30/10/21

Um pecado não muito original

 "Estavam ambos nus, o homem e sua mulher, sem terem vergonha um do outro.

Ora a serpente era o animal mais astuto dos campos que Deus Senhor fizera. Disse à mulher: 
– Deveras? Deus disse «Não comereis de todas as árvores do jardim»? 
Respondeu a mulher à serpente: 
– Do fruto das árvores do jardim podemos comer; mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: «Não comereis dele, nem nele tocareis, para não morrerdes». 
A serpente disse à mulher: 
– Não, não morrereis; mas Deus sabe que no dia em que comerdes do fruto, abrir-se-vos-ão os olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal. 
Viu, pois, a mulher que a árvore era boa para comer, que era uma delícia para os olhos, e que era árvore desejável para adquirir sabedoria; tirou dela um fruto e comeu dele; deu também o fruto a comer a seu marido, e ele comeu. E abriram-se os olhos de ambos e deram-se conta de que estavam nus; coseram folhas de figueira, e delas fizeram tangas. Ouviram os passos de Deus Senhor que passeava pelo jardim na brisa do dia; e o homem e a mulher esconderam-se de Deus Senhor entre as árvores do jardim. 
E Deus Senhor chamou o homem e perguntou-lhe: 
– Onde estás? 
E o homem respondeu: 
– Ouvi a tua voz no jardim, e tive medo, porque estava nu; e escondi-me. 
Perguntou-lhe Deus: 
– Quem te revelou que estavas nu? Comeste da árvore de que te mandei não comer?"
[Livro da Génese, cap. 2 e 3]

Tommaso Masolino da Panicale: A tentação de Adão e Eva, 1426-1427. Fresco, Capela Brancacci, Florença. 
Por volta de 1670, os frescos foram pintados por cima, para tapar a nudez, tendo sido restaurados no fim do século XX. 

Masaccio (Tommaso di Ser Giovanni di Simone): A expulsão de Adão e Eva do Éden, 1426-1428. Fresco, Capela Brancacci, Florença 
As folhas de figo foram acrescentadas em 1680 e foram de novo retiradas numa restauração feita em 1980.

Hubert van Eyck, Retábulo de Gante ou Adoração do Cordeiro Místico, concluído em 1432. Pintura sobre painel, Catedral de São Bavão, Gante 
No século XIX, as representações originais de Adão e Eva nus foram consideradas inaceitáveis numa igreja e os painéis foram substituídos por reproduções vestidas (à esquerda).


22/10/21

Televisão: programação de 3 a 9 de outubro de 1965 [Crónicas de Svendborg #41]

Eis a programação da televisão dinamarquesa para a semana de domingo 3 de outubro até sábado 9 de outubro de 1965, tal como aparece na revista Billedbladet de 1 de outubro desse ano.

Eu tinha nessa altura seis anos. Tínhamos televisão lá em casa e tenho a impressão que a programação da televisão portuguesa era muito diferente da dinamarquesa, mas, é claro, não passa disso mesmo – uma impressão. Seria curioso encontrar uma revista com a programação da televisão portuguesa dessa altura (ou de outro país, porque não?), para verificar se era de facto assim tão diferente. 

Seja como for, surpreende-me a quantidade de programas informativos e educativos, a qualidade dos programas culturais, e o facto de, numa semana, haver apenas duas séries americanas, os Flintstones e The Defenders, uma série sobre advogados e tribunais que eu creio que nunca passou em Portugal.

DOMINGO
9:55 Missa de outono transmitida da igreja dinamarquesa de Glücksburg, na Alemanha. [Glücksburg fez já parte da Dinamarca e continua a haver na região muitos falantes do dinamarquês. Indica-se no programa o nome do pastor e os salmos que vão ser cantados.]
20:00 «Bactérias ao microscópio»: Ingvald Lieberkind fala de um filme científico russo sobre bactérias.
20:25 Ópera «O Barbeiro de Sevilha». Transmissão do Kornmarktteatret, em Bregenz, Áustria.
No intervalo:
22:05 Notícias, incluindo as notícias desportivas de domingo
23:05 Telejornal.

