12/04/25

O cavalinho branco e outras cantigas: da influência de Brassens

 

Há uns anos, encontrei, já não me lembro onde, umas páginas de um jornal sueco dos anos setenta, que tinham uma entrevista com Cornelis Vreeswijk — um importante cantautor sueco-neerlandês, muito conhecido em toda a Escandinávia —, em que ele contava como ficara fascinado com o primeiro álbum de Georges Brassens: dizia que, quando ouviu «Le petit cheval blanc», foi um mundo novo que se abriu para ele. E considerava Brassens um dos cantautores que mais o influenciara[1].

No outro dia, vi uma entrevista com Isabelle Mayereau — uma cantautora francesa, menos conhecida do que merecia, acho eu —, em que ela descreve o mesmo fascínio quando, menina ainda, ouviu pela primeira vez esse álbum, que o seu pai acabava de comprar. Foi esse disco, diz ela, que, lhe deu vontade de começar a aprender a guitarra[2].

Não há nada mais diferente de Cornelis Vreeswijk que Isabelle Mayereau. E, no entanto, Brassens foi influente para ambos — para terem feito o que fizeram. Não que os tenha influenciado musicalmente, que influência musical é outra coisa. Mas coincidirem Vreeswijk e Mayereau no fascínio por Brassens é mais que pura coincidência, se me permitem o trocadilho.

O primeiro álbum de Brassens, estou eu em crer, é uma obra altamente influente em toda a canção de autor europeia. Pelo menos, na canção de autor europeia. Evidentemente, não será o único álbum influente de Brassens, já que Brassens foi sempre influente. Mas era uma novidade, pelos textos e pelo espírito em geral, e também pela sonoridade: não se tinham com certeza gravado muitos álbuns europeus de canção de texto em que o autor se acompanhasse a si próprio com guitarra acústica, neste caso apenas secundado pelo contrabaixo de Pierre Nicolas.

Brassens foi, sem dúvida, um dos pioneiros desta sonoridade, mas, como acontece com todos os pioneiros, tinha havido outros pioneiros antes dele. Brassens diz, numa entrevista de 1961, que tinha sido Félix Leclerc — um grande cantautor quebequense — que o tinha ajudado, com «a sua singeleza, o seu despojamento, a sua maneira de cantar sem artifícios, uma maneira de cantar contrária a tudo o que se tinha feito até então». «Foi decerto isso», continua Brassens, «que me permitiu chegar ao palco e ser aceite, porque já se tinha aceitado Félix Leclerc.»

Leclerc também se apresentava, ao vivo e em disco, muitos vezes sozinho com a sua guitarra. Era sete anos mais velho que Brassens, mas a sua carreira discográfica só precedeu em dois anos a do cantautor francês. Entre 1950 e 1952, porém, Félix Leclerc dera muitos espetáculos em França e tivera aí um grande sucesso, sendo o seu estilo considerado muito inovador na canção de língua francesa. É neste contexto que se devem entender as declarações de Brassens.

Ainda bem que há um site como o Second Hand Songs que nos dá uma visão global, se bem que forçosamente incompleta, de uma das formas tangíveis da influência de um cantor ou de um compositor de canções: as versões que são feitas das suas canções. Das seis canções do primeiro álbum de Brassens atrás referido, todas foram objeto de muitas versões: há pelo menos[3] 13 versões gravadas de “La chasse aux papillons”, 25 versões gravadas de “La mauvaise réputation”, cinco versões gravadas de “Le fossoyeur”, 28 versões gravadas de “Le gorille”, 20 versões gravadas de “Le parapluie” e seis versões gravadas de “Le Petit Cheval”, uma das poucas canções de Brassens em que ele musica um poema alheio, neste caso «Complainte du petit cheval blanc», de Paul Fort.

