Não há mal nenhum em ser turista, deixemo-nos de conversas; e, por muito que alguns se empenhem em afirmar o contrário, não há diferença real entre turista e viajante – ambos os termos referem quem passa nalgum lugar, quem observa com olhos que veem o que o residente não vê, quem sente menos o peso da pressão social e abusa até, de vez em quando, da liberdade que isso lhe dá, para o bem e para o mal; quem recolhe imagens e sons e cheiros que arquiva em álbuns de recordações, o mais das vezes apenas no ficheiro tão perecível—pobres de nós!—do seu sistema nervoso.
Turista ou viajante não se pode explicar como «estrangeiro». Estrangeiro é o que tem outra nacionalidade, mas o estrangeiro pode fazer parte do local, não estar ali a viajar, a fazer turismo – pode pagar impostos e ter cartão de saúde. E há turistas que não são estrangeiros, há-os que vêm apenas de outra província, talvez até de uma cidade vizinha. Um turista pode saber o nome de muitos bolos na montra da pastelaria, mas talvez não espere que lhes perguntem se quer a empada aquecida, porque isso se calhar não se faz lá na terra dele. «Ah, mas deve ser [deve ser, ele não tem a certeza] porque a senhora do bar é argentina.»
[Não sei como serão as empadas em Salta—e também não sei porque é que a senhora havia de ser de Salta, mas havia cafés na Bolívia, onde comia empadas salteñas quentes e davam-nos uma colher de café para comer o molho: trinca-se uma ponta, come-se com a colherzinha o líquido que sai e depois é que se leva a empada à boca. Na Bolívia, fui residente estrangeiro e turista só nalguns lugares: em Rurrenabaque e em Guayaramerín, uma vez que lá fui de férias; ou no Chapare—tirei fotografias da Karen com macacos ao colo, como os turistas costumam tirar.]
A senhora do bar deve antes ser uruguaia. É a tal coisa, não sei distinguir o sotaque argentino do sotaque uruguaio. Mas vende rosca de chicharrones, vejo agora, e isso é um petisco uruguaio, não é? Aqui, enquanto saboreio a empanada, sou ao mesmo tempo turista e estrangeiro. Um dos muitos que há em Barcelona. E na minha Lisboa Natal. O mais engraçado é que eu agora sou, a bem dizer, tão turista em Lisboa como em Barcelona. OK, concedo-vos que exagero um bocadinho, pronto, mas não tanto como possam pensar. É que a Lisboa em que eu não era turista é doutro tempo; e o tempo—deixem-me insistir nisto, que é uma verdade importante—é uma dimensão tão real e tão sólida como as três outras que estruturam o nosso espaço.Em Svendborg, sou estrangeiro, mas nunca viajante turista. «O centro? O centro é aqui mesmo», explico ao turistas norte-americanos. «A parte antiga…», insistem eles. «Também é aqui. Esta parte da cidade está cheia de edifícios antigos. Cheguem aqui. Veem ali aquela casa? É a mais antiga da cidade, de meados do séc. XVI.» Conheço em Svendborg uma janela decorada com umas miniaturas de plástico que representam uma sessão de strip-tease. Tenho residência na comuna e voto para as autárquicas. Estrangeiro sou, claro, com um sotaque que me denuncia tão imediatamente como a minha fisionomia. Aqui, o sotaque não me denuncia, nem a pinta sulista. É claro que não sou catalão, porque não falo a língua, mas bem que podia ser imigrante de outra parte de Espanha.
Não digam mal de turistas nem de viajantes nem de estrangeiros residentes. É impossível, pensem bem, que haja algum mal em ter-se nascido noutro lugar. «Quer moedas? Tenho o bolso cheio, a ver se me livro delas. Quanto é que lhe devo?»