SEGUNDA FEIRA
9:15–9:40 «Os elementos mais pequenos da matéria»: primeiro filme da série «As moléculas na Física».
17:15–18:00 Programa «A casinha das bonecas»: 1. «Bichana de olhos azuis», primeira parte de um romance para os mais pequenos; 2. «Caça ao tesouro na biblioteca», uma visita à biblioteca familiar de Vejlby-Risskov.
20:00 Notícias.
20:20 «A criança deficiente que vive com os pais»: o apoio social oferece muito pouco aos pais que não têm seus filhos numa instituição?
21:20 Teleteatro: «A Aula», peça de Engene Ionesco.
22:15 Visita do Papa às Nações Unidas. Transmissão da mensagem do Papa Paulo IV à Assembleia Geral da ONU.
22:45 Telejornal.

TERÇA-FEIRA
9:15–9:35 «A caminho da escola»: primeiro episódio do programas sobre segurança rodoviária para os mais jovens.
11:55 Abertura do Parlamento. Transmissão do discurso de abertura do Primeiro-Ministro Jens Otto Krag no início do novo ano parlamentar.
17:30–18:00 «O que fazer?», programa sobre livros
19:30 «Walter e Connie»: 1ª e 2ª aula de «Inglês na TV»
20:00 Notícias.
20:20 O novo ano parlamentar: entrevista com o primeiro-ministro Jens Otto Krag sobre os principais pontos do discurso de abertura do ano parlamentar.
20:45 «Do desporto à arte»: a dança dos séculos XVI e XVII. 1. episódio da série «História e estética do ballet».
21.15–22.00 Programa «Horizonte»: comentários sobre a actualidade política estrangeira.

QUARTA-FEIRA
13:15–13:40 «Os elementos mais pequenos da matéria»: primeiro filme da série «As moléculas na Física». (Retransmissão).
19:30 «O corpo humano»: primeiro filme da série sobre o corpo humano.
20:00 Notícias.
20:20 «A natureza vista ao microscópio»: vamos de novo apanhar cogumelos com o Professor Morten Lange nas florestas de Sorø.
20:35 Teleteatro. «Ateljé Mia», uma peça de Lars Helgesson (Emissão da televisão sueca).
21:20 Jazz.
21:50 Programa escolar. Informação sobre uma série experimental sobre matemática.
22.30 Telejornal.

QUINTA-FEIRA
13:15–13:35 «A caminho da escola»: primeiro episódio do programas sobre segurança rodoviária para os mais jovens. (Retransmissão de 5/10 9.15).
15:15–16:00 Programa «A casinha das bonecas»: 1. «Bichana de olhos azuis», primeira parte de um romance para os mais pequenos; 2. «Caça ao tesouro na biblioteca», uma visita à biblioteca familiar de Vejlby-Risskov. (Retransmissão)
19:30 Notícias desportivas.
20:00 Notícias.
20:20 «O lago»: documentários sobre uma reserva indígena na floresta virgem do Brasil (BBC).
20:50 Com 10 centavos no bolso. Estreia dinamarquesa. Fime americano de 1941 ("Sullivan's Travels").
22:20 Telejornal.

SEXTA-FEIRA
15:30–16:00 «O que fazer?», programa sobre livros (Retransmissão).
19:30 «Os elementos mais pequenos da matéria»: primeiro filme da série «As moléculas na Física». (Retransmissão).
20:00 Notícias.
20:20 «Tons negros»: documentário sobre a vida numa fazenda branca sul–africana (BBC).
21:00 Actualidade cinematográfica («Note que esta emissão pode incluir excertos de filmes proibidos para crianças»).
21:20 Promenade Concert de Londres. Orquestra Sinfónica da BBC dirigida por Sir MaIcolm Sargent.
22:35 Telejornal.

SÁBADO
16:00 «Os Flinstones», desenhos animados
16:25 «Uma deficiência – e então?»: visitamos jovens desportistas com deficiências.
17:10–17:55 Jornal de sábado
19:30 «Walter e Connie». 1ª e 2ª aula de «Inglês na TV»
20:00 Notícias.
20:20 «As famílias do concurso “Tétrade”»: apresentação dos participantes do concurso televisivo desta noite.
20:30 «Tétrade»: Concurso musical entre famílias nórdicas, esta noite de Oslo (Nordvision da Noruega).
21:30 Programa «Duelo»: Poul Trier Pedersen entrevista dois convidados.

21/10/21

Da boa educação


Há agora no Facebook uma moda de páginas que fazem perguntas às pessoas: «Destas capitais, quais é que já visitou?», «Qual foi a sua primeira viagem de avião?», etc. Quando uma pessoa nossa amiga responde a uma destas perguntas, vemos a resposta dessa pessoa e sentimo-nos tentados a responder também, muitas vezes até mais para dialogar com a amiga ou o amigo que respondeu, creio eu.