Não surpreende que a maior parte das versões sejam em francês, mas há ainda assim um número razoável de versões noutras línguas: “La chasse aux papillons” tem versões em hebraico, espanhol e neerlandês; “La mauvaise réputation” tem versões em inglês, hebraico, italiano, duas em português[4], e três em espanhol, uma das quais (a de Paco Ibañez) cantada pelo próprio Brassens; “Le fossoyeur” tem uma versão em hebraico e outra em espanhol; “Le gorille” tem uma versão em inglês, duas em alemão, uma em hebraico, uma em italiano, uma em polaco, duas em espanhol, uma em neerlandês, uma em grego, e uma em sueco, gravada por vários artistas, entre os quais Cornelis Vreeswijk; e “Le parapluie” tem versões em catalão, finlandês, hebraico, italiano, espanhol e sueco.

“Le petit cheval” é a única que nunca foi adaptada para outro idioma.

A maioria das versões estrangeiras das canções deste primeiro disco de Brassens são do fim dos anos 60 e da década de 70. Talvez tenha sido só mais de uma década e uma dezena de álbuns mais tarde que Brassens começa a ser amplamente conhecido pelo mundo fora, ou na Europa, pelo menos. É bem possível que o contexto social dos anos sessenta e a difusão das sonoridades «despojadas» na canção popular tenham ajudado à divulgação da sua obra em geral, incluindo as canções mais antigas, junto de um público mais alargado. A exceção a este compasso de espera é a adaptação sueca de “Le gorille” por Lars Forssell, que data de 1959. É precisamente esta adaptação que Cornelis Vreeswijk viria a gravar em 1972

Das outras versões desta canção, destaco a de Fabrizio de Andrè, um dos maiores cantautores italianos e a de Jake Thackray. Thackray é às vezes referido como o «Noël Coward do Norte de Inglaterra», mas, muito provavelmente, ele teria preferido que lhe chamassem o «Brassens inglês». A versão ao vivo que aqui vos deixo é de finais de novembro ou início de dezembro de 1972, porque Thckray refere a execução na guillhotina de Claude Buffet e Roger Bontems, a 28 de novembro de 1972, na prisão La Santé, em Paris.


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[1] Vreeswijk tinha 16 ou 17 anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e estava a residir na Suécia há quatro anos. Não faço ideia de onde meti a revista onde li isto, mas esta influência é conhecida: Vreeswijk deu conta dela em várias entrevistas (ver aqui, por exemplo, infelizmente em sueco).

[2] Isabelle Mayereau tinha só seis ou sete anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e é natural que o tenha ouvido alguns anos mais tarde. Ouvir aqui a partir de 2:50.

[3] A informação disponível em Second Hand Songs é altamente fiável, devido ao rigor do processo de escrutínio das contribuições (e eu sei, porque contribuo para o site), mas, naturalmente, nada garante que cubra a totalidade das versões de uma canção. Aliás, é praticamente certo que não cobre...

[4] Na altura em que estou a escrever isto, das canções do  primeiro álbum de Brassens, só está listada uma versão confirmada em português,  «A má reputação», de Bïa; mas eu conheço uma segunda, de Luís Cília, que já enviei ao Second Hand Songs e que aguarda aprovação.


29/03/25

Da memória: o almoço de G. e outras histórias [Crónicas de Svendborg #50]

 

Visita da manhã a G. G. sofre de demência, mas ainda tem consciência da sua doença. Já está vestida e arranjada quando chego. Dou-lhe os medicamentos da manhã, sirvo-lhe o pequeno-almoço e digo-lhe que vou fazer também uma sandes para o almoço*. Ela diz que não vale a pena, que faz ela o almoço quando for hora de almoçar.
− Mas sabe que se esquece das coisas – digo eu. − E depois esquece-se de fazer almoço.
− Eu sei, eu sei... – responde G. – Mas também o almoço estar já feito não faz diferença nenhuma: mesmo que fique aqui à minha frente, eu depois esqueço-me de o comer… 

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Ruínas de adobe, Camargo, Bolívia.
Agora, mesmo não sofrendo de nenhuma doença que afete as capacidades cognitivas, porém – e num grau completamente diferente! –, é certo e sabido que basta avançar na idade para que a memória deixe de funcionar como estávamos habituados a que funcionasse… Onde pus as chaves?, o que é que queria fazer?, como se chama o vocalista dos Calexico? E então a gente começa a lidar com a nova condição de uma forma racional: tomar nota das coisas. Para depois, repetidas vezes, se esquecer em casa da lista de compras, por exemplo… 

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* A história passa-se na Dinamarca e fazer uma sandes é a tradução possível de smørre en mad, literalmente «barrar uma comida», que significa pôr alguma coisa em cima de uma fatia de pão de centeio. Sandes abertas de pão de centeio continuam a ser o almoço dinamarquês mais comum , embora as novas gerações muitas vezes já prefiram saladas ou um prato quente.

