Hoje de manhã, topei por acaso com um provérbio que não conhecia,
Aurora ruiva, ou vento ou chuva, também com a variante Manhã ruiva ou vento ou chuva.
E pensei assim: é claro que há provérbios com rima toante, como, por exemplo, outro provérbio que eu conheço, que diz o mesmo que este:
Céu vermelho de madrugada, marinheiro põe-te em guarda.
Mas também pode ser que o provérbio seja uma tradução do castelhano, em que teria rima perfeita (B e V pronunciam-se da mesma forma em castelhano):
Manãna rubia, viento o lluvia.
Ou então, hipótese mais improvável, o provérbio é tão antigo que, quando ele surgiu, ruiva e chuva ainda tinham a mesma forma no romance do que é hoje Portugal — porque muito provavelmente a tiveram…
E uma busca na internet revelou que existe de facto um provérbio espanhol que coincide com a minha hipótese, apenas com uma palavra diferente da minha tradução:
Alba rubia, viento o lluvia.
Fiquei muito satisfeito com a minha perspicácia, é claro, mas continuei sem resposta: o provérbio português tanto pode ser uma importação do castelhano como podem ter ambos uma origem romance comum…
Metáteses em português e castelhano
Os pensamentos são como as cerejas e isto levou-me à questão das metáteses em português e castelhano. Fiz há coisa de 25 anos uma lista bastante longa e, creio eu, bastante completa também, de diferenças sistemáticas entre o castelhano e o português[1]. Um dos tópicos dessas diferenças são as palavras que sofreram metáteses numa das línguas, mas não na outra.
Metátese, então. Peço desculpa pelo palavrão e eis a sua definição: chama-se assim à permuta de dois sons de uma palavra, como quando se diz *dentrífico em vez dentífrico[2]. Se a metátese for entre dois sons consecutivos, como em *dromir por dormir, chama-se uma interversão.
Este processo é tão frequente que existe em todas as línguas que conheço — e, ao que tenho visto, também nas línguas que não conheço. Agora, é interessante constatar que uma metátese que em determinada altura é considerada erro, como o são agora *dromir ou *dentrífico, pode mais tarde passar a ser a forma correta, como veremos adiante; e que, em duas línguas tão próximas como o português e o castelhano, não coincidem as metáteses tornadas norma, o que, nalguns (raros) casos, faz com que os falantes de uma das línguas achem divertida a palavra na outra língua. Por exemplo:
*Preguntar, em vez de perguntar, é erro em português[3]; mas em castelhano é ao contrário, preguntar é a forma considerada correta — e nem sei se alguém diz *perguntar em castelhano, nunca tal ouvi. Como a forma etimológica é percontāri, foi em castelhano que vingou a troca de sons, o português segue o étimo sem permutações.
O mesmo em cocodrilo, que vem do grego krokodilos pelo latim crocodilu-: em português, não houve metátese, em espanhol, sim. E cocodrilo faz-nos sorrir.
Morcego é uma terceira palavra que em português evoluiu direitinha, se se pode dizer assim, ao passo que em castelhano sofreu trocas de sons internas. O desgraçado do morcego não tem nome próprio em várias línguas, é só um rato careca em francês (chauve-souris), um rato esvoaçante em dinamarquês (flagermus), um rato cego em português e galego (mur(is) caecu(s) deu morcego), e um rato ceguinho em castelhano: mur(is) caecŭlu(s) deu murciégalo, que já foi a palavra normal e está hoje caída em desuso, tendo sido substituída pela forma com metátese, murciélago. Ganhou o erro de antigamente, que por isso deixou de ser erro…
Quem achar estranho que uma pronúncia errada se tenha tornando forma correta, não deve ficar a rir-se do castelhano, já que o português tem muito mais formas destas que aquela língua. Eis, por ordem alfabética, uma lista que não se pretende de forma alguma exaustiva, de palavras portuguesas que incluem metátese na sua evolução, comparando com o castelhano quando possível:
Aipo, do latim apiu-, «devia» ser *ápio, como é em castelhano (apio);
A palavra caranguejo vem do castelhano cangrejo, que por sua vez vem do latim cancricŭlu-[4], e, ao entrar no português, sofreu uma metátese (dizem alguns que por influência de carango, mas não sei…) que a deixou como a conhecemos...
Disfarçar, que vem do castelhano antigo desfrazar, seria, sem a interversão, *disfraçar, igual ao castelhano atual disfrazar, mas nós trocámos os sons à palavra.
Freguês vem de filĭus eclesiae, «filho da igreja» e, se não tivesse vingado a forma «mal pronunciada, seria *fegrês (ainda se vê feegrês em galego-português), depois de uma longa evolução que, em castelhano, não sofreu metátese: diz-se feligrés.
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| Gaivão, esq. e gavião, dir. Wikimedia Commons, daqui e daqui. |
O geolho antigo, derivado diretamente do latim genuculu-, transformou-se, por metátese, em joelho e a forma deformada[5] pegou. O castelhano hinojo, que corresponde diretamente a geolho (por estranho que isso possa parecer a quem não conheça a história do castelhano), evoluiu sem trocas do lugar dos sons dentro da palavra.
Também jogral devia, pela lógica etimológica, ser *joglar como em castelhano, já que vem do francês antigo jouglere, mas em português veio a metátese trocar-lhe os sons.
Por fim, não fossem as interversões, raiva e ruivo também seriam *rávia e *rúvio, como são em castelhano, porque é isso que decorre naturalmente dos étimos latinos rabia- e rubeu-. Mas não, trocámos-lhe a ordem dos sons.
