"Estavam ambos nus, o homem e sua mulher, sem terem vergonha um do outro.
Ora a serpente era o animal mais astuto dos campos que Deus Senhor fizera. Disse à mulher:– Deveras? Deus disse «Não comereis de todas as árvores do jardim»?Respondeu a mulher à serpente:– Do fruto das árvores do jardim podemos comer; mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: «Não comereis dele, nem nele tocareis, para não morrerdes».A serpente disse à mulher:– Não, não morrereis; mas Deus sabe que no dia em que comerdes do fruto, abrir-se-vos-ão os olhos, e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.Viu, pois, a mulher que a árvore era boa para comer, que era uma delícia para os olhos, e que era árvore desejável para adquirir sabedoria; tirou dela um fruto e comeu dele; deu também o fruto a comer a seu marido, e ele comeu. E abriram-se os olhos de ambos e deram-se conta de que estavam nus; coseram folhas de figueira, e delas fizeram tangas. Ouviram os passos de Deus Senhor que passeava pelo jardim na brisa do dia; e o homem e a mulher esconderam-se de Deus Senhor entre as árvores do jardim.E Deus Senhor chamou o homem e perguntou-lhe:– Onde estás?E o homem respondeu:– Ouvi a tua voz no jardim, e tive medo, porque estava nu; e escondi-me.Perguntou-lhe Deus:– Quem te revelou que estavas nu? Comeste da árvore de que te mandei não comer?"
30/10/21
Um pecado não muito original
22/10/21
Televisão: programação de 3 a 9 de outubro de 1965 [Crónicas de Svendborg #41]
Eis a programação da televisão dinamarquesa para a semana de domingo 3 de outubro até sábado 9 de outubro de 1965, tal como aparece na revista Billedbladet de 1 de outubro desse ano.
Eu tinha nessa altura seis anos. Tínhamos televisão lá em casa e tenho a impressão que a programação da televisão portuguesa era muito diferente da dinamarquesa, mas, é claro, não passa disso mesmo – uma impressão. Seria curioso encontrar uma revista com a programação da televisão portuguesa dessa altura (ou de outro país, porque não?), para verificar se era de facto assim tão diferente.
Seja como for, surpreende-me a quantidade de programas informativos e educativos, a qualidade dos programas culturais, e o facto de, numa semana, haver apenas duas séries americanas, os Flintstones e The Defenders, uma série sobre advogados e tribunais que eu creio que nunca passou em Portugal.
DOMINGO21/10/21
Da boa educação
Há agora no Facebook uma moda de páginas que fazem perguntas às pessoas: «Destas capitais, quais é que já visitou?», «Qual foi a sua primeira viagem de avião?», etc. Quando uma pessoa nossa amiga responde a uma destas perguntas, vemos a resposta dessa pessoa e sentimo-nos tentados a responder também, muitas vezes até mais para dialogar com a amiga ou o amigo que respondeu, creio eu.
Por um lado, gosto de tudo (a sério!); por outro lado, aprendi com a minha avó, uma mulher muito sábia, que, quando nos convidam para comer, a gente deve mesmo encher a barriga! Mais concretamente, a expressão dela era esta:
«Ó filho, também a gente ficar em favores e ainda por cima passar fome…»
11/10/21
Reabilitação com guitarra
[Não é uma história de um lar, desta vez, mas sim uma história do hospital. Também ela acontecida, como quase todas as histórias que aqui conto.]
Reunião para combinar os passos e objetivos seguintes do processo de reabilitação neurológica de Jorge: estão presentes o Jorge, a mulher dele e o pessoal do serviço de reabilitação neurológica que mais diretamente trabalha com ela: uma fisioterapeuta, um ergoterapeuta, uma enfermeira e uma médica. Jorge teve um acidente vascular cerebral, de que resultou paralisia parcial do lado direito do corpo. Depois de um mês de reabilitação intensiva, os progressos são muitos: a afasia expressiva praticamente desapareceu e Jorge já consegue fazer sozinho muitas das suas atividades diárias, embora ainda mexa pouco o braço e a perna direita. Está muito satisfeito com os progressos que tem feito, em grande parte devido ao seu grande empenho na reabilitação, e isso vê-se-lhe bem na expressão do rosto.
«E que tal começar a tentar tocar guitarra outra vez? Não fazer dedilhados, claro está, que isso ainda não é possível, mas só palhetar, para treinar a mão direita», propõe a certa altura o ergoterapeuta. Antes do AVC, Jorge era um exímio guitarrista, além de que compunha e escrevia letras para canções.
A expressão de Jorge altera-se completamente. Fica de repente muito triste.
«Nem pensar nisso», diz ele. «A guitarra nunca pode fazer parte do treino. Nunca. Só lhe volto a tocar quando tiver o controlo perfeito da mão direita… Se alguma vez o recuperar, seja… Senão, nunca mais toco numa guitarra.»
