[Uma história em poucas palavras
ou ...
Eu tenho
para aqui estes textos e não sei o que hei de fazer deles]
Já não me lembro do que estava a dizer. Sei que pigarreei no meio de uma
frase e lhe pedi desculpa:
“Mas que coisa!, deve ser da chuva que apanhámos ontem e anteontem... Tenho
uma rã na garganta...”
“Tem o quê?”, perguntou ela, os olhos negros muito abertos, “Uma rã?”
Rimo‑nos muito os dois.
“É uma expressão inglesa, não conhecia?”
“É provável que tenha ouvido, mas não me lembrava... É uma expressão um
bocado nojenta, tem de concordar...”
Isto foi quando eu tomei pela primeira vez chá com Maria Lowell, em casa dela. A retórica
não é nenhum adorno dispensável, é uma constante do falar de todos nós em todas
as situações, por muito que não nos demos conta disso. E, entre formas de
cortesia, frases feitas e várias figuras de estilo, há um sem número de
palavras, expressões e frases que não devem, em princípio, ser literalmente
entendidas, sob pena de daí resultarem situações caricatas como esta. O que
também é muito engraçado é quando é ao contrário: quando deveriam ser
compreendidas no seu sentido literal e, por falta de hábito, não o são.
***
Cheguei a Miri, na costa oeste, já muito perto do Brunei, em dezembro de
1941, exatamente no dia a seguir ao ataque japonês a Pearl Harbour. Tinha vindo da Cidade de Sarawak, e feito um
desvio grande pelo monte Mulu, para visitar o que dizem ser a maior câmara
natural do mundo, a câmara de Sarawak, e a passagem da Gruta de Clearwater, que
tem de comprimento nada menos de 51
km. Entre o Monte Mulu e Miri, tínhamos apanhado chuva
forte, o que não era para admirar naquela época do ano, mas que nunca deixa de
ser desagradável.
À noite, em casa do meu amigo Charles – que não via há muito tempo e que
era a razão de ter vindo a Miri em vez de ter seguido diretamente do Monte Mulu
para Bandar Seri Begawan –, os temas de conversa foram, como não podiam deixar
de ser, a minha decisão de voltar à Austrália, o fim anunciado da dinastia de
rajás brancos de Sarawak e a ameaça japonesa.
“Estou farto, Charles”, expliquei‑lhe eu, “farto de Sarawak, da Cidade de
Sarawak, farto da companhia e farto do trabalho, farto de não ser capaz de me
sentir em casa, compreendes? Sabes há quantos anos é que ando nesta vida assim,
de um lado para o outro, sem ter aquele conforto... Que talvez seja mesquinho,
pronto!, talvez seja ridículo, não sei, mas é uma coisa que nos faz falta, ou
não?... Aquele conforto de ter, eu sei
lá... Um grupo de amigos, por exemplo... Um grupo de amigos já é importante, ou
não?... E poder pensar assim: bom, esta é a minha casa, é aqui que vou passar o
resto dos meus dias...”
“Uma mulher...”
“Porque não?”
“Não me digas que é preciso ir para a Austrália para arranjar uma
mulher...”
“Talvez não. Também depende… Se o que tu queres é arranjar mulheres ou
arranjar uma mulher... Não sei, nunca houve nenhuma que me interessasse, nem em
Bombaim, quando lá estava, nem agora aqui em Sarawak... Por falar em mulheres,
hoje fui dar uma volta até ao mercado enquanto estava à tua espera e conheci
uma mulher extraordinária. Uma mulher da nossa idade, penso eu, um bocado mais
nova, de pele escura mas vestida à europeia, muito bonita.”
“Maria Lowell? Meus Deus, não há dúvida, bonita mulher, para quem, como eu
– e pelos vistos tu – saiba apreciar a beleza nativa. Uma beleza única, pode
mesmo dizer‑se. E uma mulher interessante, também, não é? Misteriosa,
fascinante… O que é mais impressionante é a educação dela, que muitas ladies invejariam… Não sei, deve ter
lido muito, deve ter estudado muito, deve ter‑se empenhado muito em deixar de
ser uma nativa e passar a ser uma verdadeira senhora europeia. Mas, mesmo
assim, se tu soubesses tudo o que dizem dela...”
“O que é que dizem dela?”
“Coisas que não fazem muito sentido, pelo menos para mim. E com certeza que
para ti também não...”
“Está bem, eu não insisto. Mas o que é que sabes mais dela?”
