Há uns anos, encontrei, já não me lembro onde, umas páginas de um jornal sueco dos anos setenta, que tinham uma entrevista com Cornelis Vreeswijk — um importante cantautor sueco-neerlandês, muito conhecido em toda a Escandinávia —, em que ele contava como ficara fascinado com o primeiro álbum de Georges Brassens: dizia que, quando ouviu «Le petit cheval blanc», foi um mundo novo que se abriu para ele. E considerava Brassens um dos cantautores que mais o influenciara[1].
No outro dia, vi uma entrevista com Isabelle Mayereau — uma cantautora francesa, menos conhecida do que merecia, acho eu —, em que ela descreve o mesmo fascínio quando, menina ainda, ouviu pela primeira vez esse álbum, que o seu pai acabava de comprar. Foi esse disco, diz ela, que, lhe deu vontade de começar a aprender a guitarra[2].
Não há nada mais diferente de Cornelis Vreeswijk que Isabelle Mayereau. E, no entanto, Brassens foi influente para ambos — para terem feito o que fizeram. Não que os tenha influenciado musicalmente, que influência musical é outra coisa. Mas coincidirem Vreeswijk e Mayereau no fascínio por Brassens é mais que pura coincidência, se me permitem o trocadilho.
O primeiro álbum de Brassens, estou eu em crer, é uma obra altamente influente em toda a canção de autor europeia. Pelo menos, na canção de autor europeia. Evidentemente, não será o único álbum influente de Brassens, já que Brassens foi sempre influente. Mas era uma novidade, pelos textos e pelo espírito em geral, e também pela sonoridade: não se tinham com certeza gravado muitos álbuns europeus de canção de texto em que o autor se acompanhasse a si próprio com guitarra acústica, neste caso apenas secundado pelo contrabaixo de Pierre Nicolas.
Brassens foi, sem dúvida, um dos pioneiros desta sonoridade, mas, como acontece com todos os pioneiros, tinha havido outros pioneiros antes dele. Brassens diz, numa entrevista de 1961, que tinha sido Félix Leclerc — um grande cantautor quebequense — que o tinha ajudado, com «a sua singeleza, o seu despojamento, a sua maneira de cantar sem artifícios, uma maneira de cantar contrária a tudo o que se tinha feito até então». «Foi decerto isso», continua Brassens, «que me permitiu chegar ao palco e ser aceite, porque já se tinha aceitado Félix Leclerc.»
Leclerc também se apresentava, ao vivo e em disco, muitos vezes sozinho com a sua guitarra. Era sete anos mais velho que Brassens, mas a sua carreira discográfica só precedeu em dois anos a do cantautor francês. Entre 1950 e 1952, porém, Félix Leclerc dera muitos espetáculos em França e tivera aí um grande sucesso, sendo o seu estilo considerado muito inovador na canção de língua francesa. É neste contexto que se devem entender as declarações de Brassens.
Ainda bem que há um site como o Second Hand Songs que nos dá uma visão global, se bem que forçosamente incompleta, de uma das formas tangíveis da influência de um cantor ou de um compositor de canções: as versões que são feitas das suas canções. Das seis canções do primeiro álbum de Brassens atrás referido, todas foram objeto de muitas versões: há pelo menos[3] 13 versões gravadas de “La chasse aux papillons”, 25 versões gravadas de “La mauvaise réputation”, cinco versões gravadas de “Le fossoyeur”, 28 versões gravadas de “Le gorille”, 20 versões gravadas de “Le parapluie” e seis versões gravadas de “Le Petit Cheval”, uma das poucas canções de Brassens em que ele musica um poema alheio, neste caso «Complainte du petit cheval blanc», de Paul Fort.
Não surpreende que a maior parte das versões sejam em francês, mas há ainda assim um número razoável de versões noutras línguas: “La chasse aux papillons” tem versões em hebraico, espanhol e neerlandês; “La mauvaise réputation” tem versões em inglês, hebraico, italiano, duas em português[4], e três em espanhol, uma das quais (a de Paco Ibañez) cantada pelo próprio Brassens; “Le fossoyeur” tem uma versão em hebraico e outra em espanhol; “Le gorille” tem uma versão em inglês, duas em alemão, uma em hebraico, uma em italiano, uma em polaco, duas em espanhol, uma em neerlandês, uma em grego, e uma em sueco, gravada por vários artistas, entre os quais Cornelis Vreeswijk; e “Le parapluie” tem versões em catalão, finlandês, hebraico, italiano, espanhol e sueco.
“Le petit cheval” é a única que nunca foi adaptada para outro idioma.
A maioria das versões estrangeiras das canções deste primeiro disco de Brassens são do fim dos anos 60 e da década de 70. Talvez tenha sido só mais de uma década e uma dezena de álbuns mais tarde que Brassens começa a ser amplamente conhecido pelo mundo fora, ou na Europa, pelo menos. É bem possível que o contexto social dos anos sessenta e a difusão das sonoridades «despojadas» na canção popular tenham ajudado à divulgação da sua obra em geral, incluindo as canções mais antigas, junto de um público mais alargado. A exceção a este compasso de espera é a adaptação sueca de “Le gorille” por Lars Forssell, que data de 1959. É precisamente esta adaptação que Cornelis Vreeswijk viria a gravar em 1972.
Das outras versões desta canção, destaco a de Fabrizio de Andrè, um dos maiores cantautores italianos e a de Jake Thackray. Thackray é às vezes referido como o «Noël Coward do Norte de Inglaterra», mas, muito provavelmente, ele teria preferido que lhe chamassem o «Brassens inglês». A versão ao vivo que aqui vos deixo é de finais de novembro ou início de dezembro de 1972, porque Thckray refere a execução na guillhotina de Claude Buffet e Roger Bontems, a 28 de novembro de 1972, na prisão La Santé, em Paris.
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[1] Vreeswijk tinha 16 ou 17 anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e estava a residir na Suécia há quatro anos. Não faço ideia de onde meti a revista onde li isto, mas esta influência é conhecida: Vreeswijk deu conta dela em várias entrevistas (ver aqui, por exemplo, infelizmente em sueco).
[2] Isabelle Mayereau tinha só seis ou sete anos quando saiu o primeiro álbum de Brassens e é natural que o tenha ouvido alguns anos mais tarde. Ouvir aqui a partir de 2:50.
[3] A informação disponível em Second Hand Songs é altamente fiável, devido ao rigor do processo de escrutínio das contribuições (e eu sei, porque contribuo para o site), mas, naturalmente, nada garante que cubra a totalidade das versões de uma canção. Aliás, é praticamente certo que não cobre...
[4] Na altura em que estou a escrever isto, das canções do primeiro álbum de Brassens, só está listada uma versão confirmada em português, «A má reputação», de Bïa; mas eu conheço uma segunda, de Luís Cília, que já enviei ao Second Hand Songs e que aguarda aprovação.