E depois, há casos de metáteses comuns aos dois idiomas, como a palavra palavra[5] (palabra em castelhano), que vem de parabola- e seria pois, sem a troca de sons, *parabla ou *paraula ou algo assim, com um /r/ na sílaba central e um /l/ na última sílaba. O português (não o castelhano) tem outra palavra da mesma família, palrar (do latim parolare) também com /r/ e /l/ trocados relativamente ao étimo.
Quanto a formas de origem discutida, temos noiva, que é novia em castelhano, e carapaça, que é caparazón em castelhano — mas não me atrevo nestes casos a dizer onde houve metátese…
Conclusão: não acredito muito que *auga, *metereologia e *protanto tenham grandes possibilidades de algum dia vir a ser as formais normais em português, mas é bom lembrar-se que não são solecismos maiores do que já o foram disfarce ou joelho.
O meu pecado pessoal é o metoprolol. É um termo que uso na minha vida profissional e engano-me sempre a pronunciá-lo: a reboque de metrópole, acho eu, digo *metropolol. Os sons /l/ e /r/ parecem ser muitos suscetíveis de troca, e mais ainda se alguma parte da palavra nos remete para outra palavra com a sequência de sons trocada. Às vezes, é curioso é a abundância de uma determinada sequência de sons que provoca a metátese: acho que ninguém diz trigue por tigre a não ser na proximidade de outros tri-: três tristes trigues, não é verdade?
Crocodilo tornou-se cocodrilo em castelhano, mas não *corcodilo nem *cocordilo. Porquê? Deve haver algo nesta sequência concreta de sons, neste contexto fonético específico e/ou na estrutura fonética do castelhano em geral, que a torne de alguma forma preferível, ou «mais natural», ao ouvido dos falantes. Mas o quê?
Não tenho a certeza de ter ouvido alguma metátese de crocodilo em português. Talvez *corcodilo, que me parece a mais «natural» na nossa língua...
P. S.: Já agora, de bónus: metáteses em francês e inglês
O francês também tem algumas palavras cuja forma atual resulta de metáteses. Eis algumas delas:
Brebis, «ovelha», já foi berbis, o que é natural, dado que vem do latim berbex; mas depois o /r/ e o /e/ trocaram de lugar.
A forma atual espadrille, «alpercata de sola de corda», é uma metátese de espardille, que vem do occitano espardilhos, de espart, «esparto», porque se trata, precisamente, de sapatos com sola de esparto.
Farouche, «bravo, arisco», vem do latim forasticus, que deu primeiro fourache. Este termo sofreu depois uma surpreendente metátese: o /a/ e /u/, em sílabas diferentes, trocaram de lugar.
Fromage, «queijo», devia ser – e já foi – formage, porque vem de formaticu- (o queijo é feito em formas).
Gourmet, «gastrónomo, apreciador de boa comida», vem de gromet, termo antigo para designar o criado responsável pelo vinho, e a interversão de /r/ e da vogal contígua deve ter sido influenciada pela palavra gourmand, guloso, que também tem a ver com comes e bebes, mas não tem relação etimológica nenhuma com gromet.
Moelle, «tutano», vem duma metátese de meolle, que vem, por sua vez, do latim medulla- (parente muito chegada, portanto, do português miolo, que tem a mesma origem).
Moustique, «mosquito», vem do espanhol mosquito, mas com troca de lugar dos sons /k/ e /t/.
Tirando isso, são apontadas como metáteses correntes *aréoport por aéroport; *astériks por astérisque (e que seria da escola franco-belga de banda desenhada sem esta interversão?); *génicologue por gynécologue, talvez com influência de génital e afins; *infractus por infarctus, talvez por influência de fracture; e *rénumeré por rémunéré, provavelmente por influência de numéro — entre muitas outras…
Em inglês, há também umas quantas palavras atuais que resultam de trocas de sons passados, que, de erro, passaram a norma. Por exemplo:
Bird vem do antigo bridd, de origem desconhecida, que significava um passarinho jovem.
Nostril, «narina, vem do inglês antigo nosþyrl ou nosðirl, composto de nos(u), «nariz», e þyrel «buraco», mas o /r/ e o /i/ trocaram depois de lugar.
Third, «terceiro», também tinha o /r/ e o /i/ em posições invertidas, que são as etimológicas e correspondem às das outras línguas próximas: dizia-se thrid e a transformação em third atesta-se desde o fim do séc. X. As duas formas coexistem até ao séc. XVI, mas a forma trocada acaba por vencer. Verifica-se o mesmo fenómeno em thirty, «trinta»: atesta-se, desde o fim do séc XIV, a transformação do thriti original em thirti.
Wasp, «vespa», era wæps em inglês antigo, mas depois os sons /p/ e /s/ trocaram de lugar, talvez por influência do latim vespa.
E fico por aqui, que já vai longo o post scriptum...
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[1] É um trabalho útil para quem aprenda uma das línguas, mas o formato de blogue presta-se mal à sua publicação, de maneira que nunca aqui o pus. Se alguém quiser esta lista, pode contactar-me e enviar-lha-ei por e-mail.
[2] Assinalo com um asterisco grande e vermelho as formas produzidas por falantes nativos, mas consideradas incorretas pela norma culta. Os asteriscos negros e pequenos indicam formas que nunca vi nem ouvi.
[3] *Preguntar é considerado erro na escrita e no português falado no Brasil. Em Portugal, a diferença entre perguntar e *preguntar não se ouve em português moderno falado a velocidade normal, porque o /e/ desparece, venha antes ou depois do /r/.
[4] Se viesse diretamente do latim, a forma portuguesa seria em princípio *cancrelho ou *cangrelho.
[5] É mesmo para ser assim: «forma deformada», «palavra palavra», não é deslize, é estilo brincalhão, se bem que, como vocês com toda a razão pensam, de gosto bastante duvidoso...

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