Enfim, não costumo responder a coisas dessas e às vezes até escolho a opção de nunca mais voltar a ver a página, mas já me aconteceu cair em tentação. Aqui há umas semanas, vi uma «pergunta» que era qualquer coisa como «Se me convidarem para jantar, o meu maior medo é que seja…» E, em vez de escrever um prato qualquer que me desagrade, como escrevia toda a gente, escrevi apenas «…pouco»: «Se me convidarem para jantar, o meu maior medo é que seja pouco.»
 
Por um lado, gosto de tudo (a sério!); por outro lado, aprendi com a minha avó, uma mulher muito sábia, que, quando nos convidam para comer, a gente deve mesmo encher a barriga! Mais concretamente, a expressão dela era esta:

«Ó filho, também a gente ficar em favores e ainda por cima passar fome…»

[Pelo traço, a ilustração é quase de certeza de Charles Dana Gibson (1867– 1944), mas não tenho a certeza absoluta. Não consigo encontrar nem título nem data da obra. Uso aqui uma parte apenas da imagem original e ligeiramente modificada por mim.] 

11/10/21

Reabilitação com guitarra

[Não é uma história de um lar, desta vez, mas sim uma história do hospital. Também ela acontecida, como quase todas as histórias que aqui conto.]

Reunião para combinar os passos e objetivos seguintes do processo de reabilitação neurológica de Jorge: estão presentes o Jorge, a mulher dele e o pessoal do serviço de reabilitação neurológica que mais diretamente trabalha com ela: uma fisioterapeuta, um ergoterapeuta, uma enfermeira e uma médica. Jorge teve um acidente vascular cerebral, de que resultou paralisia parcial do lado direito do corpo. Depois de um mês de reabilitação intensiva, os progressos são muitos: a afasia expressiva praticamente desapareceu e Jorge já consegue fazer sozinho muitas das suas atividades diárias, embora ainda mexa pouco o braço e a perna direita. Está muito satisfeito com os progressos que tem feito, em grande parte devido ao seu grande empenho na reabilitação, e isso vê-se-lhe bem na expressão do rosto.

«E que tal começar a tentar tocar guitarra outra vez? Não fazer dedilhados, claro está, que isso ainda não é possível, mas só palhetar, para treinar a mão direita», propõe a certa altura o ergoterapeuta. Antes do AVC, Jorge era um exímio guitarrista, além de que compunha e escrevia letras para canções.

A expressão de Jorge altera-se completamente. Fica de repente muito triste.

«Nem pensar nisso», diz ele. «A guitarra nunca pode fazer parte do treino. Nunca. Só lhe volto a tocar quando tiver o controlo perfeito da mão direita… Se alguma vez o recuperar, seja… Senão, nunca mais toco numa guitarra.»

04/10/21

Elogio da boa vida em forma de fado

 

Ele era um bom rapaz, trabalhador, 
Um operário leal cumprindo o bem. 
Vint'anos de ilusões brotando em flor 
E uma terna afeição por sua mãe. 
Mas um dia fatal, os companheiros 
Levaram-no à taberna onde parava 
A malta dos vadios e desordeiros, 
Dos quais um à guitarra assim cantava: 

Um fadinho a soluçar 
Faz de nós afugentar 
A ideia da própria morte; 
Mata a dor, mata a tristeza, 
Jacques Alfred Van Muyden (1918–1998): Três músicos romanos numa taberna, s. d.
O fado é bendita reza 
Dos desgraçados sem sorte, 
Tem tal dor e mágoa tanta,
Quando canta uma garganta
De quem vive amargurado,
Que o refúgio preferido
P’ra quem viver dolorido
Está na doçura do fado 

Esta triste canção foi mau agoiro 
Que a vida lhe viesse transtornar 
Tomou gosto à taberna, o matadoiro, 
E em breve deixou de trabalhar (…) 