“Não sei muito. Sei que já vive aqui há bastante tempo, há mais de 15 anos,
creio. Já cá vivia antes de eu me instalar aqui. Era casada com um comerciante
inglês que morreu, um tipo chamado Peter Lowell, que eu ainda cheguei a
conhecer. Ele era muito mais velho que ela. Morreu há uns cinco anos. Espera
aí... Isso, coisa de cinco anos. Era bom homem, o Peter, muita gente aqui gostava
dele …”
“Quer dizer, o que sabes dela é tudo sobre o marido, então?”, insisti eu.
“Mas não sei muito, o que é que queres que te diga? Acho que ela é de uma
tribo Dayak do interior, Kenyah, se não estou em erro. Sei que ela e o Peter se
conheceram aqui e casaram aqui, depois viveram algum tempo em Inglaterra, uns
cinco anos, e depois voltaram para aqui…”
“Maria convidou‑me a tomar chá amanhã, em casa dela.”
“Morro de inveja. Caraças, porque é que nunca me convidou a mim?... Sabes,
James, eu no teu lugar não perdia um convite desses.”
“Eu também não tenho intenções nenhumas de o perder, se te interessa
saber... Mas deixemos isso agora, onde é que nós estávamos?”
“Dizias tu que te sentes sem raízes...”
“Bom, eu acho que não usei essa palavra, mas é, de facto, a palavra correta:
raízes. No fundo, o que eu preciso, Charles, é de criar raízes!…”, concordei
eu, e fiquei um bocado em silêncio, a meditar no peso daquela palavra. “Mas
enfim..., mudemos mas é de assunto, até porque há assuntos bem mais
interessantes que a minha pessoa: o que é que me dizes, por exemplo, ao facto
de o nosso Charles Vyner Brooke ter abdicado dos seus poderes absolutos de
rajá? Diz ele que quer que isso seja o primeiro passo para o estabelecimento de
uma democracia em Sarawak…”
“É natural, depois do que aconteceu e está a acontecer na Índia e em todo o
império. O que eu não sei é se é apenas
por isso, ou se Charles Vyner Brooke se
deu finalmente conta que isto de rajás brancos é uma coisa absurda, quase contra natura!...”
“Bom, Charles, tens de admitir que, se haver rajás brancos é contra natura, então todo o poder
colonial também é contra natura…”
“Talvez, mas o poder colonial nunca quis ser poder tradicional, e é isso
que é mais aberrante nesta história de Sarawak. Por outro lado, não sei até que
ponto é que a democracia pode funcionar numa terra como esta… Resta esperar e
ver como vão evoluir as coisas. Se os japoneses deixarem que alguma coisa
evolua, naturalmente…”
O ataque a Pearl Harbour tinha, naturalmente, criado uma situação de enorme
apreensão, quando não de pânico, em toda a região. Além disso, não tinha sido
só Pearl Harbour que tinha sido bombardeado – os japoneses tinham também feito raids sobre Hong Kong, a Malásia, as Filipinas, e as ilhas americanas de Guam,
Wake e Midway. Para muita gente, era óbvio que Bornéu, sobretudo Victoria,
estava na lista dos japoneses e havia muito quem esperasse uma invasão a
qualquer momento.
“É o mais provável”, comentou Charles. “Se eles começaram o que começaram,
é porque têm intenções de continuar, isso é certo…”
“E tu o que é que pensas fazer?”
“Vou esperar mais uns dias, de ouvido colado à BBC…”
“Pois, eu acho que vou fazer o mesmo. E acho que vou ter de abandonar o meu
plano de continuar o meu passeio até ao Brunei e depois até Labuan antes de
voltar para casa…”
Maria falava um inglês perfeito, com um ligeiro sotaque apenas – charmoso,
por tal sinal –, mas não como os locais, que trocam sempre os “ff” por “pp” e
os “vv” por “bb”.
“Como é que veio aqui parar?”, perguntei‑lhe.
“Como é que sabe que não sou daqui?”
“Bom, já me informei – sei tudo a seu respeito”, ri‑me eu.
Ela riu‑se também:
“Então já sabe que sou bruxa.”
“Não, isso ainda não sabia”, disse eu. E continuei, depois de uma pequena
pausa: “Mas, agora que sei, não me desagrada nada… Nada mesmo, de facto…”
“Foi assim que vim aqui parar: tive de fugir da minha terra, porque as
pessoas começaram a acusar‑me de tudo o que lá acontecia de mau – diziam que
era eu que provocava doenças das pessoas e do gado, tempestades, males dos
cultivos. Tinha só 18 anos e tive de abandonar tudo, família, amigos, porque
senão matavam‑me.”