04/10/21
Elogio da boa vida em forma de fado
Ele era um bom rapaz, trabalhador,Um operário leal cumprindo o bem.Vint'anos de ilusões brotando em florE uma terna afeição por sua mãe.Mas um dia fatal, os companheirosLevaram-no à taberna onde paravaA malta dos vadios e desordeiros,Dos quais um à guitarra assim cantava:Um fadinho a soluçarFaz de nós afugentarA ideia da própria morte;Mata a dor, mata a tristeza,O fado é bendita reza
Jacques Alfred Van Muyden (1918–1998): Três músicos romanos numa taberna, s. d. Dos desgraçados sem sorte,Tem tal dor e mágoa tanta,Quando canta uma gargantaDe quem vive amargurado,Que o refúgio preferidoP’ra quem viver doloridoEstá na doçura do fadoEsta triste canção foi mau agoiroQue a vida lhe viesse transtornarTomou gosto à taberna, o matadoiro,E em breve deixou de trabalhar (…)
Vejo pás e picaretasNos buracos da Avenida;E vejo a Rua das PretasCada vez mais encardida;Vejo a malta a protestar,Porque o Benfica perdeu;Vejo tudo a trabalhar,Quem não trabalha sou euTrabalho, vai-te embora,Ai de mim, estou tão cansado.Isto de ser calão já é meu fadoFicou escrito no vento este dilema:Nem que me levem para o cinemaP’ra ser galã dos mais catitas,Ser um bijou bonito e fazer fitas...Ai de mim que não consigo fazer coisas tão esquisitas!Oiço gritos, correrias,Quando aparece um emprego.Acordo todos os diasE ainda não fui ao prego.Já dizia a minha mãe:«Filho, não te dê cuidado,Que o teu paizinho tambémTinha nascido cansado».
De corpinho estiraçado,À sombra de uma figueira,Estava o Chico MalhadoMais o Baltazar PintadoDois campeões da lazeira,O Malhado a bocejar,Passando as mãos pelo rosto.Perguntou. «Ó Baltazar,Quem gosta de trabalhar,Não achas que tem mau gosto?»«Camarada mandrião»,Diz-lhe o outro com ripanço,«Tens muita e muita razão,Sou da tua opinião,Bendito seja o descanso!!...Trago um projecto na menteCarrega-se unicamenteNum botão e, de repente,Aparece tudo feito.»Diz o Malhado: «Isso, amigo,É uma grande invenção,Mas escuta o que te digo:Não deves contar comigoP'ra carregar no botão!»
Com dotes colossais p’ra descansar,Se um não gostava nada do trabalho,O outro tinha raiva em trabalhar.E assim andavam neste rodopio,Dois amigos leais da boa vidaE, p’ra não aturarem senhorio,Pernoitavam nos bancos na Avenida.Mas certa noite em que pernoitavam,Um polícia de giro ali passou.Por fim, enquanto os dois se espreguiçavam,O guarda ao Barnabé assim falou:«Diga-me qual a sua profissãoE responda-me já, sem fantasia!»«Pois saiba que trabalho, pois então,Na firma Boavida & Companhia.»«E você?», diz o guarda ao Zé Ramalho,«Diga-me sem mentir, responda já!»«Pois bem, fique sabendo que trabalhoE estou na mesma casa onde este está!»
02/10/21
Mais duas histórias de um lar
[São histórias verdadeiras, como as anteriores. A segunda é uma das histórias alegres que, como vos disse, também há nos lares.]
_____________
– Era enfermeira, D. Maria Luísa? Vejo que lava muito bem as mãos, como uma profissional.
– Só aprendi a lavar bem as mãos agora com o COVID. Por acaso, quando era rapariga nova, queria ser enfermeira, mas nunca cheguei a ser. Com 17 anos, comecei a trabalhar num hospital, assim só como ajudante. Tinha um horário das 7 às 12 e das 13 às 17, todos os dias. Limpava, lavava, ia buscar coisas, fazia o que me pediam. Era para ganhar prática, para depois começar a estudar para enfermeira.
E depois, um dia, internaram um rapaz da minha idade. Estava muito doente. Não sei o que é que ele tinha. Nunca tive de tratar dele, nem de lhe dar nada, eram só as enfermeiras que tratavam dela. Mas passava às vezes pela cama dele e parava e ficava a olhar para ele. Acho que ele nem sequer me via, nem via ninguém, de tão mal que estava, coitado. Vi-o morrer. E a morte dele perturbou-me tanto que deixei o trabalho no hospital. E decidi que já não queria ser enfermeira.
______________
– Tem um minutinho para mim, D. Teresa?
– Claro, D. Amélia! Diga lá.