Parecerá normal a equivalência que se estabelece neste «Fado maldito[1]» entre ser «um bom rapaz» e «cumprir o bem» e ser «trabalhador» e «um operário leal». O louvor — quando não o culto — do trabalho é transversal a quase todas as camadas e grupos sociais, e, pelo menos no mundo em que cresci, só nos estratos sociais mais baixas é que o louvor do trabalho convivia com a apologia da recusa de se deixar aprisionar no mercado laboral e tentar sobreviver doutra maneira, o mais das vezes dedicando-se a alguma atividade ilegal. 
A questão dá pano para mangas. Mas, se não se pode —pelo menos na praça pública — aceitar o elogio do não fazer nada como modo de vida, que vergonha!, pode-se certamente aceitá-lo como tema humorístico — até porque o humor resulta, em geral, de uma perturbação na normalidade das coisas, não é verdade? E então, se há fados como o que cito acima, que fazem corresponder à perdição a vida de boémia e o não querer trabalhar, também há outros em que desfilam simpáticos mandriões que suscitam no ouvinte mais simpatia que reprovação. 
Preguiça é a palavra que costuma definir este topos humorístico. Evidentemente, nestes fados, não há nunca uma tomada de posição política[2]: a recusa do trabalho é sempre apresentada como um (simpático) defeito de carácter. Um traço de personalidade, enfim. Pelo que nos canta Joaquim Cordeiro, em «Trabalho, vai-te embora[3]», a preguiça é até hereditária. Mas o mais curioso neste fado é que sugere que a profissão ideal para quem não quer fazer nada é a de ator — uma profissão, ainda assim, demasiado trabalhosa para um mandrião que se preze, como a personagem da canção.
Vejo pás e picaretas
Nos buracos da Avenida; 
E vejo a Rua das Pretas
Cada vez mais encardida;
Vejo a malta a protestar,
Porque o Benfica perdeu; 
Vejo tudo a trabalhar, 
Quem não trabalha sou eu

Trabalho, vai-te embora, 
Ai de mim, estou tão cansado. 
Isto de ser calão já é meu fado 
Ficou escrito no vento este dilema: 
Nem que me levem para o cinema 
 P’ra ser galã dos mais catitas, 
Ser um bijou bonito e fazer fitas... 
Ai de mim que não consigo fazer coisas tão esquisitas! 

Oiço gritos, correrias, 
Quando aparece um emprego.
Acordo todos os dias
E ainda não fui ao prego.
Já dizia a minha mãe: 
«Filho, não te dê cuidado, 
Que o teu paizinho também
Tinha nascido cansado». 
Outro fado de Joaquim Cordeiro sobre este tema da preguiça é «Bendito seja o descanso[4]». Trata-se aqui de uma anedota em verso, com um desfecho bem achado. Acho curioso que o Chico Malhado ponha a questão do trabalho em termos de gosto. Quase se pode descortinar nos dois patuscos mandriões uma postura aristocrática.
De corpinho estiraçado,
À sombra de uma figueira, 
Estava o Chico Malhado 
Mais o Baltazar Pintado 
Dois campeões da lazeira, 
O Malhado a bocejar, 
Passando as mãos pelo rosto.
Perguntou. «Ó Baltazar,
Quem gosta de trabalhar,
Não achas que tem mau gosto?»
«Camarada mandrião», 
Diz-lhe o outro com ripanço,
«Tens muita e muita razão,
Sou da tua opinião,
Bendito seja o descanso!!... 
Trago um projecto na mente 
Carrega-se unicamente 
Num botão e, de repente, 
Aparece tudo feito.»  
Diz o Malhado: «Isso, amigo,
É uma grande invenção,
Mas escuta o que te digo:
Não deves contar comigo
P'ra carregar no botão!»
Um outro fado que é também uma anedota versificada sobre o mesmo tema é «Os Preguiçosos[5]». Na minha opinião, o fado é notável pela frase «com dotes colossais p’ra descansar», um verdadeiro achado retórico, mas o desfecho da história assenta num jogo de palavras simples e conhecido.
Stock image. Autor, título e data desconhecidos.