26/03/25

Música maquinal e mecânica superior da música

 

Música maquinal...

No conto «Os Autómatos», de E. T. A. Hoffmann [1], uma das personagens, Lewis, lança-se numa diatribe contra a «música mecânica» que me parece muito interessante:

Pegou nas chaves com grande ruído e abriu a porta de um salão mobilado com bom gosto e elegância, onde estavam os autómatos. Havia um piano no meio da sala, numa plataforma elevada; ao lado, à direita, uma figura de um homem em tamanho real, com uma flauta na mão; à esquerda, uma figura feminina, sentada a um instrumento parecido com um piano; atrás dela estavam dois rapazes, um com um tambor e outro com um triângulo. Os nossos dois amigos repararam que, ao fundo, se encontrava um orquestrião (um instrumento que já conheciam) e que, espalhados por todas as paredes, havia vários relógios musicais. O Professor passou despreocupadamente perto da orquestra e dos relógios, e tocou ao de leve nos autómatos, quase impercetivelmente; depois sentou-se ao piano e começou a tocar, pianíssimo, um andante em estilo de marcha. Tocou sozinho uma vez; e quando começou a segunda volta, o flautista levou o instrumento aos lábios e começou a tocar a melodia; um dos rapazes começou a tamborilar suavemente no tambor num tempo muito preciso, e o outro tocou muito ao de leve o triângulo, de modo a que se pudesse ouvir e nada mais. Nesse momento, entrou a senhora com acordes completos que soavam como os de um harmónio [2], que produzia pressionando as teclas do seu instrumento; e toda a sala foi ficando cada vez mais animada; os relógios musicais entraram um a um, com a máxima precisão rítmica; o menino tocou mais alto o tambor; o triângulo ecoou pela sala e, por fim, o orquestrião começou a trabalhar, tocando tambores e trombetas fortissimo, fazendo estremecer todo o local. Isto continuou até que o Professor concluiu com um acorde final, tendo as máquinas todas terminado também, com a máxima precisão. Os nossos amigos não se negaram aos aplausos que o sorriso complacente do Professor (com o seu fundo de sarcasmo) parecia exigir deles. O Professor dirigiu-se então às figuras para começar a exibir alguns outros feitos musicais semelhantes; mas Lewis e Ferdinand, como se tivessem combinado previamente entre eles, desculparam-se dizendo que tinham assuntos urgentes a tratar que os impediam de ali ficar mais tempo, e despediram-se do inventor e das suas máquinas. […]

− Vimos algumas invenções mecânicas muito engenhosas [− disse Ferdinand −], curiosas e interessantes do ponto de vista musical. Claramente, o flautista é o mesmo da conhecida máquina de Vaucanson [3]; e é, suponho, um mecanismo semelhante aplicado aos dedos da figura feminina que lhe permite extrair aqueles belos tons do seu instrumento. A forma como todas as máquinas trabalham em conjunto é realmente surpreendente.

