29/05/25

De atacadores, personagens e autores

Só há cerca de 15 anos aprendi a atar os sapatos como deve ser; e aprendi, vejam lá vocês, num TED talk:

Depois, há meia dúzia de anos, aprendi que (pelo menos no que respeita a atar os sapatos) «como deve ser» é uma coisa relativa, digamos assim: porque se se fizer como se deve, mas muito mais depressa, ainda é mais como deve ser, não é? Outro TED talk:

E quando pensava que já não tinha mais nada a aprender sobre os nós dos atacadores, fiquei a saber, ao rever um episódio de uma série antiga, que também podem servir para descobrir um criminoso. Quer dizer, pelo menos foi o que aconteceu nesta narrativa ficcional. E podia, por isso, acontecer na realidade, porque há um pressuposto de verosimilhança nas histórias policiais – sem verosimilhança, transformam-se noutro tipo de histórias...

Invejei a inteligência do autor da história: «Quem me dera conseguir escrever uma história assim!» E depois pensei que também poderia antes invejar a inteligência  de Columbo e pensar: «Quem me dera conseguir desvendar assim um caso de assassínio!». Mas, neste caso concreto, a inteligência do autor e a inteligência da personagem são a mesma inteligência, ou não?

Discute-se muito, sempre se discutiu, o caráter da relação entre a obra de arte e o seu autor. Mas é conversa ampla de mais; afunilemos um bom bocado a conversa e atentemos só num aspeto específico da relação entre autores de ficção – policial ou outra qualquer, literária ou cinematográfica, não importa – e as suas personagens.

Um/a autor/a pode dar às suas personagens todas as características que conheça ou saiba sonhar e que não têm de ter a ver – e normalmente não têm mesmo nada a ver – com as suas próprias características: por exemplo, e para referir apenas qualidades positivas, pode criar pessoas mais fortes que a sua pessoa, mais audazes, mais rápidas, mais bonitas, mais bondosas, fazendo-as mostrar na história, em ações e palavras, a força, a audácia, a rapidez, a beleza ou a bondade que são maiores que as suas próprias. Todas as capacidades, exceto as capacidades cognitivas: não consegue pôr nenhuma personagem a ser mais inteligente, mais perspicaz ou mais sábia do que ele é. Pode dizer que a personagem é a pessoa mais inteligente do mundo, sem mostrar concretamente na narrativa, mas mais que isso não pode. Pode dizer: Columbo, o mais astuto detetive que alguma vez se conheceu, consegue desvendar mistérios mais complicados do que alguma vez foram escritos por um autor policial. Mas só isso. E de maneira que é assim e para lapalissada não está mau: a personagem Columbo não consegue desvendar nenhum mistério que o seu autor não consiga também desvendar. 

P.S. 1: O que se aplica às capacidades cognitivas aplica-se também às capacidades retóricas: se eu criar, numa narrativa realista, uma personagem que é um poeta extraordinário, admirado pelo público e pelos críticos, o melhor é nunca aparecerem na história os poemas desse poeta... 

P.S. 2: Os três vídeos acima têm legendas em português, mas o terceiro, da série Columbo, tem legendagem automática, que nem sempre é muito boa. O episódio de que o vídeo foi extraído é o primeiro da quarta série e data de setembro de 1974. O autor da história é Larry Cohen



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