O Chico Barnabé e o Zé Ramalho, 
Com dotes colossais p’ra descansar, 
Se um não gostava nada do trabalho, 
O outro tinha raiva em trabalhar.
E assim andavam neste rodopio, 
Dois amigos leais da boa vida
E, p’ra não aturarem senhorio, 
Pernoitavam nos bancos na Avenida.
Mas certa noite em que pernoitavam,
Um polícia de giro ali passou.
Por fim, enquanto os dois se espreguiçavam, 
O guarda ao Barnabé assim falou: 
«Diga-me qual a sua profissão 
E responda-me já, sem fantasia!» 
«Pois saiba que trabalho, pois então, 
Na firma Boavida & Companhia.» 
«E você?», diz o guarda ao Zé Ramalho,
«Diga-me sem mentir, responda já!» 
«Pois bem, fique sabendo que trabalho 
E estou na mesma casa onde este está!» 
A expressão boa vida é a chave deste meu breve devaneio. Geralmente, a anteposição do adjetivo ao nome fá-lo perder a sua função qualificativa: um grande homem não é um homem que é grande e por aí adiante. Não vou entrar aqui em pormenores — mais por preguiça que por outra razão qualquer. Uma vida boa pode significar uma vida sem problemas de saúde ou de dinheiro, uma vida interessante, folgada, com boas condições… de vida, precisamente, uma vida… boa, enfim; e uma vida má é o contrário disso: doença, miséria, problemas de toda a sorte. Já a boa vida não é o contrário da má vida. Muitas vezes, as expressões são quase sinónimas. A má vida é a vida da personagem decaída do primeiro fado deste texto. Mas essa má vida é, afinal — e pelo menos no que diz respeito a não trabalhar – a boa vida. Talvez não seja esse o caso do protagonista do «Fado maldito», não sei, mas, com alguma sorte, esta (má/boa) vida pode ser até ser uma vida boa.

______________
[1] Raúl Ferrão, sobre versos de Pedro Bandeira e Álvaro Leal. Mais aqui
[2] Quando digo «tomada de posição política », estou a pensar no célebre «direito à preguiça«, defendido por Paul Lafargue, na obra com esse nome de 1880, em que se defende que o natural da espécie humana é a procura do prazer e não o amor ao trabalho, que ele considera «um dogma desastroso» e uma «estranha loucura», quando vindo da classe trabalhadora, e que é, segundo ele, «a causa de toda a degenerescência intelectual e de toda a deformação orgânica». Ora, preguiça é uma palavra curiosa, porque não define, em princípio, a recusa de um trabalho formal, apenas o excesso de inércia e de falta de iniciativa. Na realidade, muitas das atividades dos «malandros« que vivem fora do trabalho formal não se prestam em absoluto para preguiçosos, mas isso é outra história. Note-se, a propósito, que a expressão «mulheres de vida fácil» que antigamente se usava para se designar as trabalhadoras sexuais — e que remete também para a «boa vida» que se discute neste texto — dá-nos conta de que o trabalho sexual estava também incluído no «não (querer) trabalhar». 
[3] Uma versão do célebre “Saudade, vai-te embora”, de Júlio de Sousa. Desconheço o autor da letra da versão humorística.
[4] Com versos de Armando Coutinho Dias e música do «Fado Patolas» (de Alcídia Rodrigues, ao que consigo descobrir).
[5] Com letra de Aureliano Lima da Silva e música do «Fado Margaridas», dos irmãos Casimiro e Miguel Ramos

02/10/21

Mais duas histórias de um lar

[São histórias verdadeiras, como as anteriores. A segunda é uma das histórias alegres que, como vos disse, também há nos lares.]

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– Era enfermeira, D. Maria Luísa? Vejo que lava muito bem as mãos, como uma profissional.

– Só aprendi a lavar bem as mãos agora com o COVID. Por acaso, quando era rapariga nova, queria ser enfermeira, mas nunca cheguei a ser. Com 17 anos, comecei a trabalhar num hospital, assim só como ajudante. Tinha um horário das 7 às 12 e das 13 às 17, todos os dias. Limpava, lavava, ia buscar coisas, fazia o que me pediam. Era para ganhar prática, para depois começar a estudar para enfermeira.

E depois, um dia, internaram um rapaz da minha idade. Estava muito doente. Não sei o que é que ele tinha. Nunca tive de tratar dele, nem de lhe dar nada, eram só as enfermeiras que tratavam dela. Mas passava às vezes pela cama dele e parava e ficava a olhar para ele. Acho que ele nem sequer me via, nem via ninguém, de tão mal que estava, coitado. Vi-o morrer. E a morte dele perturbou-me tanto que deixei o trabalho no hospital. E decidi que já não queria ser enfermeira.

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– Tem um minutinho para mim, D. Teresa?

– Claro, D. Amélia! Diga lá.

A D. Teresa é a diretora do lar e a D. Amélia é uma das pessoas que lá vive. Está lá a viver há dois anos, mas tem uma longa relação com o lar, que começou muito antes de a D. Amélia ser a diretora. Primeiro, trabalhou lá como enfermeira os últimos doze anos da sua carreira. Quando se reformou, ajudava no centro de dia dois dias por semana, como voluntária. Depois, passou ela própria a ser utente do centro de dia. Finalmente, quando a saúde se deteriorou ainda mais, foi viver para o lar. 