No séc. XVIII, foram criados muitos autómatos que são verdadeiros prodígios mecânicos.
− É exatamente isso que me deixa furioso − disse Lewis. − Toda aquela música maquinal (na qual incluo a própria execução do Professor) faz-me doer os ossos todos do corpo. Tenho a certeza de que não sei quando ultrapassarei isto! Que um ser humano faça seja lá o que for em conjunto com estas figuras sem vida que falsificam a aparência e os movimentos da humanidade sempre foi, para mim, algo assustador, antinatural, posso dizer terrível. Suponho que seria possível, através de certos mecanismos interiores, construir autómatos que dançassem e, depois, fazê-los dançar com os seres humanos, girando e rodopiando em todo o tipo de passos de dança; de modo que teríamos um homem vivo abraçado a uma parceira sem vida e girando e girando com uma mulher de madeira, ou melhor, com uma coisa de madeira. Era capaz de observar sem horror uma cena assim, nem que só por um instante? Seja como for, toda a música mecânica me parece monstruosa e abominável; e um bom tear de meias vale mais, na minha opinião, que todos os relógios musicais mais perfeitos e engenhosos do universo juntos. Será apenas a respiração do executante de um instrumento de sopro ou os dedos hábeis e flexíveis do executante de um instrumento de cordas que evocam aqueles tons que tanto nos enfeitiçam e despertam aquele sentimento inexprimível, que não se assemelha a nada mais na Terra —a sensação de um mundo espiritual distante e da nossa própria vida superior nesse mundo? Não serão antes a mente, a alma e o coração que simplesmente utilizam estes órgãos corporais para transferir para a vida exterior o que sentimos no mais profundo de nós, para que possa ser comunicado aos outros e desperte neles acordes semelhantes, revelando, em ecos harmoniosos, aquele reino maravilhoso de onde irradiam esses tons, como raios de luz? Pôr-se a fazer música através de válvulas, molas, alavancas, cilindros ou quaisquer outros aparelhos que se decida utilizar é uma tentativa absurda de fazer com que os meios para atingir um fim realizem aquilo que só pode resultar se esses meios forem animados e, nos seus mais ínfimos movimentos, controlados pela mente, pela alma e pelo coração. A crítica mais grave que se pode fazer a um músico é dizer que toca sem expressão; porque, se o fizer, está a arruinar toda a essência da música. Ainda assim, o mais frio e insensível executante estará sempre muito à frente das máquinas mais perfeitas, pois que é impossível um impulso interior do homem não anime, nem que por um momento apenas, a sua interpretação; ao passo que, no caso de uma máquina, não há impulso que o possa fazer. Considero que as tentativas dos mecânicos de imitar, com maior ou menor precisão, os órgãos humanos na produção de sons musicais, ou de substituir esses órgãos por aparelhos mecânicos, equivalem a uma declaração de guerra contra o elemento espiritual da música. Mas quanto maiores forem as forças que que eles usem contra esse elemento espiritual, mais vitorioso ele é. Por essa razão, quanto mais perfeita for esta tipo de maquinaria, mais a desaprovo; e prefiro infinitamente o realejo mais comum, em que o mecanismo não tenta ser senão mecânico, ao flautista de Vaucanson, ou à rapariga do harmónio.
E. T. A. Hoffmann, que, além de escritor, foi também músico — e talvez quisesse ter sido sobretudo compositor — escreveu muito sobre música e era um importante crítico musical do seu tempo. Nunca li a sua crítica musical, mas, a julgar pela sua verve romântica na passagem atrás, imagino que ela devesse ser muito sedutora. Evidentemente, não posso ter a certeza de que é E. T. A. Hoffmann que fala pela boca de Lewis, mas isso também não importa. Independentemente de as ideias da personagem Lewis corresponderem ou não às de E. T. A. Hoffmann, achei muito interessante a atualidade desta crítica à «música mecânica»: não é exatamente o que se ouve hoje, e muitas vezes também de pessoas com conhecimentos musicais, da música feita com meios eletrónicos?

No fundo, as românticas conceções da música como forma privilegiada de expressão de estados de alma doutra forma inexprimíveis e do artista como empenhado veículo desse processo, através da sua «sensibilidade», parecem não se ter alterado muito. Que a música possa ou deva ter antes como cerne o que está fora do indivíduo e furtar-se, na criação e na execução, ao domínio do emotivo é ideia que não parece ter ainda grande fortuna.

