No outro dia, na estrada da vila de Manica para Penhalonga, vimos uma tabuleta nova, a indicar a «Fortaleza de Macequece, património histórico», e decidimos ir lá fazer uma visita.
Macequece é, provavelmente, o lugar mais importante da região, porque foi lá que durante vários séculos se localizou a célebre feira onde se trocava sobretudo ouro pelos produtos vindos de além-Índico. O controlo da feira sempre foi considerado prioritário na estratégia político-militar da região e disputaram-no, ora com diplomacia ora com mosquetes e azagaias, vários reinos com interesses nesta parte de África, desde os reinos shonas ligados ao Muenemutapa ou dele derivados até ao reino
* de Portugal. Macequece é, pois, um nome com ressonâncias míticas.
Como podem imaginar, o património histórico moçambicano não está especialmente bem preservado [E quem muito colonialistamente pensar logo que, «pois, “eles” deram cabo de tudo», que se desengane, que a preservação do património histórico foi também nula no tempo colonial, sim?]. O facto é que há muitos factores a concorrer para a pouca preservação desse património. A falta de dinheiro, o não ser considerado prioridade, com certeza (e é relativamente compreensível), mas também, muito simplesmente, o facto de ele ser objectivamente mais difícil de preservar aqui do que noutros sítios, por causa do clima ou devido às próprias características dos edifícios antigos. As cortes dos reis, as aringas fortificadas, as casas dos prazos, tudo isso era feito de “materiais precários”, como se chama agora aqui ao pau-a-pique com cobertura vegetal. Tudo altamente perecível e, por isso, perecido. Mas mesmo algumas coisas mais sólidas, como a fortaleza de São Caetano de Sofala, foram completamente destruídas por uma erosão imparável (há quem diga que se usaram, nos fins do séc. XIX, pedras das muralhas da fortaleza para construções ali nas proximidades, na Beira e até em Maputo, mas não sei até que ponto é que isso é lenda…). Resumindo: o facto é que pouco resta, ou nada, do que houve antes do cimento colonial.
Desculpem a excursão. Dizia eu que o património histórico moçambicano não está especialmente bem conservado, de maneira que, quando vi a placa, não fiquei à espera de encontrar nenhum local histórico no sentido em que nós o entendemos no mundo rico, com turistas, guias e
souvenirs. Por outro lado, fiquei muito contente por constatar que, apesar de tudo, já começa a haver sinais na estrada a indicar monumentos. As
pinturas rupestres de Chinhamapere, por exemplo, já têm também uma tabuleta a indicá-las a quem passa na estrada de Manica para a fronteira de Machipanda.
O caminho para a fortaleza de Macequece é caminho para 4×4, especialmente quando vierem as chuvas. O forte não impressiona por aí além. É um quadrado de muros de pedra rudimentares de cerca de metro e meio de altura, com uma dezena de pequenas espingardeiras. Tem uma casinha, a um dos cantos, e, no meio, uma haste de bandeira e uma placa colonial, a louvar os soldados que ali combateram em Maio de 1891. Contra quem, não diz. E eu não fazia ideia de que batalha pudesse ser aquela. Devia ser, pensei eu, uma batalha pelo domínio efectivo do território, que a conferência de Berlim (leia-se, a Grã-Bretanha) tinha exigido às potências coloniais. Contra algum grande senhor feudal indo-afro-português que recusasse a administração portuguesa, ou contra os soldados de
Ngungunhane... Quando cheguei a casa fui buscar a minha História de Moçambique, para ver de que se tratava [Newitt, Malyn,
A history of Mozambique. London: Hurst, 1997. Todas as citações de Malyn Newitt que se seguem são desta obra]. Afinal, a batalha tinha sido entre o exército português e o exército da
British South Africa Company, que é como quem diz, do Sr.
Cecil Rhodes.
Ao ultimato da Grã-Bretanha a Portugal em Janeiro de 1890, seguiu-se um período de negociações. “Durante o que era, para todos os efeitos, uma suspensão da lei internacional”, para o dizer como diz Newitt, parece que a lei estava mais suspensa para uns do que para outros. “Embora Salisbúria exigisse que os Portugueses se abstivessem de qualquer actividade nas zonas sujeitas a negociação, ninguém impediu Rhodes e os seus agentes de avançarem com as suas actividades”.
A história é demasiado longa para a contar em pormenor aqui no blogue, mas eis um resumo: A 15 de Novembro, as tropas de Rhodes aprisionam os dois senhores afro-portugueses donos da primeira Companhia de Moçambique e com interesses na mesma Mashonaland que Rhodes queria controlar, e ocupam Macequece. “A intenção de Rhodes era garantir para a British South Africa Company todo o território que pudesse e, se possível, criar um corredor até ao mar. Em África, pensava ele, a posse era nove décimos da lei.” No dia anterior, Portugal e a Inglaterra tinham assinado um modus vivendi, válido por 6 meses até à assinatura do tratado final reconhecendo a validade da divisão de territórios acordada 3 meses antes, em que se definia nomeadamente que o território agora ocupado por Rhodes estava sob administração portuguesa. Rhodes não só recusa abandonar o território ocupado, mas faz avançar as suas tropas até ao Púnguè – em direcção ao mar! Entre 14 de Novembro de 1980 e 28 de Maio do ano seguinte, altura em que foi assinado o tratado que dava a Moçambique a sua forma actual, houve vários conflitos entre as tropas de Rhodes e os portugueses. A batalha de Macequece evocada pela placa na fortaleza é o mais importante desses conflitos. Os portugueses foram derrotados e obrigados a fugir e, quando parecia eminente uma nova batalha, a 29 de Maio, as tropas da British South Africa Company receberam ordens de retirada: era preciso respeitar o tratado assinado na véspera. Diz Malyn Newitt: “A satisfação última para Portugal deve ter sido a raiva de Cecil Rhodes perante o acordo que efectivamente o deixou desamparado na sua pirataria territorial”.