– Estive a falar com a minha filha e com o meu filho, que são os meus herdeiros naturais. Já os pus a par da minha decisão e eles acham muito bem: decidi dar ao lar a minha herança. Não é muito, não pense, mas ajuda. Para atividades extras que não estejam cobertas pelo orçamento normal. Sei lá, festas e espetáculos no lar, passeios, coisas assim. Mas, antes disso, queria já dar um dinheiro que eu tenho no banco e que não me faz falta para fazer uma festa este verão. Um almoço e depois um conjunto a tocar. Gostava que se servisse leitão. O que é que acha?


Cabeça de porco

Uma vez, no Alto Molócuè, em Moçambique, fiz uma cabeça de xara que ninguém conseguiu comer. A receita era boa. Tinha-ma mandado por carta um amigo meu, porque nessa altura ainda não havia telefone no Alto Molócuè, de maneira que nem pensar em e-mail — que ainda era, aliás, uma coisa rara nessa altura… A receita era boa, dizia eu, mas a carne de porco era tão má, tão má, com um sabor tão forte a bicho, que tivemos de deitar fora a cabeça de xara. Uma pena, enfim, depois do trabalho que me deu...

No ano passado, comprámos meio porco e eu, claro, tinha aproveitar a meia cabeça que ali tinha, mas pensei em fazer desta vez um fromage de tête ou pâté de tête, que é uma cabeça de xara francesa. Não há grande diferença no processo nem no aspeto – até porque o aspeto pode variar muito de uma cabeça de xara para a outra e de um pâté de tête para o outroOs temperos, porém, são diferentes. Aliás, este prato existe em toda a Europa e um pouco por todo o mundo, mas, claro, os ingredientes podem variar de sítio para sítio.

Mais uma excursão, peço desculpa. Voltemos à vaca fria. Ou ao porco frio, seja... Decidi então fazer um fromage de tête, mas apeteceu-me cortar na gordura e à gelatina, e fiz uma coisa praticamente só com carninha. Ficou bem bom, por tal sinal, mas, de aspeto, em vez de pâté de tête, parecia mais rillettes — que não se fazem da cabeça... Com base numa receita do blogue La Bonne Bouffe à Sam, fiz assim: 

Agarrei em meia cabeça de porco limpa e escaldada, salguei-a bem salgada e deixei-a um dia com sal no frigorífico. Depois, passei-a por água para lhe tirar o sal que não tinha sido absorvido, e fervi-a com pouca água, só o suficiente para cobrir a cabeça e os temperos que lhe juntei: uma cenoura, uma cebola, um bocado de rama de alho francês, um talo de aipo, um bolbo de funcho, tudo cortado aos bocados grosseiramente, cerca de um decilitro de vinagre (normalmente, põe-se mais, mas o resto da a malta cá de casa não gosta de coisas avinagradas…) e pimenta, uns cravinhos, salsa e três estrelas de anis – ou três anises-estrelados, que deve ser mais correto. Gostei mesmo muito do conspícuo sabor anisado do pâté, se é que conspícuo de pode usar para sabores, mas também percebe que pode desagradar a muita gente. Vocês verão que temperos querem pôr no caldo…

Depois é deixar cozer muito tempo, juntando água se se tiver evaporado demasiado líquido. Está pronto quando a carne se separar dos ossos. E pronto, passa-se tudo pelo passador, escolhe-se que carne, gorduras e cartilagens se quer aproveitar, cortam-se aos bocados (o tamanho é ao gosto de cada um) e depois põe-se num recipiente e cobre-se com o caldo de cozer, que, entretanto, se reduziu, fervendo-o, pelo menos para metade do que tinha ficado. Este caldo há-se tornar-se geleia depois de arrefecer umas horas num lugar frio (o frigorífico, creio, para a maior parte das pessoas que me leem). Há muitas receitas em que, em vez de se envolver apenas a carne com geleia, se a comprime com um pano. Também fica ao critério de cada um.

Na Dinamarca, o que corresponde à cabeça de xara e ao fromage de tête é uma coisa que se chama sylte. É também parecido no aspeto com as variantes latinas, mas é normalmente mais avinagrado. Aqui perto, há um talho que faz uma sylte deliciosa, que em 2015 ganhou o prémio de melhor sylte da Dinamarca. A sylte deles, curiosamente, também é só carninha, como o meu pâté.