... e mecânica superior da música

Quando tive a ideia de escrever este texto — que, de facto, é mais uma divulgação do texto de Hoffmann que propriamente um texto meu — era para terminar aqui. Mas quem manda nos textos é a própria redação do texto; e então, chegado aqui, decido dar a conhecer um pouco mais do conto. Ao contrário do que talvez se pudesse pensar à leitura da passagem acima, Lewis não é contra toda a inovação «mecânica» no domínio musical. Eis como continua a conversa entre Ferdinand e ele:

− Concordo inteiramente consigo − disse Ferdinand – e, de facto, apenas pôs em palavras o que eu sempre pensei; e fiquei hoje muito impressionado em casa do Professor. Embora eu não viva e me movimente e esteja tão imerso na música tão completamente como você, e não tenha, por isso, a mesma atenta sensibilidade para as suas imperfeições, também senti sempre repugnância pela rigidez e falta de alma da música mecânica; e, lembro-me que, em criança, em minha casa, detestava um grande relógio musical comum, que tocava todas as horas a mesma breve melodia. É uma pena que estes talentosos mecânicos não tentem aplicar os seus conhecimentos ao aperfeiçoamento de instrumentos musicais, em vez de puerilidades desta natureza.

− Exato − disse Lewis. − Ora, no caso dos instrumentos de teclas, há muito que pode ser feito. Há, para os mecânicos inteligentes, um amplo campo a explorar nesse sentido, em que, aliás, já se fez muito, particularmente nos instrumentos do tipo do piano. Mas caberia a um sistema de facto avançado da «mecânica da música» observar de perto, estudar minuciosamente e descobrir cuidadosamente aquele tipo de sons que pertencem, pura e estritamente, à própria Natureza, para saber que tons inerentes a todas as substâncias e, em seguida, colocar essa misteriosa música em algum tipo de instrumento, onde ela se sujeitasse à vontade do homem e fosse produzida quando ele o tocasse. Todas as tentativas de obter música a partir de cilindros de metal ou de vidro, de filamentos ou lamelas de vidro ou de pedaços de mármore, ou de fazer cordas vibrarem ou soarem de maneira diferente do habitual são para mim do maior interesse. O obstáculo ao progresso efetivo na descoberta dos maravilhosos segredos acústicos que se escondem à nossa volta na natureza é que cada experiência incompleta é imediatamente elogiada como sendo uma nova e perfeita invenção. É por isso que surgiram tantos instrumentos novos, a maioria deles com nomes grandiosos ou ridículos, que logo desapareceram e foram esquecidos.

− A sua «mecânica superior da música» parece ser um assunto muito interessante − disse Ferdinand −, embora, pela minha parte, ainda não perceba bem qual o seu objetivo.

− O objetivo − disse Lewis − é a descoberta do tipo mais absolutamente perfeito de som musical; e, segundo a minha teoria, um som musical está tanto mais próximo da perfeição quanto mais se aproxima dos tons misteriosos da natureza que não estão completamente dissociados desta terra.

− Presumo − disse Ferdinand − que seja por não ter aprofundado tanto esse assunto como você, mas deixe-me dizer-lhe que não o compreendo bem.

− Então − disse Lewis −, deixe-me dar-lhe uma ideia de como vejo esta questão. «Na condição primitiva da raça humana» (para citar quase literalmente um escritor talentoso — Schubert — no seu Perspetivas sobre o lado noturno das ciências naturais)[4], a humanidade vivia ainda em numa pura e sagrada harmonia com a natureza e possuía ainda um rico instinto celestial de profecia e poesia. A Mãe Natureza continuava a alimentar com a fonte da sua própria vida o maravilhoso ser que tinha dado à luz, e rodeava-o de uma música sagrada, como o aflato de uma inspiração contínua. Esta música era feita de tons maravilhosos que contavam os mistérios da incessante atividade da Natureza. Chegou até nós um eco da misteriosa profundidade desses dias primevos — a bela noção da música das esferas, que me encheu da mais profunda e devota reverência, quando pela primeira vez ouvi falar dela em O Sonho de Cipião. Muitas vezes me punha à escuta, em noites calmas de luar, para ver se esse sons maravilhosos chegavam até mim, nas asas de brisas sussurrantes. No entanto, como já lhe disse, estes sons da Natureza ainda não abandonaram todos este mundo, pois temos um exemplo da sua sobrevivência e ocorrência naquela «música aérea ou voz do demónio» referida por um escritor no Ceilão — um som que afeta tão poderosamente o organismo humano que, mesmo as pessoas menos impressionáveis, quando ouvem estes tons da natureza imitando, de forma tão aterradora, a expressão do pesar e do sofrimento humanos, são tomadas de dolorosa compaixão e profundo terror! Na realidade, eu próprio já presenciei um fenómeno semelhante algures na Prússia Oriental. Estava lá a viver há algum tempo. O Outono estava a chegar ao fim, e eu, em noites calmas em que soprava apenas uma brisa suave, ouvia claramente alguns sons, às vezes parecidos com o som grave e sustido de um harmónio e às vezes semelhantes às vibrações de um sino grave e suave. Distinguia frequentemente, com bastante clareza, o Fá grave e a quinta acima dele (o Dó), e muitas vezes era também percetível a terceira menor acima, Mi bemol; e então aquele tremendo acorde de sétima, tão triste e tão solene, produzia em mim um efeito da intensíssima tristeza, e até de terror!