A D. Teresa é a diretora do lar e a D. Amélia é uma das pessoas que lá vive. Está lá a viver há dois anos, mas tem uma longa relação com o lar, que começou muito antes de a D. Amélia ser a diretora. Primeiro, trabalhou lá como enfermeira os últimos doze anos da sua carreira. Quando se reformou, ajudava no centro de dia dois dias por semana, como voluntária. Depois, passou ela própria a ser utente do centro de dia. Finalmente, quando a saúde se deteriorou ainda mais, foi viver para o lar.
– Estive a falar com a minha filha e com o meu filho, que são os meus herdeiros naturais. Já os pus a par da minha decisão e eles acham muito bem: decidi dar ao lar a minha herança. Não é muito, não pense, mas ajuda. Para atividades extras que não estejam cobertas pelo orçamento normal. Sei lá, festas e espetáculos no lar, passeios, coisas assim. Mas, antes disso, queria já dar um dinheiro que eu tenho no banco e que não me faz falta para fazer uma festa este verão. Um almoço e depois um conjunto a tocar. Gostava que se servisse leitão. O que é que acha?
Cabeça de porco
Uma vez, no Alto Molócuè, em Moçambique, fiz uma cabeça de xara que ninguém conseguiu comer. A receita era boa. Tinha-ma mandado por carta um amigo meu, porque nessa altura ainda não havia telefone no Alto Molócuè, de maneira que nem pensar em e-mail — que ainda era, aliás, uma coisa rara nessa altura… A receita era boa, dizia eu, mas a carne de porco era tão má, tão má, com um sabor tão forte a bicho, que tivemos de deitar fora a cabeça de xara. Uma pena, enfim, depois do trabalho que me deu...
No ano passado, comprámos meio porco e eu, claro, tinha aproveitar a meia cabeça que ali tinha, mas pensei em fazer desta vez um fromage de tête ou pâté de tête, que é uma cabeça de xara francesa. Não há grande diferença no processo nem no aspeto – até porque o aspeto pode variar muito de uma cabeça de xara para a outra e de um pâté de tête para o outro. Os temperos, porém, são diferentes. Aliás, este prato existe em toda a Europa e um pouco por todo o mundo, mas, claro, os ingredientes podem variar de sítio para sítio.
Mais uma excursão, peço desculpa. Voltemos à vaca fria. Ou ao porco frio, seja... Decidi então fazer um fromage de tête, mas apeteceu-me cortar na gordura e à gelatina, e fiz uma coisa praticamente só com carninha. Ficou bem bom, por tal sinal, mas, de aspeto, em vez de pâté de tête, parecia mais rillettes — que não se fazem da cabeça... Com base numa receita do blogue La Bonne Bouffe à Sam, fiz assim:
Agarrei em meia cabeça de porco limpa e escaldada, salguei-a bem salgada e deixei-a um dia com sal no frigorífico. Depois, passei-a por água para lhe tirar o sal que não tinha sido absorvido, e fervi-a com pouca água, só o suficiente para cobrir a cabeça e os temperos que lhe juntei: uma cenoura, uma cebola, um bocado de rama de alho francês, um talo de aipo, um bolbo de funcho, tudo cortado aos bocados grosseiramente, cerca de um decilitro de vinagre (normalmente, põe-se mais, mas o resto da a malta cá de casa não gosta de coisas avinagradas…) e pimenta, uns cravinhos, salsa e três estrelas de anis – ou três anises-estrelados, que deve ser mais correto. Gostei mesmo muito do conspícuo sabor anisado do pâté, se é que conspícuo de pode usar para sabores, mas também percebe que pode desagradar a muita gente. Vocês verão que temperos querem pôr no caldo…Depois é deixar cozer muito tempo, juntando água se se tiver evaporado demasiado líquido. Está pronto quando a carne se separar dos ossos. E pronto, passa-se tudo pelo passador, escolhe-se que carne, gorduras e cartilagens se quer aproveitar, cortam-se aos bocados (o tamanho é ao gosto de cada um) e depois põe-se num recipiente e cobre-se com o caldo de cozer, que, entretanto, se reduziu, fervendo-o, pelo menos para metade do que tinha ficado. Este caldo há-se tornar-se geleia depois de arrefecer umas horas num lugar frio (o frigorífico, creio, para a maior parte das pessoas que me leem). Há muitas receitas em que, em vez de se envolver apenas a carne com geleia, se a comprime com um pano. Também fica ao critério de cada um.
Na Dinamarca, o que corresponde à cabeça de xara e ao fromage de tête é uma coisa que se chama sylte. É também parecido no aspeto com as variantes latinas, mas é normalmente mais avinagrado. Aqui perto, há um talho que faz uma sylte deliciosa, que em 2015 ganhou o prémio de melhor sylte da Dinamarca. A sylte deles, curiosamente, também é só carninha, como o meu pâté.