Um turista austríaco diz-me que gostava de conhecer Lisboa, que ouviu dizer muito bem. «Lisboa é uma bonita cidade, sim, senhor, como há milhares por esse mundo fora. Agora está na moda, tem quase tantos turistas como Barcelona… E de que nos podemos queixar… nós, que também somos turistas?» «Pois, é verdade, mas há turistas e turistas… Há turistas de vários tipos.» A diferença entre turistas bons e maus é como a diferença entre turistas e viajantes—inventada pelos que se querem dar a si mesmo boa consciência, quando não afirmar algum tipo de superioridade. Conheci uma vez em Bordéus, há mais de 40 anos, um vagabundo profissional, esse sim, viajante essencial, porque não tinha casa nem terra a que chamar sua. «Turista em dificuldades, é isso que eu sou. Turista em dificuldades.» Pode ser essa a diferença, o grau de dificuldade. Para quem viaja com dinheiro que chegue para matar a fome e dormir abrigado todas as noites, não há diferença entre viajantes e bons e maus turistas.
Alguns estrangeiros têm algo em comum com os turistas em dificuldades: os estrangeiros em dificuldades. Saem de casa—do prédio onde estamos a morar, no Born—com trouxas muito grandes de peças de artesanato, que abrem nos sítios onde os turistas se concentram e que num ápice voltam a entrouxar quando aparece a polícia.
[Dumba nengue, diz-se em ronga: «confia no pé», que é o que tem de fazer o vendedor furtivo que a polícia persegue; ou chunga moio, como se diz em ndau, «coragem no coração».]
«Não se rouba nada a não ser cigarros para a noite», repetia sempre o Apache aos seus companheiros de turismo em dificuldades. Arranjar que fumar também pode ser difícil para alguns estrangeiros, creio eu. Os três indonésios por que passo interromperam o trabalho para fumar. Sei que são indonésios porque fumam kreteks, aqueles cigarros de tabaco e cravinho que há na Indonésia. Não lhes deve ser fácil encontrá-los em Barcelona. Ou então sim, em Barcelona encontra-se de tudo. Dois deles têm carrinhos de mão e um tem um triciclo de caixa de madeira, em que se vê escrito apenas um URL dos Países Baixos, qualquercoisa.nl... Se calhar, fazem entregas ou transportes para alguma companhia neerlandesa… Isto sou eu a inventar, sei lá o que fazem. Antigamente, as pessoas que faziam transportes e entregas para uma empresa chamavam-se paquetes, não sei se a designação ainda se utiliza. De 1861 a 1949, o que é hoje a Indonésia chamava-se Índias Orientais Neerlandesas.
[Em Moçambique, chama-se tchova-xitaduma aos carrinhos de mão de aluguer para transporte seja lá do que for, de mobílias a materiais de construção. É ronga e significa «empurra que há de pegar»—os moçambicanos gostam muito de fazer pouco das suas próprias dificuldades, para usar a expressão com que o Apache descrevia o tipo de turismo que fazia.]
Os nomes das coisas vão mudando e nem sempre é fácil manter-se atualizado. Outras vezes, os nomes mantêm-se e mudam as coisas que eles designam. O nome Lisboa já não refere exatamente a mesma cidade que conheci em rapaz novo; e Barcelona também mudou muito desde que a vi pela primeira vez, em outubro de 1976 – há 42 anos, quem diria? O tempo é uma dimensão duríssima, tão dura como as pedras das catedrais. Em 1976, havia incomparavelmente menos turistas que agora.Os turistas de agora—sobretudo se forem desses turistas que se chamam a si próprios viajantes—queixam-se do excesso de turistas e são nisso iguais a muitos residentes, que se queixam também do excesso de turistas. Muitos residentes espanhóis queixam-se também do excesso de residentes estrangeiros e há até residentes estrangeiros que também se queixam do excesso dos estrangeiros que lhes são estrangeiros. Muitos residentes estrangeiros trabalham em bares, restaurantes e lojas para turistas, que parecem ser metade do comércio da cidade. Estranho comércio de decorativas inutilidades. Dito assim, parece depreciativo, mas não tem de o ser: ser inútil e decorativo é uma caraterística da maior parte das obras de arte, não fica mal a nenhuma artesania para turistas ser também inútil e decorativa.
Uma grande oficina de serralharia o ar livre na Sagrada Família – ou o que dela se consegue ver através
da vedação de metal. As obras continuam, hão de continuar.
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Estava magnífica, Barcelona, num início de outubro ainda estival. Quando voltar, fico no Poble Sèc ou em Sants, onde não há tantos turistas. Pode ser que da próxima vez me decida finalmente a ir visitar por dentro o Temple Expiatori de la Sagrada Família, todos me garantem que vale mesmo a pena.
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