Há, no impercetível ataque, no crescimento e no gradual desvanecimento destes sons naturais algo que tem sobre nós um efeito muito poderoso e indescritível; e qualquer instrumento que seja capaz de produzir o mesmo som, afetar-nos-ia sem dúvida, de forma semelhante. Assim sendo, penso que a harmónica de vidro se aproxima mais, no que diz respeito à sonoridade, dessa perfeição que se deve medir pela influência nas nossas mentes. E ainda bem que este instrumento (que por acaso imita estes tons naturais com tanta exatidão) seja precisamente aquele que não se presta à frivolidade nem à ostentação, exibindo antes as suas características qualidades com a mais pura simplicidade. O recém-inventado harmonicórdio trará, sem dúvida, muito progresso neste sentido. Neste instrumento, como decerto sabe, faz-se vibrar as cordas (e não sinos, como o harmónio) por meio de um mecanismo que é acionado pela pressão sobre as teclas e pela rotação de um cilindro. O músico pode controlar o ataque, a sustentação e a diminuição do som muito mais do que no caso da harmónica, embora o harmonicórdio não tenha a sonoridade da harmónica de vidro, que soa como vinda de outro mundo.

Lewis (Hoffmann?) partilha, pois, uma ideia muito divulgada de decadência da humanidade moderna ou civilizada: os humanos primitivos tinham capacidades percetivas que lhes permitiam uma compreensão muito maior da essência do mundo natural, algo de que os humanos atuais não podem senão ter vislumbres fortuitos — a perda do Paraíso, da Idade de Ouro, da inocência original, enfim. Mas parece-me curioso que se veja a música, uma misteriosa «música natural», que surge de vez em quando a algumas almas com a capacidade de a ouvirem, como a forma de comunicação espiritual entre a natureza e os seres humanos. E parece-me ainda mais curioso que, no que diz respeito à música, se veja como função essencial do progresso técnico o desenvolvimento de instrumentos que possam reproduzir — e controlar — esses sons mágicos de natureza, que não são, note-se, os sons reais da natureza a que todos os humanos têm acesso (vento, chuva, mar, tempestades, etc. …) e que podem também causar pesar ou pavor. No início do séc. XIX, porém, sugere Lewis, não é de conseguir voltar a ouvir a voz da mãe Natureza que se trata  — é de ser capaz de a recriar.

Carl Maria von Weber compôs em 1811 o Adagio e Rondo para Harmonicórdio, de que podemos ver aqui um excerto, tocado por Thomas Bloch,... numa harmónica de vidro. Não existe atualmente nenhum exemplar do harmonicórdio.

Quando a harmónica de vidro e o harmonicórdio são apresentados como exemplos de avanços positivos na «mecânica superior da música», podemos imaginar que outros instrumentos teriam agradado a Lewis — e provavelmente a Hoffmann. Gostariam seguramente de ter ouvido os instrumentos musicais elétricos e eletrónicos que começaram a surgir cerca de meio século depois da redação deste conto: o telégrafo musical, de Elisha Gray, em 1876; o gigantesco telarmónio, de Thaddeus Cahill, em 1897 (o primeiro órgão elétrico e considerado o primeiro instrumento eletromecânico); o teremim de Leon Termen em 1920, o esferofone, de Jörg Mager, em 1924; as ondas Martenot, de Maurice Martenot, em 1928 e uma série de outros instrumentos experimentais até à criação dos primeiros sintetizadores «modernos» nos anos cinquenta do séc. XX. Estes instrumentos eletrónicos da primeira metade do século passado são todos tão fascinantes como os autómatos da época de Hoffmann; e, como eles, peças de museu — quando resta deles mais que apenas a descrição… Dos muitos instrumentos não acústicos inventados antes de 1940, só o teremim e as ondas Martenot entraram no reportório da música erudita e música popular e continuam hoje a ser utilizados.

