece mais provável é que seja de facto dos rapazes dos Consolidated (que teriam apenas convidado as Yeastie Girlz para lhe dar uma voz feminina). Mas não sei… A minha amiga mascarada tem mais alguma informação sobre o assunto? Além disso, uma coisa que se poderia argumentar (não é que eu argumente isso, mas poderia argumentar-se…) é que a letra de “You suck” é mais do estilo de “When a Man Wants a Woman” do que do estilo de “Twenty-Mile Zone” ou “Starlet Starlet on the Screen Who Will Follow Norma Jean?”. Mas não sei… O que é fascinante neste tema é que nunca se chega a conclusão nenhuma…
Beijinhos
Pois, eu também tinha pesquisado e não tinha chegado a conclusão nenhuma sobre a autoria da letra. Pesquisa mais aturada, no entanto, leva-me a dar-te razão, deve ser dos Consolidated. Compreendo a comparação entre "You suck" e "When a man want's a woman" mas congratulo-me que não argumentes que são do mesmo género... Rejubilo ainda por me dares a conhecer a última. Beijos RHP
Cara Punk Ruiva,
Estamos, obviamente, num terreno instável. Há muito que se discute se existe ou não uma escrita feminina. É um assunto de que, no geral, não sei nada, mas há muitos anos que me interessa esta subquestão específica da feminilidade na escrita de canções. De facto, o tema específico sobre o qual comecei a recolher material é o das canções de voz feminina, ou seja, as canções em que o eu da canção é obviamente uma mulher (é o caso de ”You suck” e de ”Twenty-Mile Zone”, mas não é o caso das outras duas). Como as canções de voz feminina foram, até há muito pouco tempo, escritas por homens (vê aqui no blog um texto que se chama “Foi na Travessa da Palha…” http://llindegaard.blogspot.com/2007/10/foi-na-travessa-da-palha-que-o-meu.html ), surgiu-me a ideia de investigar se as canções em que o autor-homem dá voz a uma mulher e as canções em que é uma autora que cria a voz feminina são diferentes. O processo começou, assim mais a sério, em 1999, na Bolívia, uma vez que perdi uma aposta num bar, quando disse que a canção que estava a dar na rádio (uma canção de Shakira, “Ciega sordomuda”, encontras com facilidade a letra na net…) não podia ter sido escrita por uma mulher… e era! Depois de analisar muitas (muitas!) canções, não chego a conclusão nenhuma. Às vezes, tenho a sensação de que consigo discernir as hipotéticas diferenças das canções de voz feminina escritas por mulheres, mas é tudo muito vago, vago demais para transformar em hipóteses esses vislumbres…
Este texto sobre a faceta feminista da Dory Prévin, embora saia da canção de voz feminina em sentido estrito, baseia-se nessas muitas observações que fui fazendo. A minha ideia (mas, insisto, não me cites nisto, porque é uma hipótese muito vaga…) é que o que poderia, em última análise, fazer das duas canções que refiro efectivamente femininas é o uso de certas imagens a que um autor homem não se atreveria, digamos assim, numa canção feminista: a mulher aos berros dentro do carro e a comparação um pouco repulsiva da “carne” da mulher com a (literal) carne de vaca. Tanto “When a man wants a woman” como “You suck” são canções de denúncia/reivindicação relativamente panfletárias, sem imagens fora do vulgar. Mas não sei…
Quanto ao resto, Dory Prévin é uma das minhas letristas favoritas. Ela faz uma coisa que é rara, que é expor-se completamente nas letras. Se o processo por si só é de pouco interesse, pelo menos para quem não se interesse pela vida dela (que, por acaso, é uma vida interessante, podes investigar um bocadinho, vais ver…), no caso dela resulta numa intensidade pouco vulgar em letras de canções, quando canta sobre questões como a relação dela com os pais, com a doença mental pela qual foi internada, com o marido que se separou dela para se casar com Mia Farrow, etc. Aconselho a ouvir, com a letra na mão para não perder nada, os álbuns de 1970 a 1972: On My Way to Where (1970); Mythical Kings and Iguanas (1971); Reflections in a Mud Puddle (1971) e Mary C. Brown and the Hollywood Sign (1972).
E um beijinho.
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