“E era verdade?”, brinquei eu com ela. “Quero dizer, isso de ser bruxa, de
ser culpada das desgraças daquela gente?”
“Meu caro James, o que importa nestas coisas de bruxaria é se se acredita
nelas ou não – neste caso, havia muita gente que acreditava que era verdade, e
é isso que importa. Que importou, quero eu dizer…”
Curiosamente, não havia no rosto dela nada daquela expressão triste e meio
distante que costuma acompanhar a recordação de acontecimentos dolorosos.
“Tirando isso”, continuou, “deve ser falsa a acusação que me faziam, se
quer saber, porque não consigo fazer mal a muita gente ao mesmo tempo – só a
uma pessoa de cada vez…”, e riu‑se outra vez. Era um riso sem o peso da ironia
nem a futilidade do charme deliberado, apenas mais genuinamente alegre do que a
maior parte dos risos, e era, por isso mesmo, terrivelmente sedutor.
“Ah, eu conheço uma lenda kenyah, sobre plantas mágicas”, disse‑lhe eu. Era
uma história que me tinha contado uma vez um empregado da companhia na Cidade
de Sarawak, já não me lembro a que propósito. “É verdade que existe uma planta
que pode fazer que uma pessoa se apaixone por nós?”
“Foi só assim que lhe explicaram a lenda?”
“Foi. A pessoa que me contou isso disse que é uma planta que se dá na
comida ou em infusão à pessoa que queremos que se apaixone por nós e que essa
pessoa nunca mais nos abandona na nossa vida, nunca mais…”
“É uma versão muito simplificada da lenda, que é mais do que apenas uma
história banal de poção de amor. Primeiro, é preciso que a pessoa que quer
fazer o feitiço ingira a planta, se nunca a ingeriu. Quando se ingere a planta,
ela começa a crescer no corpo, dentro do nosso corpo, e fica lá para sempre.
Depois, é preciso tirar um bocado dessa planta do nosso próprio corpo e dá‑lo à
pessoa que queremos que não nos abandone nunca mais. É assim.”
“É, de facto, uma versão sofisticada de um filtro de amor”, disse‑lhe
eu.
“Não creio que seja um filtro de amor. O que a lenda diz é que a pessoa
nunca mais nos abandona, não que se apaixona por nós. Quer dizer, fica
connosco, independentemente dos sentimentos que tem por nós. Pode mandar‑se na
vida de uma pessoa, como você sabe, mas nos sentimentos ninguém manda, nem a
magia…”
O sentido da lenda era, para mim, evidente. Aliás, a magia funciona quase
sempre assim, por um esquema de relações evidentes. Um vegetal é símbolo de
imobilidade. Vida, mas vida imóvel. Compartilhar com outra pessoa uma parte da
vida que ela tem dentro de si significa, obviamente, uma espécie de simbiose
com ela, uma espécie quase de fusão, uma comunhão dramática, como a de irmãos
siameses.
“Mas então é uma poção ainda mais imoral que os filtros de amor vulgares”,
propus eu. “Quero dizer, a supor que tais filtros existissem de facto, usá‑los
seria sempre imoral: é agir sobre a vontade de uma pessoa, impor‑lhe uma
escravidão; mas podemos pensar que, por outro lado, estamos a oferecer‑lhe
aquilo que parece ser ambicionado por toda a gente em todo o lado, um amor
eterno e indestrutível, e isso pode ser visto como uma compensação para o mal
que estamos a fazer. Agora, sem que a pessoa sinta por nós amor eterno, Deus
meu, é ainda mais cruel obrigá‑la a ficar connosco.”
“Para isso ser verdade, é preciso aceitar que seja bom esse sentimento que
você diz que toda a gente quer sentir, essa paixão única e vitalícia… Para se
contrapor ao mal que há em forçar alguém, em reduzi‑lo a uma eterna servidão.
Eu não tenho essa certeza, que o amor assim seja uma coisa boa. Aliás, também
não tenho a certeza que seja uma coisa a que todos aspirem. Nem toda a gente lê
romances e poesia, James, nem toda a gente vive no mundo em que você e eu – eu,
pelo menos até um certo ponto... – vivemos. Além disso, o que sei da paixão diz‑me
que quando uma pessoa está apaixonada, a moral interessa‑lhe pouco. Não vale a
pena discutir qual a maneira eticamente correta de agir quando se está
apaixonado. É como quando se está a morrer de fome ou de sede, a mesma coisa.
Desculpe‑me a banalidade da comparação, mas não conheço nenhuma mais eficaz.”
