Dizia eu, num comentário a um comentário do meu amigo Nuno, que “para um moralista duro como eu, o que se pode louvar são só os valores morais e as acções em sentido lato”, “que não faz sentido, do ponto de vista moral, louvar nem as características das pessoas, nem as próprias pessoas, nem grupos de pessoas em abstracto. Se alguém faz alguma coisa que eu acho louvável ou condenável, o que me merece elogio ou repúdio é a acção em si, o ter-se feito o que se fez. É uma armadilha – moral, mental... – fazer da pessoa ou das características “positivas” ou “negativas” que ela tenha o objecto do meu elogio ou da minha crítica.”
Quero desenvolver aqui um bocadinho uma parte dessa ideia, e insistir na necessidade de uma grande abstracção em todas as áreas morais – e, por conseguinte, também em política, que eu defendo que é apenas uma parte da moral. Para mim, o perigo maior de uma abstracção insuficiente neste domínio é a valorização a priori de determinadas pessoas e demonização das outras. Chamemos-lhe falta de focalização moral, julgar ao lado do que se pode e deve julgar...
Um exemplo simples: Mesmo numa perspectiva radicalmente antifascista como a minha, eu não me posso considerar, na totalidade das minhas acções, moralmente superior a uma pessoa que seja fascista. Uma pessoa pode ser fascista e ser, no geral, um pai mais dedicado aos seus filhos e aos seus amigos, e mais paciente com eles, do que eu sou; pode ser menos quezilento no trato em caso de discórdia; pode ser, em muitas coisas, “uma pessoa melhor do que eu” – mesmo na minha perspectiva moral. E pode depois, independentemente destas qualidades gerais de carácter, digamos assim, proceder bem em determinadas circunstâncias específicas em que eu procedi mal. É por isso, muito mais correcto disciplinar-me para pensar que sou inimigo das suas ideias e acções quando defende políticas autoritárias e repressivas, e que é só nessa condição que ele é meu inimigo, em vez de me convencer que ele é uma pessoa moralmente inferior, intrinsecamente má. Feliz ou infelizmente, anjos e demónios somos nós todos e não há pessoas intrinsecamente melhores do que outras, a não ser que sejam essas próprias pessoas a bitola pela qual medir a própria moralidade. Quando observamos à nossa volta, podemos verificar que cada pessoa se julga quase sempre do lado da verdade; e isso deveria ser prova suficiente de que esse lado é inexistente*.
Dito de outra maneira, cada indivíduo é um ponto de cruzamento de ideias, sentimentos e acções que existem, em abstracto, fora dele e que não desaparecerão quando ele desaparecer. Algumas das ideias, alguns dos sentimentos e algumas das acções de um indivíduo podem ser negativos, na nossa perspectiva, e podemos querer combatê los, mas isto não implica, como já defendi, que tudo seja negativo num indivíduo. A forma de combater essas ideias, sentimentos ou acções que consideramos negativos é erradicá-las dos indivíduos em que elas existem, porque não existem sem um suporte material. Tomar o indivíduo como inimigo, porém, é tomar como inimigo muito mais do que aquilo que queremos combater**.
O que digo sobre indivíduos aplica-se também a grupos de indivíduos. E o que digo sobre o combate aplica-se também à defesa. Quero sublinhar, no entanto, que é muito fácil desviar-se, sobretudo no trabalho político, da defesa dos princípios morais que deveriam orientar esse trabalho para a defesa dos grupos sociais que são vítima das injustiças que combatemos ou de outra forma beneficiários conjuntos dos objectivos que pretendemos alcançar. Ora, em sentido estrito, um grupo de pessoas não é objectivo de nenhum projecto moral, mas apenas o seu objecto conjuntural. O conjunto real das pessoas pobres, por exemplo, não é um projecto político; o combate à pobreza é que é. E o facto de se desviar da defesa de princípios abstractos para a defesa de pessoas ou grupos de pessoas concretas pode ter (e tem, muitas vezes) efeitos perversos acabando por desculpar ou inclusive apoiar, nessa pessoa ou nesse grupo, ideias, sentimentos ou acções que vão contra os princípios desse trabalho.
Agora, é fundamental sublinhar que há acções ou ideias em abstracto que são frequentemente louvados como ideais éticos e que nem sempre o são de facto; ou então, que podem ter esse estatuto numa determinada proposta moral e não o ter noutra. Vejamos, por exemplo, a obediência aos pais, que, segundo a notícia para a qual o meu amigo Nuno mandou um link no comentário já referido, é objecto de concurso na Arábia Saudita, como as dimensões e formas de pernas, cintura e seios o são em muitos outros países… A obediência aos pais é necessária, em certas idades e situações, por razões de ordem prática, que se prendem quer com a salvaguarda física das crianças quer com a preservação da saúde mental dos pais (smile!), mas não a vejo como um valor moral por si. Para mim, o valor moral de uma acção situa-se a outro nível e não valorizarei nem condenarei uma acção apenas por ela ser o resultado de uma obediência ou desobediência aos pais. Quando muito, e conforme eu julgue o grau de liberdade de acção da filha obediente, atribuirei ou não aos pais a responsabilidade do que, de bom ou de mau, possa resultar da acção. Vistas as coisas desta maneira, um concurso de respeito pelos pais não tem mais valor moral do que um concurso de beleza ou do que um concurso de ortografia…
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* No entanto, curiosamente, continua a discussão moral, incluindo a discussão política, a ser feita de delimitação de conjuntos de pessoas boas e de pessoas más. Mais ainda, facto verdadeiramente extraordinário!, continua a reservar-se para os partidários das suas ideias o terem ideais de melhoria do mundo, atribuindo-se quase sempre ao adversário o móbil único da defesa do interesse. É muito estranho! Custa muito a admitir que duas pessoas possam ter ideais completamente antagónicos, ambos perfeitamente sinceros?
** Evidentemente, por uma questão prática, tem de ser o indivíduo, como unidade física, a ser punido por aquilo que fez, pelo menos enquanto não aparecer melhor possibilidade, mas isso não invalida em nada o que fica dito.
recado para os Dominique Pelicot que andam por aí à solta
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Na semana em que Dominique Pelicot foi condenado a 20 anos de prisão por
ter repetidamente drogado a sua mulher para a violar e a pôr à disposição
de outro...
Há 2 dias
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