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Notas:

[1] Die Automate no original alemão. Publicado pela primeira vez em 1814 no magazine literário Zeitung für die elegante Welt. Traduzo eu da tradução inglesa de Alexander Ewing, em The Best Tales of Hoffmann, Dover: Nova Iorque, 1967, com base numa tradução automática — como agora quase sempre se faz... O texto completo em inglês está disponível aqui, para quem queira ler o conto todo, e outros contos do autor.

[2] No original alemão, é usado o adjetivo harmonikaähnlichen, mas não se pode referir nem a uma harmónica de boca nem ao acordeão, que o alemão e outras línguas designam comummente por «Harmonika», já que ambos os instrumentos surgem cerca de dez anos depois da redação do conto. Deve, portanto referir-se a outro tipo de instrumentos de palhetas que existiam antes e que hoje são genericamente designados por harmónios.

[3] O flautista de Vaucanson desapareceu, tal como despareceram outros flautistas feitos depois dele que o imitavam. Existem, porém, outros autómatos flautistas que podem dar uma ideia do que faria o desparecido autómato de Vaucanson. Ver aqui, por exemplo.

[4] Gotthilf Heinrich von Schubert, Ansichten von der Nachtseite der Naturwissenschaft. Arnold: Dresden, 1808


07/02/25

Uma canção do pós-guerra: «A última turista na Europa»


Já divulguei no blogue alguns clássicos da canção popular dinamarquesa, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui. Em Portugal (e no mundo lusófono em geral) conhece-se muito pouco da música dinamarquesa e eu acho que há obras dinamarquesas que merecem ser conhecidas por toda a gente.

Apresento-vos então mais uma bonita canção dinamarquesa, escrita em 1948 por Henrik Blichmann (música) e Mogens Dam (letra) e gravada nesse mesmo ano por Lulu Ziegler. Ziegler interpreta a canção num estilo meio cantado meia declamado, comum na época e não só na Dinamarca. A grande maioria dos leitores deste blogue não sabem dinamarquês, mas, para quem o fale, é também de notar a sofisticada dicção, com uma pronúncia que não existe a não ser no teatro clássico e em canções. A melodia é simples e bonita, e fica no ouvido. A canção foi um grande êxito na época. É considerada um clássico da canção popular dinamarquesa e é ainda bastante conhecida, até porque têm sido feitas dela várias versões, algumas até bem recentes.

Quanto ao conteúdo lírico, eu chamar-lhe-ia europeísmo romântico: o sujeito lírico da canção é uma improvável turista que faz uma contemplação desolada da Europa destruída pela guerra e uma viagem mental por umas quantas personagens e lugares míticos europeus — pela sua Europa.

É interessante: três anos apenas depois do fim da ocupação da Dinamarca pelas tropas de Hitler, esta turista quer passar uma parte da sua nostálgica viagem na Alemanha, em vez de a varrer da sua Europa. A canção refere cinco cidades alemãs, três das quais muito destruídas pela guerra, Dresden, Lübeck e Berlin. Não me parece que a inclusão da Alemanha na sua Europa ideal e o reconhecimento da sua desgraça possa ser visto como um perdão. É apenas a constatação simples de que a Alemanha era e continuaria a ser, uma parte fundamental da Europa, e que, como os outros países, tinha sido também vítima de uma guerra e não apenas o seu agente. Mas não seria isto a contracorrente na altura, com as feridas da invasão alemã ainda por sarar? Não sei*

Por fim, é curioso notar que esta Europa mítica não inclui o resto da Escandinávia, nem a Ibéria nem a maior parte do Leste Europeu. Isto pode ter  a ver apenas com a experiência do autor, claro está, mas também pode dar conta da perspetiva dinamarquesa da altura: aos olhos de um dinamarquês, talvez faltassem à Europa periférica figuras e lugares míticos com lugar nos livros de história das artes …