“Muito bem, então pergunto‑lhe assim: se você estivesse terrivelmente
apaixonada e desejasse ardentemente ter a seu lado, para toda a vida, o objeto
da sua paixão, diga‑me lá, sinceramente…”
Ela aproveitou a pequena pausa que fiz para completar a minha frase:
“Se era capaz de usar a magia keniah? É claro que era, James. Eu sou uma
bruxa, não se esqueça.”
A conversa derivou para outros temas mais corriqueiros. Tinha a sensação, aliás,
que, como acontece muitas vezes em situações deste tipo, a conversa não era
senão um pretexto para estarmos ali os dois juntos e que a verdadeira
comunicação entre nós era a um nível outro que não o das palavras. Começou a
chover torrencialmente e tivemos de sair do terraço e correr para dentro de
casa. Maria pôs música e dançámos. Uma canção francesa. Era inacreditável, tudo
aquilo: eu a dançar ao som de uma canção francesa com uma dama de Bornéu…
Combinámos ver‑nos no dia seguinte, e no dia seguinte combinámos para o dia
seguinte, e assim sucessivamente. Não havia notícias de nenhuma invasão
japonesa em lado nenhum, mas a situação estava de dia para dia mais tensa. Charles
decidiu que era altura de sair dali, pelo menos por uns tempos.
“Vou ficar mais uns dias, antes de voltar para a Austrália”, disse-lhe eu
quando nos despedimos.
“Bom, enquanto quiseres ficar, ficas com a minha casa e com o meu pessoal à
tua disposição, mas vê lá se não ficas muito tempo – não é o melhor momento
para criar raízes, acho eu...”
Comecei a minha relação, digamos, mais íntima, com Maria na noite desse dia em que o Charles se foi
embora. Jantámos em casa dela e, depois de jantar, dançámos uma canção
apaixonada e lenta, como nos dias anteriores.
“Já chega, James”, disse ela, “não te escondo mais – se é que chego a
esconder – a maneira como gosto de ti!”
Disse isto e beijou-me. A música continuava, mas nós tínhamos parado de
dançar e beijávamo‑nos só, sôfrega e repetidamente. Quando o disco chegou ao
fim, estávamos ainda ali no meio da sala, unidos ainda em beijos ansiosos,
quase doridos de tanto desejo.
“Anda, disse ela, anda comigo!” Pegou na minha mão e levou‑me para o
quarto.
“Vou dar‑te o meu corpo, que já é teu. Quero que o vejas e o toques e o
sintas tremer, e o faças tremer ainda mais”, disse ela, com uma voz nervosa, de
costas para mim, enquanto começava a despir‑se. Tinha um corpo mais bonito do
que eu tinha conseguido imaginar nas dezenas de vezes em que tinha vivido
mentalmente esta cena finalmente real. O que me surpreendeu mais foi a minha
ausência de surpresa, como se o tivesse sempre sabido. Vi a mancha esverdeada
que se estendia por parte do ombro e do antebraço e que um penso cobria
parcialmente. Beijei‑lhe o pescoço e perguntei‑lhe calmamente:
“O teu corpo que já é meu, não é?”
“O meu corpo que já é teu.”
Não demorei muito a criar raízes em Miri.
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Notas do tradutor:
To have a frog in one’s
throat é, como muitos
saberão, uma expressão inglesa que significa “estar com catarro”. Compreenderão
que tive de a traduzir literalmente, uma vez que é num jogo sobre a sua
compreensão literal que se baseiam os sete primeiros parágrafos do conto, que
constituem como que uma introdução.
Traduzo Sarawak City por “Cidade
de Sarawak”, sobretudo para evitar a confusão entre a cidade e a região de que
é capital, que é hoje uma província da Malásia e que era, na época a que se
refere o conto, um território independente. O nome atual da cidade de Sarawak é
Kuching. Sarauaque seria, creio eu, uma grafia mais adequada, mas não me
atrevi, como não me atrevo, muitas vezes, às grafias mais adequadas…
Alguns leitores terão notado que, na última parte do texto, o tratamento
entre os dois protagonistas passa de “você” a “tu”, o que não pode ser
justificado pelo original inglês, já que em inglês you cobre as duas palavras portuguesas. Decerto concordarão, porém,
que tal mudança nesta parte do texto corresponde ao que aconteceria
naturalmente se a língua de comunicação entre James e Maria fosse uma língua
como o português, com duas formas de tratamento da segunda pessoa do singular
que marcam, entre outras coisas, a maior ou menor proximidade da relação entre
os interlocutores.
Camargo, 10 de setembro de 2000