No seu relato de viagens
Following the Equator, escrito em 1895 e publicado em 1987,
Mark Twain passa os capítulos referentes à sua visita à África Austral em campanha aberta contra Rhodes. Eis a passagem final dessa diatribe, numa tradução que, infelizmente, não está à altura do apuramento retórico do original:
Sei muito bem que, seja o Sr. Rhodes o patriota e homem de estado nobre e digno de adoração que as multidões crêem que ele é, ou Satanás reencarnado, como o resto do mundo o considera, continua a ser a figura mais imponente do império britânico fora de Inglaterra. De cada vez que se põe de pé no Cabo da Boa Esperança, a sua sombra chega ao Zambeze. É o único colono dos domínios britânicos cujos afazeres são objectos de crónica e de discussão em todos os meridianos do globo, e cujos discursos, em versão integral, são telegrafados dos confins da Terra; e é o único forasteiro sem sangue real cuja chegada a Londres pode competir, na atenção que recebe, com um eclipse.
Que seja um homem extraordinário, e não um acidente da fortuna, nem os seus mais encarniçados inimigos da África do Sul estavam dispostos a negar, pelo que os ouvi testemunharem. Toda a África do Sul parecia tremer de medo dele – tanto amigos como inimigos. É como se fosse o delegado de Deus, por um lado, e o delegado de Satã, pelo outro, dono das pessoas, capaz de as fazer [ricas?] ou de as arruinar com um sopro apenas, venerado por muitos, odiado por muitos, mas nunca maldito por ninguém, entre os prudentes, e, mesmo pelos indiscretos, em retraídos murmúrios apenas.
Qual é o segredo da sua formidável supremacia? Diz um que é a sua prodigiosa riqueza – uma riqueza que, gotejando sob a forma de salários e outras receitas, sustenta multidões, e as compele a interessada e leal vassalagem; diz outro que é o seu magnetismo pessoal e a sua persuasiva argumentação, que hipnotizam e escravizam todos os que se movimentam nos círculos da sua influência; diz outro que são as suas majestosas ideias, os seus vastos esquemas para o engrandecimento territorial de Inglaterra, a sua ambição patriótica e abnegada de alargar a beneficente protecção britânica e o seu justo domínio aos sertões pagãos de África e iluminar a escuridão africana com a glória do nome da Grã-Bretanha; e diz outro que ele quer a terra e a quer só para ele, e que a crença de que a há-de ter e há-de acolher os amigos no rés-do-chão é que constitui o segredo que chama a ele tantos olhares e o conserva no zénite onde nada lhe obstrui o panorama.
Pode escolher-se a versão que se queira. São todas ao mesmo preço. Uma coisa é certa: mantém a proeminência e um vasto culto, faça lá o que fizer. Engana o
Duque de Fife – é o que o Duque diz – mas isso não destrói a lealdade que o Duque tem por ele. Engana os reformistas numa confusão imensa com o seu
Raid, mas a maior parte deles julga que ele fez por bem. Choraminga pelos desgraçados dos joanesburgueses, tão sobrecarregados de impostos, e faz deles seus amigos; ao mesmo tempo, cobra aos colonos da sua Companhia 50 por cento, e ganha deles assim tanto afecto e tanta confiança que se sentem abalados pelo desespero de cada vez que se ouve dizer que vai fechar a Companhia. Ataca e rouba e mata e escraviza os matabeles e recebe por isso enormes ovações dos cristãos da Companhia. Endrominou a Inglaterra para que comprasse papéis velhos da Companhia com notas do Banco de Inglaterra, tonelada a tonelada, e os burlados ainda queimam incenso em sua honra como se do Deus Supremo da Fartura se tratasse. Fez tudo o que conseguiu idear para ser atirado por terra; faz mais do que o necessário para provocar a derrocada de dezasseis grandes homens de tipo normal; e, no entanto, continua de pé até hoje, na vertigem do seu pináculo sob a cúpula celeste, permanentemente, ao que parece, a maravilha do nosso tempo, o mistério da nossa era, arcanjo com asas para meio mundo, satanás de cauda para o outro meio.
Admiro-o, confesso francamente; e quando chegar a sua hora, hei-de comprar um bocado da corda, só para guardar como recordação.
Para quem acredite no poder mágico dos nomes, a triste sina do Zimbábuè está traçada desde o momento em que deram ao território o nome de Rhodesia, que é (fica claro que eu não sou dos que consideram Rhodes um anjo) como chamar-lhe Escroquelândia, uma coisa assim… Ou, como diz Mark Twain, “Rhodesia é um nome adequado para aquela terra de pirataria e pilhagem”.
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* Uma curiosidade a propósito da palavra reino: em suaíli (e talvez também noutras línguas africanas, não sei), português diz-se reno. É impossível deduzir desse facto que “o reino” fosse a expressão mais utilizada pelos portugueses para referir a sua terra, mas era, com certeza, uma das mais usadas. À batata comum chama-se aqui batata reno, talvez para a distinguir da batata-doce, que é provavelmente mais utilizada. Ambos os produtos, no entanto, são americanos e é plausível que tenham sido trazidos para aqui ao mesmo tempo, provavelmente pelos portugueses.