A tradução do texto por baixo do vídeo é minha e devo avisar, sem falsas modéstias, que não está grande coisa. Aliás, nem sei se é possível fazer uma tradução razoável duma canção destas. Dou-a em prosa, para tornar evidente a despoetização por que passou. Enfim, dá uma ideia do que a cantiga diz, mas não de como o diz… Quero só notar que hesitei um bocado entre «A última turista na Europa» e «A última turista da Europa». Às vezes, o «em» locativo germânico soa pouco natural nas línguas latinas, em que, nas mesmas situações, se usa antes um «de» determinativo: não se diz «a aldeia mais alta no país», mas sim «a aldeia mais alta do país». Neste caso, porém, achei mais relevante acentuar que o «turismo» da voz lírica é «na Europa» que «da Europa», embora a turista seja obviamente «da Europa»...

A última turista na Europa

Vim ter com a minha Europa e o velho mundo que um dia foi meu. Vim ver se é verdade que não passa agora de uma ruína fumegante. Estive fora muito tempo — demasiado tempo. Lá de longe, só se ouviam explosões e gritos. Não quero acreditar que não restem senão destroços — um cenário árido para a próxima guerra.

Sou a última turista na Europa. Não me pesam nem o ouro nem a tristeza, mas preciso de ver, preciso de saber se a Europa conseguirá sobreviver à guerra.

Despareceram os que viajavam por prazer ou desenfado, foram à procura de outros lugares. Sou a última turista na Europa, vim ter com ela outra vez.

E procuro na Europa ensanguentada aquilo com que sonhei no meu exílio: as eternas e brilhantes flores da arte e o velho sorriso sábio de mestres silenciosos. Numa igreja de cúpula dourada em Varsóvia, quero acender uma luz sob um ícone e, uma noite, quero passear por Veneza para me encontrar com Ticiano na ponte de Rialto.

Sou a última turista na Europa e vagueio, em desassossego, por aqui e ali. Quero ir a Viena para me encontrar com Mozart, quero ajoelhar-me diante de Rafael em Roma. Quero ir a Londres e a Stratford-upon-Avon, quero ver Antuérpia, Bruges e Bruxelas e, última turista da Europa, quero ver Paris ao pôr-do-sol da Torre Eiffel.

Revi a casa de Goethe em Weimar, bebi os aromas de mil rosas em Eutin e encontrei um exemplar meio carbonizado de ‘Buch der Lieder’ soterrado num teatro em Berlim. Sonhei com as pequenas ruas rococó de Dresden e com o colorido gótico da velha Lübeck, e algures perto de Leipzig quero ouvir a música de Beethoven numa escola de aldeia.

Vou percorrer toda a Europa, onde o amor foi derrotado, até ao túmulo do Père Lachaise onde jazem Abelardo e Heloísa. E entre as colunas dóricas do Pártenon, Palas Atena, de lança na mão, dá-me a coragem de enfrentar a minha sorte com um espírito reto e socrático. Quero saudar todas as catedrais de França, sorrir com doçura a uma pastora de Chardin, encontrar-me com Rembrandt entre os canais de Amesterdão e enterrar-me em livros em Lovaina.

Quero ouvir a cotovia a cantar no Norte a melodia alegre de todas as almas livres, para sentir que, apesar de tudo o que perdemos, há vida a despertar sob as cinzas!

Porque és como a Fénix, Europa! Por mais que te queimem e te violentem a alma, há de sempre haver novas flores, e viçosas, a crescer em volta das tuas colunas destroçadas.

Fui a última turista na Europa, que se encolheu horrorizada ao som das rajadas de balas. E sou a primeira turista na Europa quando ela se erguer das cinzas outra vez…

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* Os pensamentos são como as cerejas e, quando li a letra desta canção, veio-me à cabeça «Göttingen», da grande Barbara. Em menina, Barbara, que era de família judia, fora obrigada a fugir da França ocupada. E em 1964, com a canção «Göttingen», lembrava a quem ainda guardava rancores contra «os Alemães», todos os alemães, que as crianças eram iguais em Paris e em Göttingen.