A Karen, a minha mulher, está com paludismo – ou malária, como é aqui mais conhecida a doença. Já é a segunda vez, aliás, que ela apanha essa porcaria. E há aqui um mistério…
Bom, que ela apanhe a doença não tem nada de misterioso. A malária é endémica na região, toda a gente apanha malária… ou quase. Os miúdos e eu, por exemplo, felizmente ainda não apanhámos. Em parte, por sorte, provavelmente; em parte porque eu tenho muito cuidado em não deixar entrar mosquitos aqui em casa; e em parte porque vivemos num ambiente relativamente protegido. Os mosquitos que transportam o parasita da malária não voam muito alto e esta espécie de fortaleza onde nós vivemos está separada por muros altos do resto do bairro, que é donde eles têm mais possibilidades de nos trazer as detestáveis bichezas. O mistério é, então: por que é que a Karen apanha malária e nós não?
O plasmódio que causa a malária tem um período de incubação de cerca de duas semanas e, quando fazemos as contas, de ambas as vezes é quase certo que ela a apanhou aqui. E é isso que é estranho. Por alguma razão que eu não sei explicar, os mosquitos preferem sempre, sempre preferiram, o meu sangue ao dela. Onde há mosquitos, sou sempre muito mais picado do que ela. Se houvesse mosquitos a esconderem-se no quarto à espera de a gente estar a dormir para nos ferrarem, haviam de me picar mais a mim do que a ela, com toda a certeza. Além disso, já desde Outubro, que é quando começa aqui o calor, que dormimos sempre com o ar condicionado ligado, e os mosquitos não costumam gostar de ar condicionado... O facto é que ela foi picada. Porque sentiu as picadas, mas, sobretudo, porque está com malária, e a malária não se apanha a comer carne de porco mal lavada, como dizia um empregado que nós tivemos na Alta Zambézia…
A partir das 7:30 ou 8:00 da noite, que é quando os miúdos vão para a cama, fechamos sempre a porta que divide a parte da casa onde estão os quartos e o meu escritório da cozinha e da sala de estar, precisamente para não se perder o fresquinho do ar condicionado nos quartos. Muitas noites, enquanto eu fico aqui a escrever, a Karen vai para a sala ver televisão. A televisão é uma coisa nova cá em casa, e é coisa nova na nossa família – tanto para os miúdos como para mim e para a Karen. Nunca nenhum de nós teve televisão em solteiro, e, depois de casados, também nos recusámos sempre a ter televisão. Há uns três ou quatro anos, em Copenhaga, os tipos da televisão não nos acreditaram quando, ao exigirem-nos uma pipa de massa em taxas de televisão atrasadas, nós lhes respondemos que não víamos razão para pagar taxa por uma coisa que não tínhamos. “Não têm televisão?!”, disse o homem das taxas à Karen, ao telefone. “Não pode ser, não há ninguém que não tenha televisão…” E tinha razão. É só uma questão de esperar o suficiente. Agora, sim, já temos televisão, como toda a gente… E o resultado é este:
O mais provável é que seja lá em baixo que os mosquitos lhe injectem a doença, enquanto ela está a ver televisão. E eu, na minha escrita, aqui em cima no escritório, estou protegido. O que prova que a escrita, afinal, não é uma actividade tão malsã como se julga; e que a televisão, como se sabe há muito tempo, só faz mal às pessoas. Pode até ser responsável da transmissão de malária!
É claro, agora que descobri como a televisão contribui para a propagação do paludismo, a principal causa de morte do planeta, tenho de revelar ao mundo a minha fantástica descoberta. O melhor é mandar um artigo para o Lancet. Os gajos eram capazes de aceitar. Lembro-me de que há uns anos um amigo me mandou um artigo de um tal Kesteloot, publicado nessa revista, em que este investigador, para explicar o mistério da elevada taxa de mortalidade das mulheres dinamarquesas, de que o vício do tabaco não deve ser a menor das causas, dizia que a altíssima percentagem de fumadoras na Dinamarca se devia à (má) influência da rainha “como modelo de comportamento”. Hão-de concordar que a minha tese sobre a influência da televisão na propagação da malária não tem de modo nenhum menos cientificidade do que a teoria de Kesteloot – e tem seguramente mais interesse para o futuro da humanidade.
Agora um aparte, baixinho: Eu fiquei todo contente quando li o tal artigo no Lancet. A sério. Republicano empedernido que sou, a única ocasião em que não exijo rigor a um artigo científico é quando é para dizer mal de um(a) monarca…
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 1 dia